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Conexão de afeto

O que a morte de mais um lobo-guará me faz refletir sobre a reabilitação de filhotes da espécie

24 de setembro de 2024
  • Otávio Maia

    Médico veterinário, doutorando em Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Brasília

O projeto Sou amigo do lobo anunciou, no final de agosto, que o logo-guará Canelinha foi encontrado morto, com sinais de infestação por sarna sarcóptica. A necrópsia, realizada na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, revelou um conjunto de lesões que ajudam a entender a causa mortis. A sarna – doença parasitária também observada em cães domésticos – aparentemente é mais agressiva em alguns lobos do que em cães. Os lobos, contudo, respondem bem ao tratamento que pode ser feito pela administração oral de medicação. 

Canelinha foi resgatado em um canavial em chamas na zona rural do município de Mococa, interior de São Paulo, em agosto de 2021, com cerca de 90 dias de vida. Passou nove meses sob os cuidados do Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres – Cemacas e, em maio de 2022, foi transferido para o recinto de reabilitação construído no Mantenedor de Fauna Silvestre do Instituo Libio, no qual permaneceu por onze meses até a sua soltura em Mococa, SP, em abril de 2023. Em setembro de 2023, foi recapturado para avaliação; estava saudável, demonstrando readaptação satisfatória. Outras duas tentativas de recaptura, no entanto, em abril e junho deste ano, não foram bem-sucedidas. A recaptura depende da “vontade” do animal de entrar em uma das armadilhas dispostas na região em que se encontra. Durante 16 meses, Canelinha viveu livremente.

O primeiro experimento de reabilitação de um filhote de lobo-guará foi levado a cabo pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros – Cenap/ICMBio, órgão governamental que contou com a parceria de muitas outras instituições em experimentos posteriores. Em 2016, Lobinha foi resgatada no município de Araraquara, SP, durante a queimada de um canavial. Ao longo de 2017, ela foi mantida em um recinto de reabilitação na Serra da Canastra, sendo solta em dezembro daquele ano. Foi atropelada por uma motocicleta em estrada rural próxima ao Parque Nacional Serra da Canastra; durante sete semanas, viveu livremente.

Em julho de 2020, cinco filhotes — Araticum, Baru, Mangaba, Pequi e Seriguela — foram resgatados no sudoeste da Bahia e destinados à reabilitação em três localidades distintas. No Parque Vida Cerrado, se juntou a eles Caliandra, encontrada em uma estrada do município de Barreiras, BA, em agosto de 2020, com aproximadamente três meses de vida e muito debilitada. Soltos em 2022, Baru foi mordido por uma serpente peçonhenta; durante quatro meses, viveu livremente; Caliandra foi flagrada com três filhotes, consolidando o êxito da sua reabilitação. Seriguela não foi considerada apta para ser solta. Araticum e Mangaba, sob os cuidados do Centro de Fauna Trijunção e do Onçafari, foram soltos em maio de 2022. Mangaba viveu livremente durante sete meses, quando foi levada de volta ao cativeiro porque passou a “frequentar sedes de fazendas” na localidade de soltura. Não foram encontradas informações sobre Araticum. Pequi, sob os cuidados da Jaguaracambé, foi solta em abril de 2023 e atropelada em dezembro do mesmo ano. Durante nove meses, viveu livremente. O Parque Vida Cerrado também acolheu Jurema, Umbu e Ipê, encontrados em 2021, em uma plantação de feijão, com cerca de 30 dias de vida. O comportamento de Jurema a credenciou para reabilitação. Foi solta em abril deste ano. Dez filhotes encaminhados à reabilitação; uma consolidada, outra em curso.

Na ponta do lápis, sem contabilizar a participação voluntária de vários profissionais, a reabilitação de um filhote de lobo-guará é custosa. A construção do recinto – cujo projeto arquitetônico foi consolidado agregando melhorias sugeridas pelos experimentos realizados –, dependendo da localização, oscila entre 70 e 100 mil reais, incluindo a instalação de armadilhas fotográficas ou, se possível, de câmeras de vigilância conectadas à internet. Há despesas com os cuidados iniciais com o filhote resgatado: alojamento, antiparasitários (curativo e preventivo), vacinas e alimentação (ração canina, carnes, ovos e frutas). Uma vez no recinto de reabilitação, e dependendo mais uma vez da sua localização, somam-se os gastos com deslocamento (veículos e combustível), caixa de transporte, captura, criação ou aquisição de presas, remuneração do tratador, medicamentos, sedativos, anestésicos e equipamentos veterinários. À soltura e ao monitoramento, somam-se os custos do equipamento de radiotelemetria, radiocolar GPS (em torno de 25 mil reais), assinatura do serviço de monitoramento por satélite, smartphone ou notebook, deslocamentos e, eventualmente, armadilhas para recaptura. Dado o montante, o resultado da equação custo sobre benefícios é inelutável. Contudo, a compensação ambiental ou o apadrinhamento de projetos por pessoas e instituições endinheiradas são possibilidades. 

À esquerda, Pequi, resgata no sudoeste da Bahia, com cerca de 30 dias de vida. Foto: Ivan Mattos. À direita, croqui do recinto de reabilitação, esboçado pela arquiteta dra. Juliana Souza.

Na perspectiva de se criar um manual de reabilitação de filhotes, muito já se sabe. Mas, como propus em artigo anterior, há aspectos da ação que vão requerer adaptações e práticas singulares que deem conta das diferentes fitofisionomias das áreas de soltura (características da vegetação, que interferem na oferta de água, diversidade e abundância de frutos e presas; presença de plantações, fragmentos florestais, reservas legais e áreas de preservação permanente), da densidade demográfica (fazendas, assentamentos, aglomerações urbanizadas, cidades), do distanciamento de rodovias, da existência de sinalização, sonorizadores e passagens de fauna nas rodovias, da quantidade de estradas vicinais e da intensidade do tráfego. Há subjetividade na avaliação da aptidão do jovem lobo-guará para retornar à natureza, e variáveis incontroláveis como o temperamento de cada indivíduo — a reabilitação não tem controle sobre a capacidade de aprendizado dos animais ou sobre a manifestação e amadurecimento de seus instintos, entendidos aqui como impulsos interiores que fazem um animal executar inconscientemente atos adequados às necessidades de sobrevivência própria, da sua espécie ou da sua prole.

Todos que participam da reabilitação de um filhotes de lobo-guará, direta ou indiretamente, têm histórias para contar, emoções para compartilhar. Eu fui um dos que teve a extraordinária oportunidade de colaborar com a reabilitação da loba-guará Pequi, cuja história, também com final trágico, foi compartilhada aqui. Em condições naturais, ela e seus quatro irmãos teriam morrido ao ficarem órfãos. E se não tivessem ficado, difícil apostar que a seleção natural daria a mesma chance de sobrevivência aos cinco. Talvez a seleção natural e seus dogmas desconhecidos expliquem porque apenas Pequi tenha conseguido, diferente dos seus irmãos, ir tão longe na reabilitação.

Ao longo dos meses em que estive com ela, uma, duas, às vezes três vezes por semana, acompanhando o seu crescimento, os seus horários, as suas preferências alimentares, os seus percursos pelas trilhas firmadas no recinto, a evolução das suas habilidades de caça, interagi e desnudei traços da sua personalidade. Os lobos-guarás têm a sua natureza, mas cada indivíduo tem as suas idiossincrasias, as quais, creio, não caracterizam antropomorfia. Essas idiossincrasias estariam ligadas à seleção natural? Pequi era altiva, curiosa e dócil – com quem queria ser. Agressividade comedida quando o momento exigia manter distância dos olhares dela sobre a presa que, uma vez oferecida, passava a ser dela, naturalmente. 

Após a soltura, também fui tomado pela “ansiedade do zelo” que assombra todos os envolvidos no monitoramento. À medida que o tempo passava – os mapas gerados a partir das localizações enviadas pelo radiocolar mostravam a ampliação progressiva do tamanho das áreas visitadas repetidas vezes, deslocamentos longos em busca de um local para se estabelecer –, nos acostumamos com as constantes travessias de rodovias e aproximação às áreas urbanizadas ou populosas. Numa dessas áreas, ela foi filmada por um morador; quanto mais ele tentava se aproximar dela, mais ela se afastava dele. Aprendemos a conter o ímpeto de retirá-la de uma localidade, considerada pelos observadores – não por ela – como de risco.  Aprendemos a confiar no aprendizado dela, na perspicácia que se desenvolve, no conhecimento impresso em seu DNA, no “instinto de sobrevivência”. É preciso registrar que Pequi jamais tentou “matar uma galinha”, mesmo quando esteve rondando galpões da avicultura, onde era tida, não como uma ameaça, mas como nobre visitante, cuja presença era motivo de alegria, uma quase honraria. Aparentemente, não se envolveu em brigas com cães domésticos; procurou se manter longe deles.

Durante o monitoramento, eu fui atrás da Pequi duas dezenas de vezes. Às vezes, sozinho, às vezes acompanhado; às vezes munido do equipamento de radiotelemetria, às vezes só do GPS e da sorte; sempre carregando uma merendeira com as iguarias mais apreciadas. Nos encontramos no mato mais de uma dezena de vezes para que a saúde dela fosse avaliada. Às vezes em locais de fácil acesso; às vezes subido e descendo morros, atravessando grotas, sofrendo com o cansaço dos sedentários. Os encontros duravam menos de 10 min e eram mais ou menos assim: eu me aproximava do ponto indicado pela radiotelemetria ou pelo GPS, a chamava e aguardava. Às vezes, eram necessários muitos chamados; às vezes, só um, às vezes, nenhum. Às vezes ela simplesmente não dava as caras embora soubesse que estava próxima por conta da intensidade do sinal da radiotelemetria. Ela se aproximava choramingando, cabeça baixa, e se jogava no chão; se deixava examinar, era possível abrir e examinar a sua boca, a genitália, entre os coxins, os ouvidos, era possível dar a ela até mesmo uma medicação injetável. Em seguida, era oferecida a merenda, uma banana ou um pedaço de fígado sem temer que os meus dedos fossem juntos. Às vezes ela comia muito; às vezes pouco. Barriga cheia, pé na estrada; ela se virava e partia, voltava para a sua vida solitária de lobo-guará selvagem. E quando eu a acompanhava, ela apertava o passo para logo desaparecer. Eu quero crer que ela pensava o seguinte: “Obrigado por ter vindo. Estou contente por você estar contente. Obrigado pelo alimento que me dará energia para as próximas horas. Agora, vou seguir o meu caminho, a minha natureza. Eu vou, você fica”. Se Pequi ainda estivesse viva, provavelmente teria acasalado e nos apresentado os seus filhotes como fez a memorável leoa Elza, cuja reabilitação, nos anos de 1960, comoveu os da minha geração.

“Não há palavra que dê conta de descrever os encontros com Pequi. Talvez transcendente. Havia uma conexão enraizada no respeito e na confiança. Ela confiava em mim e eu me alegrava com a presença dela. […] As breves interações durante o monitoramento não interferiram negativamente na adaptação à vida selvagem, pelo contrário, a ‘conexão de afeto’ só ofereceu facilidades”. Fotos: Otávio Maia.

Não há palavra que dê conta de descrever os encontros com Pequi. Talvez transcendente. Como disse uma amiga, os encontros causavam maravilhamento, pura demonstração do “valor intrínseco” da natureza. Havia uma conexão enraizada no respeito e na confiança. Ela tinha plena confiança em três pessoas do time da reabilitação e não se sentia ameaçada por quem estivesse ao lado dessas pessoas. As breves interações durante o monitoramento não interferiram negativamente na adaptação à vida selvagem, pelo contrário, a ‘conexão de afeto’ só ofereceu facilidades. Por exemplo, quando Pequi precisou ser recapturada para substituição do radiocolar, uma equipe se deslocou até a localização informada pelo GPS. A localidade parecia ser a escolhida por ela para se estabelecer, formada por cinco fragmentos de cerrado incrustrados em duas propriedades produtoras de grãos. A pesada caixa de transporte, de madeira, foi carrega até a mata na qual ela se encontrava. O tratador a chamou, ela apareceu e foi tranquilamente conduzida para dentro da caixa. Sem armadilhas, sem tranquilizantes. O mutirão carregou a caixa até a caminhonete e se dirigiu ao recinto de reabilitação. Após descansar do forte calor, um veterinário se aproximou da Pequi e aplicou um tranquilizante. Sem cambão, sem zarabatana, sem armadilha. Contenção química por aproximação. O colar foi substituído, amostras de sangue coletadas, Pequi foi pesada (registrou ganho de peso em relação ao dia da soltura) e examinada (sem parasitas externos), dados do implante subcutâneo (projeto Ritmos da Vida) coletados. Na manhã seguinte, acordada dentro da caixa de transporte, foi levada de volta ao local da recaptura e solta para exercer seus instintos… ou sabedoria.

A reabilitação é uma ferramenta de conservação que oferece ao espécime resgatado a possibilidade de retornar à natureza. O êxito da ação, todavia, depende da transposição de um conjunto de desafios ao longo das fases do processo, tanto para a equipe envolvida quanto para o animal. O que funciona para um filhote pode não funcionar para outro. De maneira simplificada, significa dizer que assim como o Brasil não é para principiantes, a reabilitação também não é. Nesse cenário complexo, penso que a ‘conexão de afeto’ é componente fundamental para aumentar a chance de a reabilitação de filhotes de lobos-guarás ser bem-sucedida.

Reabilitação, de acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), é definida como “ação planejada que visa à preparação e ao treinamento de animais que serão reintegrados ao ambiente natural”. Conceitualmente, é diferente de reintrodução, definida como “ação planejada que visa a reestabelecer uma espécie em área que foi, em algum momento, parte da sua distribuição geográfica natural, da qual foi extirpada ou extinta”. A reabilitação de lobos-guarás está prevista no Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Canídeos Silvestres (PAN Canídeos). Se você quiser saber o que já foi produzido de conhecimento sobre os lobos-guarás, acesse a Bibliografia corrente sobre o lobo-guará Chrysocyon brachyurus [1811 – 2024], que reúne mais de mil referências sobre a espécie (teses, dissertações, monografias, livros, manuais, artigos em periódicos científicos e revistas indexadas, comunicações científicas em congressos, simpósios e oficinas, publicações técnicas e de divulgação científica, reportagens, multimeios, referência históricas, referências para crianças, o lobo-guará como tema para manifestações artísticas e diversos uso), compiladas desde 1995.

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Comentários 4

  1. Alexandre diz:

    Me emocionei com este relato. Sei como é a conexão homem-animal, quando ela é saudável. Pois tenho muitos caes, todos resgatados das ruas. Parabéns ao trabalho de vcs!


    1. Otávio Maia diz:

      Obrigado, Alexandre. Também tenho alguns cães (17) resgatados das ruas, abanados ou vítimas de maus-tratos. Saudações caninas!


  2. VALERIA JUCELY LEMOS DELLA ZUANA diz:

    Lindo trabalho que vocês fazem com os lobos Guará. Deus continue os abençoando grandemente e que vocês tenham os recursos financeiros necessários para levar adiante este projeto. Linda história de amor e interação com a Pequi, triste por ela ter falecido drasticamente.


    1. Otávio Maia diz: