Reportagens

A saga dos Nawa, declarados extintos que sobrevivem e lutam contra o silenciamento e por seu território

Indígenas batalham pelo reconhecimento étnico e escancaram a dificuldade de garantir o bem-viver em seu lugar ancestral. Segunda maior cidade do Acre foi fundada na apropriação da identidade do povo tradicional

Tarisson Nawa ·
11 de novembro de 2021 · 2 anos atrás

Já era final da Assembleia do povo Inu Kuî (Nukini), em 2000, na Aldeia República, quando Rosenilda (Rose) e Lindomar Padilha foram convidados pelo líder Paulo Nukini para visitar a Serra do Divisor, um dos pontos turísticos do Acre. Os dois, que trabalham no Conselho Indigenista Missionário (CIMI) – organização vinculada à Igreja Católica que apoia o protagonismo dos povos indígenas – estavam animados com a participação e discussão política que aconteceu numa das aldeias no extremo oeste do Brasil, na divisa com o Peru. Rose e Lindomar voltaram do passeio no Rio Moa e resolveram parar, a pedido da liderança Inu Kuî, na casa de Dona Chica do Celso (Francisca Nazaré da Costa), 64 anos, cabelos grisalhos, rosto com marcas de anos de trabalho sob o sol da roça e de esforços com a produção da borracha.

Desembarcaram na “colocação” 7 de setembro – hoje aldeia – do lado direito do Rio Moa e dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD), a bajola (barco) foi amarrada para não ser levada pelas águas barrentas. No caminho para chegar à casa de Dona Chica, uma surpresa para a indigenista do CIMI: vários túmulos eram visíveis no quintal. A receptividade do ribeirinho é regra e dona Chica convidou os visitantes para entrar. Ofereceu café e os indigenistas perguntaram o que significavam aquelas sepulturas. “Ah, isso é coisa de índio”, exclamou a senhora. Elas, então, admiraram-se com a resposta da anfitriã. “Minha filha, nós somos Nawa!”. Falava de um povo silenciado.

Os Nawa não foram vencidos, mas sofreram várias violências, ora da bala, do fogo e das doenças, ora da caneta. Foram documentados como “extintos” quando fugiram do seu território ancestral, em Cruzeiro do Sul, também no Acre. Segundo laudo antropológico de 2002, escrito por Delvair Montagner, em 1893 já não existiam mais Nawa por lá, de acordo com documentos de criação da cidade. A etnia buscou a floresta para permanecer viva e nessa busca, a narrativa histórica conta que o povo “abandonou a localidade , a partir de 1870, rumando para o Peru pelos altos rios, em consequência de terrível epidemia”, como aponta o Diário Oficial do Município de Cruzeiro do Sul, publicado em 2016.

Vista do mirante do Parque Nacional da Serra do Divisor. FOTO: Luiza Puyanawa

A Terra Indígena Nawa encontra-se em identificação pela Portaria 1.071 de 19 de novembro de 2003, com um território de 83.218 hectares na Serra do Divisor ou Serra da Contamana. A população é de 363 indígenas pelos dados da Secretaria de Meio Ambiente do Acre. Os grupos familiares estão localizados nas margens dos igarapés Venâncio, Tapado, Jezumira e Recreio, afluentes do Rio Môa, nas comunidades homônimas.

A posição da anciã Nawa Chica do Celso, hoje com 85 anos, contrapõe-se aos documentos históricos de criação de Cruzeiro do Sul, no Acre. O povo Nawa lutou para sobreviver no Vale do Juruá e as trajetórias individuais de lideranças mais velhas demonstram anos de adaptação na floresta frente à imposição de modelos de produção econômica. A empresa seringalista na região cooptou os indígenas, que viraram trabalhadores para atender o mercado global da borracha. Os Nawa lutam hoje pelo reconhecimento étnico negado a eles e escancaram a dificuldade de garantir o bem-viver dos indígenas e seu território ancestral.

Cruzeiro do Sul, fundada no discurso de “abandono” dos indígenas Nawa da região, onde hoje está localizada a segunda maior cidade do Acre, é conhecida como “terra dos Náua”. Houve ali uma apropriação da identidade étnica. As cidades brasileiras foram fundadas na morte de muitos povos e o que fica é a tentativa fajuta de respeito à memória indígena batizando equipamentos e lugares com o nome do povo. O município de Maués, no Amazonas, por exemplo, leva o nome de um povo que habita a região: os Sateré-Mawé. Cruzeiro do Sul, desde a década de 1930, utilizava o nome do povo Nawa como forma de apropriação indevida da identidade indígena: na cidade havia a rádio Voz dos Náuas; o Náua Futebol Clube; o guaraná Nauense; hoje ainda há o Teatro dos Náuas e o nome indígena vai até para as mesas com o Café Náuas. A Terra Indígena Nawa continua sem demarcação há 21 anos e o território carece de serviços públicos de qualidade.

A borracha Nawa e as dificuldades do período da seringa

Quem vê Railson Nawa hoje, afetado pela idade e anos de trabalho, não tem noção das habilidades do líder. No cacicado há 20 anos, foi tocador, caçador, carpinteiro, serrador, agricultor, barqueiro, entre tantas outras atividades que buscou desenvolver para continuar sobrevivendo na floresta. Apesar de hoje ser assessor de assuntos indígenas da Prefeitura de Mâncio Lima (AC), o que marca a vida do cacique é a profissão de seringueiro.

Nascido em 1973, Railson cresceu no contexto do segundo boom da borracha no Acre. “Tirei muito caucho ainda na mata e depois a gente foi trabalhar na agricultura”, narra. “Eles tinham muito medo dos patrões. A gente já tinha os exemplos que eles mandavam até matar. Então a gente vivia na ditadura mesmo”.

As histórias de morte ainda hoje são frequentes nas memórias do Nawa. Chica do Nilton, detentora do conhecimento de cerâmica, relata que para não morrerem, os indígenas se dispersaram – os habitantes de Novo Recreio, na Terra Indígena Nawa, são uma das grandes famílias sobreviventes: “Meu filho, o que ouço é que, quando houve o tiroteio, né, um bocado dos Nawa foram pro ‘Estirão dos Náua’, um bocado veio pro Rio Azul e do rio Azul foram pra Serra do Moa e voltaram e foram tudo pro Novo Recreio. E ficou espalhado por aqui e por acolá”.

Nomeado em 1854 por reunir várias malocas (tabas) Nawa com população muito grande de indígenas, o Estirão dos Nawa é considerado um dos lugares onde havia a maloca ancestral do povo. Na verdade, a presença Nawa acontece a partir da ancestral Mariana, que se casou com José Peba e subiu o Rio Moa para construir morada às margens do igarapé Novo Recreio.

Mariruni (Mariana) – “a última índia Nawa”. FONTE: Livro O Juruá Federal (1930)

Mariana teve oito filhos, todos já falecidos. Francisco Ferreira da Costa, o Chico Peba, é um dos netos remanescentes. O indígena que hoje vive no Estirão do São Domingo, em Mâncio Lima, conta uma das várias sagas pelas quais passou na época da seringa. Migrou para várias colocações antes de procurar, em 1983, a zona urbana como saída para sobreviver.

Maria Solange Lima da Costa, filha de Chico Peba, relembra a vida no período da seringa: “Nossas vidas eram muito sofridas. Na época, não existia renda nenhuma através de governo, essas coisas. A gente tinha que ir cedo pra roça. O que você fazia da roça e da seringa era a sobrevivência. No verão, meu pai cortava seringa e no inverno ia para agricultura”. Solange conta que a família “fazia farinha para vender algum pouquinho quando achava alguém que comprasse, até o final do inverno”. As condições eram terríveis até para dormir. “O colchão era com palha de banana: tirava o capim, brocava (cortava) e enchia para poder deitar em cima”, descreve Railson.

Com a chegada dos sindicatos dos trabalhadores da seringa, as leis afetaram o lucro dos patrões, que dobraram a aposta na violência e na terra sem lei. Nego Beba, irmão de Chico, recorda o “absurdo” de pagar 70kg de borracha aos donos do negócio, sem ganhar nada em troca. O único “benefício” era morar na colocação e poder usufruir da terra. Com a chegada do sindicato, os indígenas pagariam somente 10% de toda a produção e poderiam vender o restante. A mudança detonou vários conflitos na região com os indígenas seringueiros, forçando a migração para a cidade. Os que ficaram se voltaram à agricultura, escoando a produção excedente para as crescentes áreas urbanas.

Os indígenas passaram a produzir o que comiam e conseguiram se manter na floresta.

O parque e o segundo conflito com os Nawa

O Parque Nacional da Serra do Divisor foi criado em 1989, dentro do conceito de impedir a interferência humana, de brancos ou indígenas, na região. Os Nawa foram notificados em 2000 que deveriam sair do parque para um assentamento definido pelo Incra. A retirada forçada do povo Nawa de seu território ancestral desconsiderava a presença indígena em muitos desses espaços de proteção.

Railson Nawa aponta que a definição da área do Parque Nacional da Serra do Divisor foi uma decisão de gabinete, sem considerar que os povos indígenas sempre cuidaram e protegeram as florestas. Mesmo após o reconhecimento do direito da consulta livre, prévia e informada a partir da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), manteve-se o conflito. Sem diálogo, os Nawa derrubaram as placas que demarcavam o parque.

“Nós nos reunimos, todo mundo, e fomos tirar as placas que o governo tinha posto dizendo que em toda aquela área era Parque Nacional”, relembra a líder Lucila Nawa. “Jogamos todas n’água. Onde nós víamos que nos pertencia, nós tirava (sic)”.

Apesar de o parque ter sido criado em cima de suas casas, os Nawa apoiaram sua criação, mas defendem o diálogo com o povo, ouvindo moradores e entendendo as especificidades, a cultura e a história das gerações em uma terra ancestral. “Nós só ‘queria’ que eles nos ‘respeitasse’ e que a gente tivesse também a nossa terra”, explica Lucila.

A estrada que corta o corpo-território Nawa

Em 2020, os Nawa tomaram conhecimento de mais uma ameaça. Após anos de diálogo com o ICMBio e o reconhecimento do direito de usar o território do parque para atividades produtivas coletivas e de sobrevivência, ressurgiu a ideia da construção de estrada entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa, no Peru.

A estrada projetada seria a continuidade da BR-364 e, segundo o discurso dos idealizadores, uma forma de “tirar a região do Vale do Juruá do isolamento”. Os indígenas rapidamente se posicionaram contra a falta de diálogo para construção. De acordo com o Dossiê do Instituto Fronteiras, o Parque Nacional da Serra do Divisor, local onde habitam os Nawa, já previa a construção da estrada. Entretanto, os deputados da bancada ruralista do Acre criaram projeto para extinguir o parque e flexibilizar as leis ambientais. “Nunca fomos contra o parque e sempre quisemos diálogo para todas as ações que nos afetam. Essa estrada comete o mesmo erro do passado. Querem nos matar quando atacam nosso território”, constata Lucila Nawa.

Segundo os Nawa, a proposta de extinção do parque para criar a estrada pode aumentar do desmatamento desenfreado; acentuar a grilagem e o loteamento de terras em região protegida, afetando a biodiversidade de aves, anfíbios e mamíferos pela qual o Acre é reconhecido; aumentar os impactos sociais, como exploração sexual, disseminação de drogas e DST’s; acentuar conflitos de recursos e contaminação de rios e recursos pesqueiros; e afetar as populações nativas com a possibilidade de invasões de Terras Indígenas.

Em 7 de junho passado, cansados de esperar pela política falha do governo brasileiro, os Nawa se organizaram em barcos coletivos com 30 indígenas e às 7h21 se deslocaram para o limite da Terra Indígena. O objetivo era realizar o sonho das lideranças: demarcar o território com as próprias mãos. A autodemarcação também buscava a proteção contra os invasores. No governo do presidente que disse que não iria demarcar “nenhum centímetro de Terra Indígena”, o seu objetivo tem sido mantido. De acordo com dados do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), foram registrados no ano passado 182 assassinatos, número recorde desde que o levantamento começou a ser divulgado, em 1995.

Para realizar a autodemarcação foram dois dias de viagem até a fronteira pelos igarapés Novo Recreio, Zumira, Furquilha, Tapada e Boa Vista, este último já no divisor da terra. As crianças foram incluídas na jornada pelo aprendizado na prática da luta do povo e para fortalecer o senso de identidade com o território no qual habitam e do qual sobrevivem.

“Se os órgãos que executam a política indigenista oficial do Estado não garantem o monitoramento da Terra Indígena, nós, povos indígenas, temos a obrigação de cuidar da nossa casa, da nossa mãe terra e do nosso território, local sagrado, morada dos espíritos da mata, das malocas dos nossos antigos e dos nossos ancestrais que estão enterrados no território no qual executamos fiscalização”, declarou o cacique Railson. Ao todo foram seis dias de atividades dentro da Terra Indígena, realizando o trabalho de “picada” – a trilha dentro da mata para marcar o limite do território.

As várias ameaças à terra indígena Nawa criou uma carapaça de jabuti que a cada ano se fortalece. E cada ofensiva para derrubar a floresta fortalece mais ainda a busca pela sobrevivência do povo e das futuras gerações. Mesmo com o discurso de “extintos”, os Nawa mostram que continuam vivos na defesa da cultura, do território e da vida. A mesma floresta que dá o sustento, garante a força para continuar a defesa da natureza, dos espíritos e dos seres sagrados que nela habitam.

Vozes da Floresta oferece bolsas-reportagens e mentorias para jovens comunicadores indígenas. Em 2021, quatro selecionados produziram reportagens abordando as discussões da COP26 e como elas impactam seus povos e territórios. O projeto tem apoio do British Council e parceria com Colabora e ((o))eco.

  • Tarisson Nawa

    Indígena do povo Nawa (Mâncio Lima, Acre), da Aldeia Novo Recreio. Graduado em Comunicação Social - Jornalismo (UFPE), mestrando em Antropologia Social (PPGAS/MN-UFRJ). Atua na área da comunicação, com ênfase em gestão da comunicação e em reportagens especiais sobre a temática indígena. Produziu o documentário Memórias Nawa - das malocas ao contexto urbano.

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