Análises

Beija-flores bem dotados, corolas profundas e o verdadeiro mestre da humanidade

Economia e ecologia compartilham mais semelhanças do que o prefixo em comum, pois lidam com oferta, demanda e competição por espaços.

Fabio Olmos ·
15 de julho de 2014 · 10 anos atrás

Um beija-flor-bico-de-espada mostra para que serve seu equipamento na corola de uma [i]Mutisa acuminata[/i]. Foto: Fábio Olmos
Um beija-flor-bico-de-espada mostra para que serve seu equipamento na corola de uma [i]Mutisa acuminata[/i]. Foto: Fábio Olmos

O beija-flor-bico-de-espada Ensifera ensifera é uma das aves mais impressionantes. Habitante das florestas dos Andes entre a Venezuela e a Bolívia, este beija-flor ostenta um bico de 6 a 11 cm – há muita variação individual – que pode ser tão longo quanto o resto da ave. Estas florestas podem ter entre 25 e 30 espécies de beija-flores e centenas de plantas ornitófilas – polinizadas por beija-flores –, o que significa que a competição entre as aves pelo acesso ao néctar e entre as plantas que usam beija-flores como polinizadores é uma força evolutiva importante.


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Seu alentado equipamento permite que o Ensifera alcance o néctar escondido no fundo das corolas de flores tubulares que outros beija-flores não conseguem degustar e assim monopolizar este recurso. As plantas, ao limitarem o acesso ao seu néctar a poucas ou mesmo uma única espécie de beija-flor, garantem que seu precioso pólen tenha maior probabilidade de ser distribuído entre plantas da mesma espécie ao invés de ser desperdiçado. Esse é um belo exemplo de co-evolução entre plantas e seu polinizador.

Ecologia e economia compartilham muitos princípios – ambas são ciências que lidam com oferta e demanda –, uma mesma base matemática e uma interface importante com o comportamento animal. É fácil ver como a especialização surge tanto entre plantas com flores e beija-flores como, por exemplo, entre restaurantes e seus clientes.

Públicos são naturalmente diversificados em seus gostos – e existe uma base genética para isso – e todo marqueteiro conhece o princípio de Pareto, segundo o qual 1/5 dos compradores de um produto são responsáveis por 4/5 das vendas. Mais que isso, existe o fenômeno dos “superconsumidores”, os 10% que são responsáveis por 30 a 70% das vendas de uma marca.

Este fenômeno de fidelização a determinados produtos em relação a outros que emerge de comportamentos inatos é algo que acontece tanto com pessoas como animais, como sabem todos que têm um pet em casa. Essa heterogeneidade que resulta em consumo seletivo tem consequências profundas.

Existem restaurantes que servem de sushi a homus e feijoada – como um self-service perto de minha casa – e miram todo mundo que coma. São os generalistas. Mas as preferências de diferentes faixas de consumidores geram diversidade e isso resulta em restaurantes especializados em culinária que vai da armênica à zanzibari. Por sinal, ambas ótimas.

Também por isso a indústria alemã, onde há centenas de pequenas empresas que são as melhores no que fazem, continua viva e competitiva apesar da ascensão de outras potências industriais. Ao contrário de muito da indústria brasileira, eternamente adepta do protecionismo.

Focar em uma clientela específica sendo o melhor naquilo que oferece é o que permite que o proprietário de um restaurante, um designer de roupas ou fabricante de eletrônicos evitem ou vençam a competição e garantam sua parcela do mercado. Da mesma forma que flores ao se tornarem sob medida para uma única espécie de beija-flor.

Especialização

“Flores ditam o tamanho e forma do bico de beija-flores ao mesmo tempo que beija-flores ditam o tamanho, cor, fenologia, composição do néctar e forma das flores.”

A especialização gerada pela competição acoplada à natural heterogeneidade do público é um processo espontâneo e geral que influencia desde supermercados à especiação simpátrica. Exceto, logicamente, onde há monopólios e barreiras comerciais.

Como a relação entre flores e polinizadores tem mão dupla, a especialização acaba sendo o caminho de todos os envolvidos. Flores ditam o tamanho e forma do bico de beija-flores ao mesmo tempo que beija-flores ditam o tamanho, cor, fenologia, composição do néctar e forma das flores.

Nesse processo em que todos manipulam e são manipulados, algumas plantas criaram um novo jogo que, literalmente, levou à nossa escravidão e as fizeram dominar o mundo.

Os cafeeiros Coffea arabica e C. canephora – ou robusta – são uma dupla de arbustos ou arvoretas originalmente distribuídos nas montanhas da Etiópia e países vizinhos – o arabica – e entre a Guiné e o Sudão – o robusta. Seu habitat original foi muito destruído por atividades humanas e, se não fosse por um truque neuroquímico, estariam na lista daquelas ameaçadas de extinção.

Cafeeiros são polinizados principalmente por abelhas e, como é de se esperar, suas flores têm forma e cor adequados à morfologia e gostos daqueles insetos. Mas seu néctar, além de uma concentração de açúcares e outros nutrientes na medida para aquele público, tem outro componente: a droga de controle mental conhecida como cafeína.

Na veia

A face de seu Mestre: o café. Foto: Fábio Olmos
A face de seu Mestre: o café. Foto: Fábio Olmos

“Seja lá quem descobriu o efeito do café na mente humana, isso selou nossa escravidão.”

A cafeína influencia os circuitos de memória das abelhas e faz com que elas se lembrem mais facilmente onde estão o cafeeiro e suas flores. Isso resulta em abelhas batedoras – presumivelmente pilhadas – voltando às colmeias e recrutando companheiras para a colheita de néctar naquele arbusto. Como resultado, os cafeeiros com as melhores drogas são polinizados mais eficientemente e produzem mais sementes.

Como outras drogas que dão barato, a cafeína em grandes concentrações também é um veneno e a planta a acumula nas sementes e folhas como proteção contra quem deseja comê-las. Na verdade você pode morrer se tomar de 50 a 60 cafés expressos ao longo de uma ou duas horas.

Como é comum em evolução, uma adaptação para determinada função foi capturada para outra. A concentração de cafeína nas sementes, desagradável para insetos predadores, é adequada para dar barato em mamíferos. Como nós.

Conta a lenda que um pastor de cabras etíope Kaldi notou que seus animais pareciam muito felizes ao comer frutos de café e decidiu experimentar a coisa em si mesmo. Outra história atribui a descoberta a Omar, um santo também etíope.

Seja lá quem descobriu o efeito do café na mente humana, isso selou nossa escravidão.

O café é absolutamente desnecessário à sobrevivência – a menos que você seja viciado nele – mas ao dominar a mente dos humanos, os Coffea fizeram com que seus novos escravos os multiplicassem e levassem para novos territórios. De obscuras terras etíopes, os Coffea se espalharam por todas as áreas tropicais do mundo, das terras altas da Tanzânia, Angola, Camarões e Quênia à Costa Rica, Colômbia, Peru e Brasil, à Indonesia e Vietnã.

Escravidão em cadeia

“A criação deste império resultou em humanos, escravos de uma planta, escravizando outros humanos para cultivar seus mestres.”

A criação deste império resultou em humanos, escravos de uma planta, escravizando outros humanos para cultivar seus mestres. Também resultou em ecossistemas inteiros sendo apagados da existência para que cafeeiros fossem plantados e paparicados.

No Brasil, a história do Vale do Paraíba e da Mantiqueira é bem conhecida. Os barões do café fluminenses e paulistas arrasaram uma paisagem inteira em um ciclo econômico tão destrutivo como efêmero. Ele foi magistralmente mostrado no filme de Marcos Sá Correa “O Vale”.

Tão ruim para o Vale foi o que se seguiu ao colapso do Ciclo do Café brasileiro, quando pecuaristas mineiros, parte do exército que serve àqueles outros Mestres da Humanidade – as vacas – dominaram a área e criaram os capinzais que hoje dominam a bacia do rio Paraíba do Sul, a qual ninguém se esforça para reflorestar. Quem viaja pela Dutra conhece bem as encostas cobertas de sapé onde reinam vacas alpinistas.

Garantir a água daquele rio parece menos importante que bifes e queijos.

A marcha dos cafeeiros que usam seus escravos humanos para dominar o mundo continua. Uma humanidade com 7,2 bilhões de membros significa uma demanda insaciável por drogas, e os escravos dos Coffea estão repetindo o que aconteceu no Vale do Paraíba em lugares tão díspares como Sumatra, o norte do Peru e o Vietnã. Por sinal, o Vietnã se tornou o segundo maior produtor mundial de café às custas de uma tremenda destruição de suas florestas.

Vi o mesmo no norte do Peru, onde o cultivo do café é a única coisa que torna economicamente viável que imigrantes ocupem montanhas remotas no norte do país, acessíveis apenas por estradas atrozes. Ao contrário do que aconteceu no Brasil, onde reinaram latifundiários, ali são agricultores familiares que causam destruição ambiental em larga escala.

Não há como nos livrar da dependência em cafeína, mas os viciados mais conscientes podem ao menos tentar reduzir o estrago que sua demanda causa. Plantações de café a pleno sol são uma catástrofe ambiental primeiro popularizada no Brasil. Mas há opções.

O plantio de cafeeiros sombreados por árvores – de preferência nativas – é em geral usado em plantios de arábica – o robusta é plantado principalmente para abastecer a indústria de café instantâneo, o crack cafeínico – e reconhecidamente resulta em cafés de qualidade bem melhor. Como um bônus, há benefícios para a proteção e fertilidade do solo e, embora estas plantações estejam longe de terem a riqueza dos habitats nativos, são uma opção muito mais amigável para a biodiversidade que os plantios a pleno sol e são uma opção para a construção de mosaicos de habitats naturais e terras agrícolas que combinam conservação com economia realmente sustentável.

Infelizmente, plantios a pleno sol estão dominando porque, na verdade, os mercados não se importam com a origem da droga que consomem.

Há poucos produtores de café plantado sob árvores no Brasil – p. ex. em Rondônia, Minas Gerais e Ceará – e encontrar este produto é muito mais fácil no exterior. Uma pena porque o Brasil é o maior produtor mundial e escolher melhor a droga que consumimos faz uma diferença de vida ou morte para outras espécies.

 

 

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  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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