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Brasil e África no foco dos debates da cúpula global da água

A realização desta cúpula global na África é emblemática. As florestas da Amazônia e do Congo são componentes vitais para a manutenção da água nos maiores continentes do Cone Sul

21 de fevereiro de 2022 · 2 anos atrás
  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

A 9ª edição do Fórum Mundial da Água (9° WWW) ocorrerá neste ano entre os dias 22 e 27 de março, em Dakar, no Senegal. Ao lado de corporações interessadas na comercialização da água, alinham-se governos menos progressistas, que acreditam que bens públicos possam ser geridos como ativos econômicos. Neste meio, repleto de conflitos de interesse, registra-se um alto índice de ingenuidade e falta de reflexão estratégica.  

De outro lado, reúne-se o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), alinhando-se com os princípios sacralizados pelas Nações Unidas que reconhece a água como um direito humano fundamental. Defende que a água deve ser gerida como bem público e com ampla participação social.     

A realização desta cúpula global na África é emblemática. As florestas da Amazônia e do Congo são componentes vitais para a manutenção da água e da vida nos maiores continentes do Cone Sul planetário. Os ecossistemas produtores de água e exportadores de umidade continental são essenciais para o equilíbrio climático contra os processos de desertificação. 

A Amazônia conta com avançadas pesquisas que relacionam floresta e o mapeamento dos rios voadores que beneficiam grande parte do continente sul-americano.  Os dados gerados na Bacia do Congo são assemelhados. Apontam que a região provê 75% a 95% das chuvas em seu território de abrangência, sendo ainda responsável por 17% da umidade da África Ocidental e sua transposição de umidade que beneficia em 30% as chuvas anuais nas terras altas da Etiópia.

Não há de se discutir gestão da água sem considerar os ecossistemas produtores. É esperado que o Fama apresente uma visão holística, ecossistêmica, com conteúdo crítico, inovador e contemporâneo em aspectos ambientais e de justiça social. 

Os maiores desafios da conjuntura hídrica global estão plasmados nos continentes do sul. É preciso possibilitar às comunidades do Brasil e dos países da África um espaço político para um abrangente debate sobre conservação e gestão da água em seu aspecto mais estratégico, como bem público e não privado.   

Continentes em rápida transformação e marcados por fortes traços de espoliação colonialista, a devastação dos ecossistemas vitais da América do Sul e da África guardam semelhança. As florestas estão sob contínua pressão de atividades econômicas para fins agrícolas, pecuários, sendo objeto de grilagem, extração ilegal de madeira e minerária, além de apresentarem impactos causados por geração de energia e sistemas de transporte. 

No Brasil a situação de vulnerabilidade ecossistêmica vem sendo intensificada na gestão de Jair Bolsonaro, marcada por desregulação dos instrumentos e dos setores de proteção ambiental para o atendimento dos setores econômicos mais retrógrados do agronegócio, enraizado na base política do governo e que controla grande parte do legislativo federal. Esta situação vem explicitando um grave conflito de interesses que não pode continuar impune, considerando especialmente a robusta legislação ambiental brasileira.    

O quadro é dramático. Essa incúria ocorre em plena desestabilização do clima planetário, amplamente conhecido e com agenda instituída por meio de conferências globais sequenciais da ONU desde 1995.  O envenenamento da atmosfera com mais de 160 toneladas de carbono por dia continua a provocar alterações climáticas intensas, com efeitos que vão das secas às chuvas excessivas. 

Sobrepondo-se aos fenômenos cíclicos como El Niño e La Niña, a intempestividade pela evolução das mudanças do clima potencializa zonas de convergência no Atlântico Sul, arremetendo massas de umidade continente adentro com consequências dramáticas para as comunidades, como assistimos em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro.  

Tanto o Brasil como os países da África precisam preparar-se para enfrentar suas vulnerabilidades climáticas diante de eventos extremos, o que também significa enfrentar processos de desertificação que fragilizam as seguranças hídrica e alimentar. Na África, a região subsaariana perde mais e mais terreno para desertos, exatamente na área limítrofe aos benefícios proporcionados pela umidade exportada pela grande floresta do Congo.   

Mundo afora, é a regra. A ONU alerta que um quinto das bacias hidrográficas do mundo passa por flutuações dramáticas e que 3 bilhões de pessoas convivem com a escassez e a poluição hídrica. 

Os ecossistemas hídricos da América do Sul e da África estão ameaçados. No Brasil, os biomas da Amazônia e do Cerrado registram retiradas gigantescas de cobertura vegetal, cedendo espaço a um modelo de agronegócio ambicioso e retrógrado. Na África a floresta da Bacia do Congo abarca sete países e é mais seca que a Amazônia. A República Democrática do Congo, que abriga 60% da floresta tropical, anunciou recentemente a suspensão da moratória madeireira, mesmo depois da constatação que entre 2012 e 2019 o desmatamento na região mais do que dobrou e estudos apontam o fim da floresta primária até o ano de 2100. 

Pesquisas globais apontam que algumas regiões como o Mediterrâneo e o Nordeste do Brasil estão mais secas, rumo à desertização. Mas o caso do Hemisfério Sul é um dos piores no cenário global, primeiro em função da realidade ecossistêmica tropical riquíssima em biodiversidade, o que implica maior vulnerabilidade. De outro lado, há um aumento da vulnerabilidade social trazida pela desertização, que avança no Nordeste e no Centro-Oeste do Brasil. 

Tanto no Brasil como na África o clima tornou-se decisivo para a infraestrutura. No Brasil o ex-diretor do Operador Nacional do Sistema Elétrico, Luiz Eduardo Barata, afirma que “um ano (de hidrologia) ruim não é mais algo episódico. Tem acontecido há vários anos e cada vez pior”. 

A realidade trazida por impactos climáticos fica cada vez mais clara. No Brasil a conta chegou e quem paga pelos desmandos históricos são sempre os mais vulneráveis, a população com menos recursos econômicos. Prevê-se que, em caso de blecaute hídrico, como já ocorre no Nordeste e já aconteceu episodicamente no Estado de São Paulo, o efeito sobre os menos favorecidos será muito maior, ficando o acesso à água restrito à população com maior poder econômico. Segundo dados atuais divulgados pelo IPCC, “um aquecimento de 2,7 graus Celsius colocaria até 112 milhões de pessoas em estresse hídrico na Mesoamérica, 28 milhões no Brasil e até 31 milhões no resto da América do Sul”.

O IPCC afirma ainda que “em cenários extremos, projeta-se que as cidades serão negativamente afetadas pelas secas até 2.100 vezes mais do que as secas mais severas do registro histórico”. Nesse sentido o Brasil apresenta um quadro expressivo de vulnerabilidades sociais, de abastecimento, saneamento e segurança. Essa realidade é mais perceptível nas metrópoles e em sua expansão periférica, cuja escala torna mais visíveis os desequilíbrios sociais e ambientais.

Há uma instabilidade social subjacente à escassez de água. A garantia de acesso à recursos naturais essenciais tem forte relação com a estabilidade, saúde e o bem-estar social, assim como com a prevenção de êxodos migratórios.  Água é elemento garantidor da paz, e deve ser um elemento de cooperação entre as comunidades para sua preservação – e não de disputa.

O Proam e outras instituições da América do Sul têm trabalhado para a construção de uma agenda para a sustentabilidade hídrica e social, o que inclui parcerias com a Argentina, no Programa Clima, Água e Paz sem Fronteiras, e a proposta de um tratado internacional no âmbito do Mercosul para a proteção dos rios voadores da Amazônia, que angariou forte apoio político de parlamentares representantes do Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina. 

No âmbito do Fama, edições anteriores geraram um Termo de Referência para a Água como Direito Humano Fundamental, que enfatiza a necessidade de aprofundamento do processo de participação social para a gestão da água, evitando-se riscos de uma gestão estatal burocrática e clientelista, privatizada e voltada prioritariamente aos interesses econômicos.    

No aspecto da participação social, deve-se preservar um espaço destacado para a ciência, para a percepção dos ecossistemas, dos efeitos antrópicos e climáticos, proporcionando a tomada de decisões bem informadas. Conselhos de Bacia Hidrográfica devem ser sistemas decisórios participativos e com a capacidade transformadora de ir além de monitorar a realidade e seus desafios. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) observa “que a informação ajudaria a tomada de decisões ambientais nos níveis mais altos”, ou seja, serviria à formulação de políticas públicas em nível nacional. 

É preciso criar e aprimorar espaços de controle social sobre a água. É preciso promover boas condições democráticas para os conselhos hídricos, com representatividade e legitimidade social, com boas regras de funcionamento e com condução democrática, privilegiando a democracia, a igualdade — e a prevalência de decisões que atendam aos interesses difusos da sociedade atual e futura.      

O Princípio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, a Convenção de Aarhus (Suécia, 1999) e o Acordo de Escazú (Equador, 2018) apontam que a melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a informação e a participação para todos os cidadãos interessados, um salto de qualidade onde os Estados sejam facilitadores e estimulem a conscientização e a participação popular, colocando as informações à disposição de todos.

Nos conselhos, deve-se evitar os desvios e dificuldades que dificultam as decisões pro sustentabilidade. As interferências no processo decisório são provocadas geralmente por velhos conhecidos da militância ambientalista: a especulação imobiliária nas áreas urbanas e a espoliação pelo latifúndio e atividades predadoras nas áreas rurais e florestais, geralmente associadas a governantes de espírito pouco republicano.

Além disso, a sociedade brasileira deve ser vigilante sobre os avanços irresponsáveis dos interesses econômicos para desregrar a legislação nacional. O Projeto de Lei 4546/2021, em tramitação no Congresso Nacional, pretende alterar a Política Nacional de Recursos Hídricos, para instituir um “mercado de águas”. Segundo Marcus Polignano, representante da sociedade civil e vice-presidente do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, “a proposta foi elaborada de forma antidemocrática, uma vez que não passou por discussão em nenhuma instância dos Comitês de Bacias Hidrográficas e nem mesmo no Conselho Nacional de Recursos Hídricos, apresentando inconsistências técnicas e inseguranças jurídicas ao privilegiar o interesse privado em detrimento do interesse público”. 

Nesses tempos difíceis, as comunidades do Brasil e dos países da África, incluindo setores econômicos e governos mais progressistas, precisam usar o espaço de debate no Senegal em 2022 para refletir e propor avanços para na proteção das florestas produtoras de água, avançando em processos de participação social para uma plena democracia ambiental.

Como costumamos dizer, a água, o pão e a paz de cada dia dependem de um conjunto de fatores que possibilitem sustentabilidade hídrica.

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