Reportagens

Além da última moradia

Trabalho pioneiro em oito bacias hidrográficas no Amazonas revela ameaças e oportunidades da presença ribeirinha para a conservação.

Andreia Fanzeres ·
13 de abril de 2010 · 14 anos atrás

Pescador no Rio Maués (foto: Luke Parry)
Pescador no Rio Maués (foto: Luke Parry)
Pouca gente teve a oportunidade de conhecer a Amazônia tão a fundo como pesquisadores que empreenderam em 2007 oito expedições para estudar as consequências do êxodo das populações ribeirinhas em florestas tropicais. Eles foram em busca do último morador da última casa do último rio de uma bacia hidrográfica em algumas das áreas mais remotas do estado do Amazonas, e acabaram de publicar o resultado dessa pesquisa na revista científica Conservation Letters. O trabalho não tem precedentes nem na Amazônia ou em qualquer outra floresta tropical no mundo.

“O impacto do êxodo rural para as florestas e rios é ainda pouco compreendido”, diz Luke Parry, da Universidade de East Anglia (Reino Unido), um dos autores do estudo. O trabalho é assinado também por Carlos Peres, Brett Day, da mesma instuição, e Silvana Amaral, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). A escolha do estado do Amazonas não foi por acaso. Devido à sua extensão, representa a região mais importante para o futuro da floresta amazônica, e mesmo com 97% de sua vegetação preservada, é bastante vulnerável à aproximação do arco do desmatamento, particularmente em municípios como Lábrea, influenciados pelas pressões de desmate vindas de Rondônia e das estradas vicinais a partir da BR-319 (Porto Velho-Manaus).

Deslocamentos das expedições. Cidades indicadas em amarelo: Barcelos (rio Aracá), Coari (rio Coari), Lábrea (rio Ituxi), Maués (rio Maués/Parauari), Nova Olinda do Norte (rio Abacaxi), Pauini (rio Pauini), Tapauá (rio Jacaré), Tefé (rio Tefé). Clique para ampliar
Deslocamentos das expedições. Cidades indicadas em amarelo: Barcelos (rio Aracá), Coari (rio Coari), Lábrea (rio Ituxi), Maués (rio Maués/Parauari), Nova Olinda do Norte (rio Abacaxi), Pauini (rio Pauini), Tapauá (rio Jacaré), Tefé (rio Tefé). Clique para ampliar

Para atingir áreas tão isoladas, Parry e Peres iniciaram viagens que duraram 11 meses por bacias hidrográficas distintas. “Para chegar em Pauini, no alto Purus, eu fiquei esperando transporte por mais de uma semana em Lábrea e, no final, peguei uma carona com um rebocador e balsa de boi, que demorou mais de sete dias para chegar lá”, recorda-se Parry, que empreendeu sozinho a maioria das viagens e sentiu na pele como é difícil adentrar na Amazônia.

“Ao longo de todas as campanhas, conseguimos chegar até o último domicílio habitado de cada rio. O lugar mais remoto foi a colocação de Pedro Segundo, no rio Pauini, a 730km da cidade ou 20 dias a remo para as três famílias que moram lá”, diz. 

De acordo com o estudo, 77% da população rural nos nove municípios pesquisados viviam a menos de 100 km do centro urbano mais próximo. Para além dessa distância, o número de habitantes cai abruptamente. Através das entrevistas que realizou ao longo dos 11 meses nos rios amazônicos, Parry descobriu que muitos extrativistas que viviam em áreas mais remotas passaram a fixar residência mais perto dos centros de comercialização a partir dos anos 80. Isso explica a existência de moradias deixadas para trás.

“Certamente em muitas áreas já ocorre regeneração avançada de floresta secundária onde antes havia casas e roçados, quando não vilarejos relativamente prósperos”, dizem Parry e Peres. Segundo eles, enquanto havia moradores nesses locais nunca existiu desmatamento em grande escala, e após a sua saída tem sido observado um crescimento de atividades comerciais como a pesca, a extração de madeira e a captura de quelônios e seus ovos, com operadores baseados em pequenos centros urbanos como Lábrea e Pauini e em capitais como Manaus, Rio Branco e Belém.

Vazio social não impede exploração

Aluna de escola em vilarejo no rio Tefé (foto: Luke Parry)
Aluna de escola em vilarejo no rio Tefé (foto: Luke Parry)

Obviamente, numa região tão vasta e diversa como o Amazonas, essa dinâmica é complexa e varia de lugar para lugar. No entanto, os pesquisadores puderam notar que os impactos de maior escala são sempre motivados pelas demandas urbanas, de onde partem os barcos mais potentes para atingir áreas mais remotas, visando a exploração de madeira de lei ou estoques de peixes mais lucrativos.

“Em cidades como Coari, a presença atual de uma população urbana e relativamente próspera inflaciona preços em até 100 reais por tracajá (Podocnemis unifilis), o que incentiva o extrativismo pouco regulamentado em áreas ainda mais remotas”, exemplifica Parry. Coari é hoje o terceiro município brasileiro que mais se beneficia com a arrecadação de royalties por causa da exploração petrolífera.

Do mesmo modo, eles comprovaram que ao longo do rio Tefé há barcos de pesca que navegam até 500 km além da casa do último morador ribeirinho em busca de estoques de peixe de alto valor de mercado como pirarucu, tambaqui, matrinxã e surubim.

Praticar agricultura em pequena escala a centenas de quilômetros da cidade mais próxima geralmente tem custos de escoamento proibitivos para a maior parte da população local. Mas, navegando por lugares como o rio Ituxi, Parry encontrou fazendas ativas a mais de 350 quilômetros dos centros de comercialização. “Isso é um exemplo de grilagem. Provavelmente esses mesmos grandes latifundiários estão envolvidos em desmatamentos iniciados a partir da BR-319”, sugere o pesquisador.

Rio Abacaxi, onde moradores impediram grilagem. (foto: Luke Parry)
Rio Abacaxi, onde moradores impediram grilagem. (foto: Luke Parry)

No rio Abacaxi, moradores de comunidades mais afastadas disseram que anos atrás encontraram um grupo de grileiros descendo o rio, desde as cabeceiras (próximas à região da BR-230 Transamazônica) demarcando lotes de terra. Segundo eles, o movimento só foi interrompido ao encontrar os moradores, que fizeram denúncia ao Ibama. “Achamos que de certa forma existe esse ‘vácuo social’ e que a presença de moradores locais pode fazer uma grande diferença em termos de efetividade de conservação de recursos nessas áreas”, diz Parry, convencido de que em locais tão remotos o poder público não vai investir na fixação de funcionários, mesmo de órgãos como o Ibama.

Só que esta não é uma equação tão simples. “A chegada de grandes fazendeiros e do setor privado pode também interessar do ponto de vista econômico aos ribeirinhos, mesmo com condições sócio-econômicas desfavoráveis a longo prazo”, opina Parry. Nesses locais, a possibilidade de receber qualquer dinheiro é bem vinda diante das dificuldades de obtenção de recursos de outras fontes.

Parry fez as contas. De todas as comunidades amostradas, 49.4% das famílias que moram a menos de 100 km das cidades mais próximas recebiam em 2007 as remessas do programa federal Bolsa Família. Dos que vivem além dessa distância, apenas 11.1% são beneficiados, seja por falta de acesso ao programa, falta de documentação ou trânsito infrequente aos centros urbanos locais.

O pesquisador Luke Parry (foto Arquivo Pessoal)
O pesquisador Luke Parry (foto Arquivo Pessoal)

“Precisamos de mais esforços de pesquisa sobre os impactos da pressão comercial para essas populações de fauna e flora em áreas remotas da Amazônia, mesmo porque o consumo de proteína animal, incluindo peixe e carne de caça, tem um papel crucial para os ribeirinhos na Amazônia”, diz Parry.

Este estudo reforça a tese que tem sido defendida há pelo menos 15 anos por Carlos Peres e John Terborgh para o estabelecimento de governança em áreas tropicais remotas. Uma das maneiras, no caso específico amazonense, é que postos de fiscalização sejam instalados estrategicamente na entrada dos rios tributários para monitorar o acesso de não moradores que tenham intenção de explorar legal ou ilegalmente o rio inteiro.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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