Reportagens

Mata Atlântica nordestina: a ferro, fogo e resistência

A porção do bioma ao norte do rio São Francisco é a mais ameaçada do país. As perdas já ocorridas são provavelmente irreversíveis, mas muito ainda pode e vem sendo feito para salvar este precioso relicto de alta biodiversidade

Carolina Lisboa ·
22 de março de 2022 · 2 anos atrás
“Sabe-se o que era a mata do Nordeste, antes da monocultura da cana: um arvoredo ‘tanto e tamanho e tão basto e de tantas prumagens que não podia homem dar conta’. O canavial desvirginou todo esse mato grosso do modo mais cru: pela queimada. […] Só a cana devia rebentar gorda e triunfante do meio de toda essa ruína de vegetação virgem e de vida nativa esmagada pelo monocultor”.

Com essas palavras, o escritor pernambucano Gilberto Freyre, autor do clássico Casa-Grande & Senzala (1933), resumiu a principal causa recente da devastação da Floresta Atlântica nordestina, em seu livro Nordeste (1937). Ele foi, em sua época, um dos grandes questionadores da destruição das matas, na primeira metade do século XX.

E Freyre tinha razão em se preocupar. O setor nordeste do bioma Mata Atlântica foi onde houve mais devastação, iniciada pelas populações indígenas tupi que ocupavam as áreas litorâneas e praticavam a agricultura de coivara, seguida no período colonial com a derrubada das matas para a obtenção do pau-brasil e, posteriormente, para a implantação da monocultura açucareira.

Paciente na UTI

E até hoje, esse pouco de floresta remanescente continua se perdendo. Segundo o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica – período 2019-2020, os estados do Ceará, Alagoas e Rio Grande do Norte estão entre os dez que tiveram aumento no desmatamento entre 2019 e 2020.

Atualmente, a cobertura vegetal da floresta atlântica nordestina é basicamente formada por um arquipélago de pequenos fragmentos florestais, que geralmente não chegam a 50 hectares, circundados por uma imensidão de plantações de cana-de-açúcar, pastagem e outras culturas, o que representa uma grande ameaça para a biodiversidade local.

Para Severino Pinto, diretor-presidente do Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (Cepan), essa floresta é um “hotspot dentro de um hotspot”, ou seja, é uma área com alta biodiversidade, rica em espécies endêmicas e altamente ameaçada dentro da já crítica Mata Atlântica. “Os serviços ambientais prestados por essa floresta são importantíssimos para processos econômicos e de provisão da região. Contudo, é um paciente na UTI, e seu suprimento de oxigênio vem sendo reduzido continuamente”.

Centro de Endemismo Pernambuco

Na Mata Atlântica do Nordeste uma porção merece destaque especial. Localizada ao norte do rio São Francisco, abrangendo os litorais dos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, com pequenos encraves interiores de florestas de várzea e altitudinais no Ceará e Piauí conhecidos como brejos de altitude, está uma floresta que abriga várias espécies endêmicas [que só existem nessas áreas], muitas delas ameaçadas de extinção. Essa região constitui um importante centro de endemismo na América do Sul, o Centro de Endemismo Pernambuco (CEP).

O professor Marcelo Tabarelli, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica que o termo foi criado pelo botânico Ghillean Prance, que trabalhou na região Neotropical nos anos 70. “Quando o ornitólogo José Maria Cardoso da Silva e eu começamos a trabalhar na UFPE, em 1998, percebemos que existia sim um Centro de Endemismo, não restrito a Pernambuco, mas na floresta atlântica ao norte do rio São Francisco”.

O pesquisador explica que há um conjunto de espécies, de vários grupos, que permite um reconhecimento do CEP como uma unidade biogeográfica distinta da Mata Atlântica. “Ela difere da floresta ao sul do São Francisco porque é muito mais um prolongamento da floresta amazônica do que uma expansão da floresta atlântica do sul e sudeste. É mais uma floresta amazônica no Nordeste do que uma expansão da Mata Atlântica”.

Mapa mostra a região do Centro de Endemismo Pernambuco e os fragmentos remanescentes de Mata Atlântica. Arte: Julia Lima.

A extensão original das florestas do CEP era de 5.640.000 hectares (ha). O pesquisador Thiago da Costa Dias avaliou recentemente as florestas remanescentes do CEP e concluiu que há somente 567 mil ha de cobertura, aproximadamente 10% do que havia. Entre os anos de 1988 e 2020, o CEP perdeu 246.782 ha de floresta e 209.596 ha vem sendo regenerados nesse período. Assim, restam apenas 357.397 ha de florestas maduras, com mais de 32 anos, cerca de 6% das florestas originais.

Assim como ocorreu na Mata Atlântica como um todo, as matas do CEP passaram por um rejuvenescimento e perda de floresta antiga, um fenômeno conhecido como greening ou esverdeamento da vegetação. Os pesquisadores consideram este um importante impacto negativo para a conservação das matas. Segundo Dias, os fragmentos menores foram os mais afetados, pois tiveram maior perda de biomassa principalmente devido ao efeito de borda. Já os fragmentos maiores que mil hectares permaneceram mais conservados.

Mesmo num cenário de incertezas, o futuro das matas da região pode ser promissor. Estudos vêm mostrando que a Mata Atlântica parece ser uma área bastante estável ambientalmente, sendo pouco provável que as mudanças climáticas modifiquem a disponibilidade de habitats para as espécies. Assim, regiões com maior cobertura vegetal permanecerão adequadas para as espécies nas próximas décadas, caso se consiga conservar as florestas maduras, especialmente nos maiores fragmentos.

Os grandes remanescentes

Os maiores remanescentes florestais do CEP são a Estação Ecológica de Murici (AL), com 6.131 hectares, e a Reserva Biológica Pedra Talhada (AL/PE), com 4.469 hectares. A Área de Proteção Ambiental (APA) de Murici engloba dez municípios, incluindo os três que compõem a ESEC Murici. Ela conta com 133 mil hectares, sendo o maior fragmento ao norte do rio São Francisco.

De acordo com Marco Freitas, gestor da ESEC Murici, a região é a mais importante das três Américas para conservação de aves. A ESEC, que foi criada em 2001 por um pedido pessoal do príncipe inglês Charles, praticante de birdwatching, abriga mais de 17 aves ameaçadas globalmente e 31 em nível nacional. A ESEC também possui a maior riqueza de herpetofauna dentre as UCs do Brasil, com 58 anfíbios (sete ameaçados e dois endêmicos) e 89 répteis (três ameaçados e um endêmico).

Diversas ações vêm ocorrendo para conservação dessas áreas tão fundamentais. Há, por exemplo, a proposta de criação de um corredor ecológico ligando Murici à Serra do Urubu, um dos maiores remanescentes de Pernambuco, com quase mil hectares. 

Pedro Develey, diretor executivo da SAVE Brasil, falou sobre o sonho de reconectar as duas áreas. “Tudo começou no início da SAVE, com a criação da ESEC Murici. Em 2004, a SAVE adquiriu uma porção de floresta na Serra do Urubu, a RPPN Pedra D’Antas. Há dois anos e meio, ampliamos o projeto, mapeamos áreas e falamos com proprietários. Há ainda um passivo de 30 mil hectares que deveriam ser Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais, isso precisa ser regulamentado”.

As ilustres desconhecidas

Apesar de bastante devastadas, as matas do CEP ainda guardam surpresas. Diversas espécies têm sido descobertas pela ciência nos últimos anos, incluindo mamíferos de médio porte como uma cutia (Dasyprocta iacki) e um porco-espinho (Coendou speratus).

Também foram descritos diversos novos anfíbios (como Crossodactylus dantei, Phyllodytes gyrinaethes e P. edelmoi, Scinax muriciensis e Adelophryne nordestina) e, pelo menos, sete espécies de serpentes (Echinanthera cephalomaculata, Bothrops muriciensis, Atractus caete, Dendrophidion atlantica, Micrurus potyguara, Amerotyphlops arenensis e Caaeteboia gaeli).

As aves também têm surpreendido especialistas. A corujinha-de-alagoas (Megascops alagoensis) e o surucuá-de-murici (Trogon muriciensis), ambas descritas em artigos publicados em 2021 – e já consideradas criticamente ameaçadas – são exemplos do quanto ainda há por descobrir nas matas de Alagoas. “Tem também um arapaçu e um papa-moscas que sei que são espécies diferentes das do Sudeste, devendo ser desmembradas e adquirir status de espécies novas”, afirmou o ornitólogo Dante Buzzetti. Ele acredita que há três ou quatro novas espécies de aves ainda não descritas no CEP.

Os pesquisadores assumem que essas novas descobertas acontecem porque há muitas espécies crípticas no CEP, ou seja, espécies que morfologicamente são indistinguíveis, mas geneticamente são diferentes das outras. Assim, os estudos moleculares mais recentes vêm revelando diversas espécies novas de fauna e flora da região.

CEP abaixo de zero e DNA ambiental

As novas tecnologias não só vêm descobrindo novas espécies, mas também vêm trazendo oportunidades para o monitoramento e conservação dessas espécies. O “CEP abaixo de zero”, por exemplo, é uma das frentes do projeto ARCA do CEP, financiado pela Fapesp, que vem buscando preservar o material genético das espécies dentro de um banco criogênico ou BioBanco. Assim seria possível, no futuro, realizar a “desextinção” de espécies e sua reintrodução no ambiente natural.

Outro uso das ferramentas genéticas que vem sendo aplicado no CEP são as amostragens não invasivas. De acordo com o pesquisador Pedro Manoel Galetti Junior, que trabalha há mais de 10 anos com genética da conservação, os estudos de DNA ambiental, uma área nova no Brasil, permitem retirar material genético de diversas fontes como da água, de fezes de animais e até do conteúdo estomacal de besouros ou de mosquitos. “É possível detectar quais espécies estão usando o ambiente. Para as populações em baixa densidade das espécies ameaçadas do CEP, é uma ferramenta fundamental, dada a dificuldade em detectá-las em campo”.

As espécies perdidas

Apesar das novas pesquisas, em comparação com outras regiões da Mata Atlântica, o setor nordestino é historicamente bem menos estudado. Isso dificultou estabelecer o que já foi extinto e o quanto se perdeu em termos de biodiversidade original.

“O CEP foi uma das primeiras regiões a ter conhecimento científico na América do Sul, ainda no século 17 e, paradoxalmente, é umas das regiões menos conhecidas até hoje. Os estudos eram muito pontuais e não nuclearam pesquisadores na região”, conclui Luís Fábio Silveira, curador das Coleções de Aves do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do projeto ARCA do CEP.

O ornitólogo Dante Buzzetti é um dos que acredita que muito foi perdido no CEP. “Com certeza existiram espécies de árvores, plantas menores, epífitas, aves ou anfíbios que foram perdidas antes mesmo de serem conhecidas. Espécies que eram exclusivas de matas de baixada, que nunca ocorreram nas áreas altas, como em Murici ou em Jaqueira. Não existem remanescentes extensos dessas matas, pois eram áreas mais fáceis de ocupar, mais planas e mais próximas da capital”.

Uma das espécies perdidas pode ser a de um mutum do gênero Crax, o mituporanga, ilustrado por George Marcgrave em seu Historiae Rerum Naturalium Brasiliae de 1648 e por Eckhout no Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae de 1660. A ave teve seus últimos registros no final da década de 80, a partir de entrevistas com caçadores. Ela poderia tanto ser um mutum-de-penacho (Crax fasciolata), que atualmente não ocorre no Nordeste, quanto uma espécie que não chegou a ser descrita pela ciência.

Mesmo com a escassa documentação histórica, pesquisadores puderam inferir que espécies como jaburus (Jabiru mycteria), anhumas (Anhima cornuta), antas (Tapirus terrestris), tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e onças-pintadas (Panthera onca) foram localmente extintas no CEP, embora persistam em outras regiões pela sua ampla distribuição geográfica.

Já outras espécies de distribuição mais restrita não tiveram a mesma sorte. Dentre as perdas mais recentes estão as de três aves endêmicas do CEP, declaradas extintas em 2014 através de um artigo assinado por dez ornitólogos que estudaram a região.

Limpa-folhas-do-nordeste: o canto de adeus

Uma delas é o limpa-folhas-do-nordeste (Philydor novaesi), uma ave “conspícua” nas matas de Murici, quando foi descrita em 1979. Ela se alimentava preferencialmente no interior das bromélias, plantas que também vêm desaparecendo das matas nordestinas.

A ave está atualmente classificada como Extinta (EX) pela Portaria 444/2014 do Ministério do Meio Ambiente. O último registro documentado da espécie foi em 13 de setembro de 2011, na RPPN Pedra D’Antas em Lagoa dos Gatos (PE).

“As poucas informações nos levam a crer que era agregadora de bandos mistos. Consegui observar um indivíduo cruzar as árvores do dossel em voo, vocalizar e, de repente, haviam dezenas de aves agregadas”, lembra Sônia Roda, assessora ambiental do Grupo EQM, uma das últimas pessoas a vê-los na RPPN Frei Caneca (PE). “Foi genial ver um bicho extremamente raro e ameaçado. É uma fusão de alegria e tristeza”.

É também com tristeza que o ornitólogo Ciro Albano, o último a documentar um limpa-folhas vivo, descreve o momento: “Vimos o bicho logo no início da trilha, na RPPN Frei Caneca, ele cantou bastante. Depois desse dia, nunca mais foi registrado”.

Para Roda, a perda de uma espécie como o limpa-folhas é fruto do descaso dos governos. “Os locais onde o limpa-folhas foi registrado são UCs. A ESEC Murici e as RPPNs Frei Caneca e Pedra D’Antas são áreas contínuas, deveriam ter programas de preservação. Mas o que se encontra é pastagem, cana-de-açúcar, cultura de subsistência e destruição para fazer carvão”.

Limpa-folhas-do-nordeste não é registrado desde 2011 e já é considerado extinto. Foto: Ciro Albano

Gritador-do-nordeste: lamentos de um irmão solitário

O gritador-do-nordeste (Cichlocolaptes mazarbarnettii) foi uma ave insetívora especializada em se alimentar em bromélias. A espécie foi por muito tempo confundida com o limpa-folhas-do-nordeste pelos ornitólogos, por sua semelhança morfológica, sendo considerada uma espécie críptica.

Contudo, seu maior tamanho e diferenças na vocalização chamaram atenção dos pesquisadores Juan Barnett e Dante Buzzeti, que descreveram a espécie em 2014, a partir de uma fêmea e sua cria guardadas na coleção do Museu Nacional do RJ. Neste mesmo ano, a espécie foi considerada extinta.

Buzzetti recorda que seus contatos com a ave foram a partir de abril de 2007, quando conseguiu dados para descrever a espécie, sendo o último em dezembro. “Parecia mesmo que era o último indivíduo, porque ele cantava muito, procurando outros da mesma espécie. Colocamos o nome ‘gritador’ porque tem uma lenda no Nordeste que fala que dois irmãos saíram para caçar e, por engano, um atirou e matou o outro. Ele ficou tão desesperado que arrastava o corpo do irmão morto gritando, procurando por ele. Então tem uma analogia com a ave que estava ali, gritando, procurando outras da mesma espécie, e não encontrava mais porque já estavam todas extintas”.

O ornitólogo, entretanto, não perde a esperança. “O gritador era a ave mais exigente e mais rara, pois era dependente de bromélias e só ocorria nas matas onde haviam muitas delas, nos remanescentes de matas primárias. Há sempre esperança de reencontrá-lo, porque a mata de Murici está conservada, apesar de ser pequena. Cada vez mais os esforços da SAVE e do chefe da UC vêm trazendo bons resultados”.

As tentativas de salvamento

Estas espécies já foram perdidas, mas não significa que não houve tentativas de salvá-las. No ano de 2010, por exemplo, foi elaborado um plano de conservação para evitar extinções e promover ações para conservação e recuperação das áreas de ocorrência. Estas informações subsidiaram políticas públicas como a criação de algumas UCs em PE.

Sônia Roda foi uma das autoras e acredita que, na época, faltou uma maior promoção para os órgãos ambientais. “Quando há instrumentos legais, as espécies ameaçadas passam a integrar a agenda governamental, viabilizando a implementação, execução e monitoramento de ações destinadas à sua conservação e recuperação”.

O ornitólogo Pedro Develey acredita que a perda dessas aves pode ser sintoma de um problema maior causado pela fragmentação. “O limpa-folhas e o gritador são espécies que formam e comandam bandos mistos de aves, as chamadas ‘espécies nucleares’. São ‘líderes’ que determinam caminhos e dão alarme quando há predadores”.

Os bandos mistos são uma estratégia de sobrevivência, pois a vigília de predadores favorece a alimentação do bando. “Nas florestas muito fragmentadas as espécies nucleares sumiram e não há formação de bandos mistos, o que pode contribuir para a extinção de diversas outras espécies”, explica Develey.

As espécies em maior risco

O CEP mantém ecossistemas entre os mais ameaçados do mundo e foi nele onde as primeiras aves foram extintas no Brasil. Os pesquisadores avaliam, inclusive, que todos os organismos da região estariam vulneráveis à extinção local ou regional. E a situação se agrava quando sabe-se que muitas espécies sequer estão protegidas por UCs, ocorrendo apenas em fragmentos em propriedades particulares.

A choquinha-de-alagoas

A choquinha-de-alagoas (Myrmotherula snowi) é uma pequena ave que se encontra em situação dramática. Conta com uma população com menos de 10 indivíduos, sendo considerada uma das dez espécies de ave mais ameaçadas de extinção do planeta. Sônia Roda conta que, há 10 anos, ela podia ser facilmente encontrada em quatro localidades no CEP. Hoje é encontrada somente na ESEC Murici.

Pesquisadores realizaram monitoramento dessa população de Murici ao longo de três anos e o número detectado nos censos caiu 50%, de 12 para 6 indivíduos. Concluíram, assim, que o risco de extinção em um futuro próximo é alto.

A choquinha-de-alagoas é considerada uma das dez aves mais ameaçadas do planeta, com apenas 10 indivíduos. Foto: Ciro Albano

A SAVE Brasil e o Parque das Aves, com apoio de instituições como a American Bird Conservancy e a Universidade Federal de Alagoas (UFAL), estão implementando um conjunto de ações para salvar a espécie da extinção dentro do Plano Emergencial para a Conservação da Choquinha-de-alagoas, criado em 2016.

O Plano prevê estratégias para garantir sua sobrevivência a longo prazo, incluindo pesquisa, experimentos para a reprodução em criadouros conservacionistas, monitoramento, buscas por novas áreas de ocorrência com uso de gravadores autônomos e restauração de áreas de floresta ao redor da ESEC Murici.

Para aumentar o sucesso reprodutivo da espécie, os envolvidos estão buscando e protegendo ninhos contra predadores. Em 2021, um filhote saiu com sucesso de um deles. “Tivemos três filhotes nessa temporada e talvez mais um. É animador, mas a predação de ninhos é alta em Murici, principalmente por cobras e marsupiais. Por isso, realizamos o manejo ativo, com colocação de câmeras, funis de proteção e podas nos galhos ao redor. Fazemos isso com todo o cuidado, pois há uma alta chance de os pais abandonarem o ninho caso sejam perturbados”, informou Pedro Develey.

Fora da floresta, o programa de conservação utiliza espécies comuns e não ameaçadas como a choquinha-lisa (Dysithamnus mentalis) para testes de manejo ex situ. “Pusemos dois D. mentalis num viveiro. Um veio a óbito e o outro, o Valente, viveu por cinco meses mas foi vitimado por uma frente fria com geada. Pretendemos conseguir três casais de choquinha-de-flanco-branco (Myrmotherula axillaris) para aprender como manter e reproduzir passeriformes semelhantes à choquinha-de-alagoas. M. axillaris, além de ser um parente próximo, ocorre também em Murici”, explica Develey.

As espécies salvas da extinção

Apesar da situação crítica da Mata Atlântica nordestina, a criação de áreas protegidas, a fiscalização, a restauração florestal e o salvamento de espécies em extinção através de programas de conservação e reintrodução ou mesmo de iniciativas individuais vêm trazendo lampejos de esperança e escrevendo novas histórias.

Uma das histórias mais incríveis é, sem dúvida, a do resgate do mutum-do-nordeste ou mutum-de-alagoas (Pauxi mitu). O mutum é a maior ave terrestre da Mata Atlântica nordestina, endêmica do CEP, sendo considerada a ave símbolo de Alagoas. Está classificada como Extinta na Natureza (EX) e foi um dos primeiros casos documentados de extinção no Brasil.

A espécie foi salva graças aos esforços de Pedro Nardelli, empresário carioca falecido em agosto de 2019, em um exemplo de como uma pessoa pode fazer a diferença. Ele conseguiu resgatar alguns mutuns em Alagoas e iniciou a reprodução das aves no RJ.

A empreitada de Nardelli iniciou em 1976, ao saber que a ave estava desaparecendo. Em 2017, durante a inauguração do Centro de Educação Ambiental Pedro Mário Nardelli na Usina Utinga Leão, em Rio Largo (AL), contou a forma inusitada como conseguiu o primeiro mutum – uma fêmea de seis anos que morreu em seguida – convencendo o dono, que encontrava-se preso com a ave na delegacia, a trocá-la por um faisão.

Nardelli voltou à Alagoas em 1978 com uma expedição e passou dois anos buscando os mutuns. Fez amizade com alguns caçadores e transformou-os em parceiros, para que não matassem os poucos exemplares que ainda poderiam existir. Conseguiu mais cinco animais para o seu plantel, dois machos e três fêmeas, sendo que apenas três – um macho e duas fêmeas – reproduziram.

“O Pedro Nardelli queria fazer, foi lá e fez. Esses grandes programas de conservação têm muita gente para dar opinião, gerando muita dificuldade para quem quer fazer acontecer. É como se diz: um cachorro com muitos donos morre de fome”, avalia Luís Fábio Silveira, que é coordenador do programa de reintrodução dos mutuns.

Hoje, através do trabalho de reprodução da espécie continuado pelos criadores mineiros Moacyr Dias (Criadouro Poços de Caldas) e Roberto Azeredo (CRAX-Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre), há mais de 100 mutuns em criadouros conservacionistas – com mais da metade em reprodução – e um programa de reintrodução, pioneiro na América Latina, da espécie nas matas de Alagoas.

Em setembro de 2019, dias após o falecimento de Nardelli, três casais de mutuns foram finalmente reintroduzidos na Mata do Cedro, sendo o primeiro caso de reintrodução de uma espécie extinta na natureza na América do Sul.

Silveira conta que o programa de reintrodução começou bem. “Apenas os machos foram monitorados por GPS porque a marcação das fêmeas pode prejudicar a cópula. Dois morreram pouco depois, fora da mata, provavelmente porque exploraram o ambiente e entraram no canavial adjacente, como era esperado. O outro macho sobreviveu por cerca de um ano e meio e apenas os seus vestígios foram encontrados. Quanto às fêmeas, duas delas foram vistas no final de 2021, em pontos diferentes da mata”.

Apesar das perdas, Silveira comemora os resultados da reintrodução. “Isso foi muito importante porque demonstrou que o método funciona, que as aves conseguem sobreviver bem sem cuidados humanos e que se adaptam muito rapidamente às novas condições, reforçando a necessidade de soltar mais aves”.

O programa parou suas atividades em março de 2020, mas o coordenador prevê sua retomada. “A pandemia e as restrições de deslocamento impostas pelos governos locais e por nossas universidades impediram que houvesse um monitoramento mais detalhado, como estava nos planos originais. Em 2022 os projetos serão retomados, já que a USP e a UFSCar estão permitindo as viagens. Vamos não apenas retomar o projeto do mutum, mas iniciar o do papagaio-chauá em Alagoas”.

O papagaio-chauá

Os papagaios-chauás (Amazona rhodocorytha) habitam a Mata Atlântica do AL ao RJ e leste de MG e estão classificados como Em Perigo (EN) de extinção. Apesar de não serem endêmicos do Nordeste, foram praticamente extintos das matas de Alagoas. “Existem, no máximo, quatro aves sobreviventes em dois locais de AL, e as estimativas no restante da Mata Atlântica giram em torno de três mil aves, sendo muito otimista”, descreve Silveira.

O programa de reintrodução dos chauás vai bem, de acordo com o pesquisador. “Em novembro de 2021 recebemos alguns bebês chauás para formar o núcleo do grupo que será reintroduzido nos remanescentes de Alagoas – um dos objetivos do Projeto ARCA. As aves, agora jovens, foram transferidas para um aviário maior, onde exercitarão o voo por algumas semanas antes de embarcar para Alagoas”.

Silveira lembra que há programas de reintrodução bem-sucedidos no Brasil. “Instituições como a Crax Brasil, reconhecida na América do Sul pelo manejo e reprodução de cracídeos, têm reintroduzido com sucesso o mutum-do-sudeste (Crax blumenbachii) e a jacutinga (Aburria jacutinga) em MG, inclusive com a criação de áreas protegidas”.

Contudo, a reintrodução de espécies no Nordeste depende da integridade dos remanescentes de Mata Atlântica, principalmente de grandes fragmentos como os das Usinas Serra Grande e Utinga Leão, em Alagoas, e da criação e manutenção de UCs.

As Unidades de Conservação

O CEP conta hoje com 103 Unidades de Conservação, sejam federais (11), estaduais (88) ou municipais (4) nos limites do seu território. Juntas, somam 447.374 hectares. Destas, 44 são de Proteção Integral (29.051 ha) e 59 de Uso Sustentável (418.323 ha). A categoria com mais unidades é a de RPPNs, com 35 (4.611 ha), enquanto as 16 APAs contam com 399.610 ha.

“Um dos grandes pecados do Brasil é que não estamos gerando tecnologias e dando suporte para que a floresta permaneça. Temos, por exemplo, APAs, Resex, Flonas e outras UCs de Uso Sustentável nas quais não se encontra ninguém fazendo pesquisas ou desenvolvendo ações, seja poder público ou ONGs. O Chico Mendes pensou nisso, lá nos anos 80. O que os seringueiros estão fazendo agora? Derrubando floresta para ter um ‘gadinho’, porque só com extrativismo florestal não dá. Não fomos capazes, até hoje, de gerar modelos economicamente viáveis para essas UCs”, admite Marcelo Tabarelli.

Os especialistas alertam que, mesmo que se conservasse toda a biodiversidade restante do CEP em forma de UC, dado o isolamento e a pequena dimensão dos fragmentos, o processo de homogenização e perda de espécies continuaria. Portanto, os mecanismos para a conservação devem prever parcerias, restauração, conectividade e meios econômicos para manter a floresta em pé, indo muito além da manutenção das matas.

A jararacuçu-de-murici (Bothrops muriciensis), uma das maiores jararacas brasileiras, também é uma espécie cujo último refúgio é a ESEC Murici. Ela ocorre somente em um minúsculo trecho de 2 x 2 km² dentro da UC. Foto: Marco Freitas

As usinas de cana-de-açúcar

Cerca de 90% dos fragmentos do CEP, por exemplo, estão em áreas privadas de usinas de cana-de-açúcar. Sônia Roda acredita que a parceria com o setor é fundamental, e tem trabalhado diretamente com ele. “As usinas deixaram de ser vilãs há muito tempo. Hoje a maioria das empresas do setor exporta açúcar e os compradores exigem produção mais limpa. Quando são auditadas por fornecedores, são observadas ações de reflorestamentos, gestão de resíduos, criação de RPPNs, monitoramento ambiental, etc. O grupo que assessoro, por exemplo, está implementando SGA baseado na ISO 14001”.

Contudo, para Marcelo Tabarelli, tanto o setor sucroalcooleiro quanto os demais atores preocupados com conservação estão desamparados do ponto de vista de políticas, de incentivo ou de reconhecimento. “Obviamente, proteger floresta tem custo. Primeiro, você deixa de ganhar dinheiro, porque poderia dar um outro uso para essa terra. Segundo, se as pessoas entram, caçam, tiram madeira ou botam fogo, o responsável legal é o dono da terra. Os atores estão muito isolados, numa sociedade que aparentemente não dá relevância. Tanto que os órgãos públicos nem cobram que a legislação seja seguida”.

Sônia Roda acredita que o poder público precisa ser mais presente para que as ações de conservação funcionem. “Se o estado exigisse o cumprimento da legislação, através de TACs ou outros meios, seria mais exitoso. Iniciativas das empresas são interessantes, mas se diluem. Por exemplo, com a pandemia, só empresas com TAC reflorestaram. Por vontade própria, só com compromissos públicos”.

A maior presença do estado também é defendida por Luís Fábio Silveira, principalmente no cumprimento das ações listadas nos Planos de Ação Nacionais para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção (PANs) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). “Os PANs são bons para mostrar a situação das espécies, mas as ações dependem do poder público, que em geral é bastante leniente”.

Apesar de os estados no Nordeste estarem avançando em suas políticas públicas, como é o caso de Pernambuco, com legislação de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) ou de Enfrentamento e Adaptação às Mudanças Climáticas, a lentidão na implementação faz com que questões urgentes relativas à conservação sejam levadas pelo terceiro setor.

A RPPN Pedra D’Antas (PE) é um ótimo exemplo da importância das ONGs como aliadas do poder público na conservação da biodiversidade. As matas da região estavam sendo devastadas para a produção de carvão e provavelmente seriam convertidas em pasto e plantação de banana, quando em 2004 a SAVE Brasil adquiriu a Fazenda Pedra D’Antas, uma área de 360 hectares que hoje abriga uma floresta em regeneração com ocorrência de 250 espécies de aves, sendo nove ameaçadas.

Em Alagoas, o Instituto de Preservação da Mata Atlântica (IPMA), criado em 1996 e gerido pelo engenheiro civil Fernando Pinto, vêm conseguindo desenvolver diversas parcerias e ações de conservação, como a criação de 53 RPPNs em usinas, que somam 10 mil ha, e a criação do programa estadual de conservação do mutum-de-alagoas.

Além de proteger o que resta, o terceiro setor vai além. A ONG Cepan, por exemplo, conseguiu restaurar, com o uso de diversas metodologias, aproximadamente 300 hectares do CEP nos últimos 5 anos. “Remanescentes de floresta têm a função de manter processos econômicos, agrícolas e estabilidade climática. Estamos desenvolvendo uma agenda de restauração que abrange uma cadeia produtiva de bases florestais, com coletores de sementes e produtores de mudas. Dá para recuperar e incrementar cobertura vegetal dentro dessas atividades”, afirma o diretor Severino Pinto.

Contudo, Pinto explica que há poucas ONGs que lidam o tema. “Temos na região do CEP uma baixa capacidade instalada de instituições que trabalham com a agenda de conservação. É preciso que haja um preenchimento destas lacunas institucionais”.

Para Marcelo Tabarelli, houve uma mudança de agenda das grandes ONGs que dificultou o desenvolvimento de projetos locais. “O ano de 2010 foi de mudança, a nível global, da estratégia de atuação das grandes ONGs, que migraram de uma agenda mais restrita, focada em conservação de biodiversidade, para uma agenda de desenvolvimento sustentável, inclusive com rearticulação de parceiros. Daí as agendas de conservação da biodiversidade acabaram sofrendo muito”.

Outro problema, apontado por Severino Pinto, é a pouca atenção dada a essa porção do bioma. “Assim como outros ecossistemas nordestinos, como os brejos de altitude e a própria Caatinga, floresta atlântica sempre teve poucos holofotes em termos de financiamento e de iniciativas de conservação. O Cepan, junto a outras ONGs, universidades e pesquisadores, vêm trabalhando arduamente para ela seja reconhecida em termos de biodiversidade, prestação de serviços e prioridade de conservação”.

Mais do que interromper o desmatamento da Mata Atlântica, é preciso, nesta que é a Década de Restauração de Ecossistemas da Organização das Nações Unidas (ONU), tornar sua recuperação uma prioridade na agenda ambiental e climática.

Para Severino Pinto, é a chance para que a restauração seja um movimento global. “É possível trabalhar com governos, políticas, treinamento e qualificação de técnicas e conceitos. É a grande oportunidade de dar protagonismo e visibilidade ao tema”.

Contudo, Marcelo Tabarelli aponta uma questão preocupante: a restauração não vai trazer a biodiversidade de volta. “A agenda de serviços ecossistêmicos e mudanças climáticas é fundamental, porque são alguns dos grandes valores das florestas tropicais. Mas esses serviços podem ser obtidos por um determinado volume de biomassa vegetal, seja qual for essa biomassa. Assim, o que está se buscando não implica necessariamente em preservar aquilo que está ameaçado de extinção, inclusive todas as nossas espécies-bandeira, como os micos-leões, os muriquis, os mutuns-do-nordeste. Para a biodiversidade, a agenda atual, inclusive a de restauração, cria poucas oportunidades”.

Biodiversidade: papo lunar

Tabarelli, que é acadêmico e pai de adolescentes, observa ainda que as gerações que estão chegando não têm conexão com biodiversidade. “A moçada de hoje não cresceu caçando, pescando, tomando banho de rio e se afeiçoando pela biodiversidade. Não tiveram essas experiências. Biodiversidade, para meus alunos de biologia de hoje, é papo lunar, porque cresceram e estão crescendo em shoppings centers e nas redes sociais”. 

O pesquisador observa que, em escala global, há um afastamento das sociedades, principalmente nos países em desenvolvimento, da biodiversidade per se. “Obviamente, isso diminui as políticas, o fluxo de recursos de doadores e a mobilização da sociedade. O que vai sobrar depende única e exclusivamente do esforço de cada um. Eu não sei o que as futuras gerações vão herdar, mas depende do que nós formos capazes de fazer”.

Para Tabarelli, o valor das florestas tropicais já é bastante conhecido, tanto do ponto de vista da sua biodiversidade quanto dos serviços ecossistêmicos, mas é necessário haver ação. “Ter floresta é um grande ativo, frente às mudanças climáticas. Quem tiver pouca floresta e biomassa vai sofrer mais. O conhecimento existe, está disponível e dá suporte às ações. O que precisa é uma rearticulação de vários atores-chave para que as oportunidades de persistência dessa floresta emerjam”.

Ele acredita que as florestas devem gerar oportunidade econômica, emprego e renda, para serem conservadas. “Precisa de um combo, que passe por exploração sustentável de madeira, agrofloresta, venda de serviços ecossistêmicos e extração de produtos florestais não-madeireiros, porque os usos alternativos da terra são muito lucrativos”.

O pesquisador destaca, por fim, que o Brasil precisa ser protagonista na conservação das florestas tropicais. “O cenário é o mesmo, no sudeste asiático, no Congo. Mas o Brasil é o único país que tem capacidade institucional e massa crítica, porque os outros países tropicais são muito pobres e não têm estabilidade política. O Brasil, e só o Brasil, reúne todas as condições para criar alternativas de geração de emprego e renda com floresta em pé. Essa é uma demanda global, necessária para todas as florestas tropicais”.

Serra Talhada, em Pernambuco. Foto: Felipe Melo

Mata Atlântica do Nordeste: pequenas grandes histórias

O pesquisador Marcelo Tabarelli. Foto: Thomas Koziel

Em 2000, eu e o ornitólogo José Maria Cardoso da Silva tivemos a felicidade de publicar um artigo na Nature, falando sobre o destino das árvores da floresta atlântica nordestina com base no desaparecimento das aves frugívoras dispersoras de sementes. Esse artigo abriu uma agenda de ciência e conservação e nos aproximou dos atores locais, particularmente da Dorinha Melo, da Sociedade Nordestina de Ecologia (SNE) e posteriormente da Associação para Proteção da Mata Atlântica do Nordeste (Amane), que foi fruto dessa articulação histórica. Assim conseguimos dar visibilidade para a floresta atlântica ao norte do rio São Francisco. Daí começou a parceria com Conservação Internacional (CI), com a The Nature Conservancy (TNC), com a SOS Mata Atlântica, ou seja, várias ONGs se interessaram pelo CEP. Tivemos dez anos de muito investimento. Nosso primeiro dinheiro para trabalhar na Mata Atlântica foi 45 mil dólares que ganhamos da CI. Compramos uma Hilux Toyota e estabelecemos o projeto Serra Grande, em Alagoas, com a Usina Serra Grande como um parceiro excepcional. Foram muitos projetos de pesquisa e ações de conservação, como o planejamento regional e a criação do corredor regional de biodiversidade do Nordeste. A Amane capitalizou e coordenou várias ações, inclusive a discussão com as usinas e com vários atores, e chegamos à estratégia de fomentar a preservação e a restauração dessa floresta nas usinas, onde estava grande parte do que sobrou. Em 2000, eu, o José Maria e alguns alunos criamos do Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (Cepan), no qual fiquei à frente até 2008, depois assumiu o Felipe Melo, que é meu colega de departamento, e o Severino Pinto, que está até hoje. Crescemos muito do ponto de vista científico e botamos o CEP no mapa mas, efetivamente, as ações não tiveram continuidade na escala e no desejo que queríamos. Sem o apoio das grandes ONGs ficou difícil, porque o Brasil não tem dinheiro para a conservação. Essa agenda acabou perdendo espaço, e segue aí a floresta atlântica nordestina, ou a falta dela. Estamos com problemas de falta ou de excesso de água, e vários outros serviços ecossistêmicos não temos mais. Os estuários com grandes volumes de sedimentos, morte de recifes de corais, perda de produtividade pesqueira. Tem toda uma degradação que está associada ao desaparecimento da floresta, que era quem segurava o solo, os biocidas, os fertilizantes. Sempre penso isso quando chego em Recife e sobrevoo a foz do rio Jaboatão, que é um mar de lama que vem das áreas agrícolas. Tem toda uma cascata de efeitos negativos causada pelo quase desaparecimento dessa floresta.

Marcelo Tabarelli, Professor da Universidade Federal de Pernambuco


O analista ambiental Marco Freitas. Foto: Hermann Redies

Na minha coordenação, de janeiro de 2017 até fevereiro de 2022, recolhemos ou apreendemos 205 espingardas, 190 canos (uma pequena espingarda), 198 tatuzeiras (armadilhas para tatus ou teiús) e 5.443 gaiolas e alçapões, destruídos preferencialmente com uso de fogo. Foram 4.565 aves apreendidas e libertadas, quando aptas para soltura imediata, ou enviadas para o Cetas do Ibama, sendo 30 delas ameaçadas de extinção e, destas, 27 saíras sete-cores, um pintassilgo-do-nordeste e dois jacus-de-alagoas. Fizemos 60 prisões em flagrante e aproximadamente 400 autos de infração de 2009 pra cá, numa região que abrange 10 municípios e 133 mil hectares. Esses são os resultados que conseguimos alcançar. O que me move é a paixão de ambientalista. Quando menino, trabalhei dos 14 aos 18 anos em zoológicos, aprendendo a mexer com bichos. Hoje publico artigos e livros sobre répteis e anfíbios do CEP, e tenho esse saber científico. Essa paixão e o nível de consciência que temos da ameaça dessas espécies é o que faz com que a gente persista no trabalho. Sim, já sofri muitas ameaças, incluindo tentativas de homicídio com faca em 2020 e no ano passado com um facão. Em 2018 houve algo muito mais pesado, envolvendo gente grande, com pistoleiros. A ajuda dos MPs estadual e federal de Alagoas e por eu ter uma estratégia de não seguir o mesmo roteiro no trabalho, o que naturalmente já faço ao longo dos anos, fazem com que eu sobreviva. Brasília já tentou me tirar de Murici por conta das ameaças. Mas, se eu sair de Murici, vai acabar essa garra. Não posso sair de Murici enquanto pelo menos uma área for indenizada e tenhamos uma sede em campo, para que os servidores venham trabalhar dentro da UC. Não quero virar herói, só peço a Deus para que eu possa viver por, pelo menos, mais uns dez anos, lutando por Murici.

Marco Antônio de Freitas, Gestor da Estação Ecológica de Murici


O ornitologo Ciro Albano. Foto: Arquivo pessoal

Eu levava turistas observadores de aves à RPPN Frei Caneca. Sempre via um limpa-folha na parte de baixo da trilha, e na parte de cima havia outro, e ficávamos na dúvida se era o mesmo indivíduo que se deslocava ou se eram dois. De qualquer forma, nunca foram mais do que dois, e já sabíamos, desde 2007 até 2011, período no qual acompanhamos esse (s) indivíduo (s), que a espécie não teria esperança. No último encontro, estava acompanhando um turista inglês. Vimos o bicho logo no início da trilha, ele cantou bastante. Consegui fazer um filme com uma lunetinha Scope com uma câmera acoplada. Depois desse dia, nunca mais foi registrado, apesar de muitas buscas por mim, membros da SAVE e pesquisadores de aves.

Ciro Albano, Observador de Avesi


O ornitólogo Dante Buzzetti. Fonte: xeno-canto.org

O que me levou a estudar as aves do CEP foi uma oportunidade. O Juan Mazar Barnett, colega que conheci num congresso no Paraguai, estava trabalhando como voluntário em Murici, num projeto para a BirdLife – que hoje é a SAVE – estudando as espécies ameaçadas de extinção. Ele me contou que estava com dificuldade de encontrar as espécies mais raras do CEP, que eram o limpa-folhas-do-nordeste e a choquinha-do-nordeste. Me perguntou se eu não gostaria de conhecer Murici, que já era uma área muito interessante, que as pessoas já sabiam que possuía espécies ameaçadas de extinção, endêmicas dali. Aceitei o convite e fui com ele, em outubro de 2002, para Murici. Na época choveu muito, e ficamos alguns dias na parte baixa, esperando a chuva passar para poder subir na parte mais alta, a cerca de 600 m de altitude, que é a Fazenda Bananeiras, o lugar mais conservado, que tem a mata mais bonita e exuberante, com as árvores mais altas. Quando finalmente conseguimos chegar lá em cima, de cara já encontramos uma espécie nova de corujinha, que depois foi descrita por outra pessoa. Encontramos ela na primeira noite, e no dia seguinte encontramos o que a gente imaginava que fosse o limpa-folha-do-nordeste, num bando misto. Mas eu percebi que tinha algo diferente, pois quando ele cantou eu falei pro Juan que aquele não era o limpa-folhas, e sim um Cichlocolaptes, que é um outro gênero, e dava pra ver que ele era bem dependente de bromélias. Um ano depois de termos ido à Murici, Juan encontrou o limpa-folha na reserva Frei Caneca em PE, então tivemos certeza que eram realmente duas espécies: o limpa-folhas e o gritador. Daí começamos a trabalhar na descrição da espécie e vimos que havia dois exemplares no Museu Nacional, misturados com o limpa-folha. Depois de alguns anos, quando tínhamos o trabalho quase pronto, o Juan faleceu e eu acabei fazendo as análises de sons. Ele já tinha escrito muito bem a parte de conservação, então eu terminei a descrição e publiquei. As populações de ambas as espécies já eram muito pequenas, na época. Acredito que o último contato que eu tive com o gritador foi uma gravação que fiz foi em dezembro de 2007, e esse é o último registro que se tem. O limpa-folhas teve registros posteriores, mas logo depois sumiu também.

Dante Renato Corrêa Buzzetti, Ornitólogo


O ambientalista Pedro Nardelli. Fonte: Agência Alagoas

Por meio de um livro descobri que no Nordeste havia uma espécie de mutum que a ciência acreditava que já estava extinto. Havia um registro de 1950 de uma ave encontrada morta. Fiquei preocupado em saber se o bicho havia desaparecido ou não. Em 1976, passei dois meses aqui e depois de muito andar, encontrei um mutum cativo, em São Miguel dos Campos, preso com um oficial da polícia militar. Fiquei curioso com a informação e fui à delegacia para saber o que o coitado do animal havia feito para estar atrás das grades. O policial me disse que um camarada fora detido porque bateu na esposa. E como o sujeito estava acompanhado do bicho na hora do cumprimento do mandado, o mutum foi junto, mesmo não tendo nada a ver com a confusão entre marido e mulher. Acho que esse foi o único caso no mundo onde um animal ficou detido num xadrez humano.

Pedro Mário Nardelli, Ambientalista


O ambientalista Fernando Pinto. Fonte: Agência Alagoas

Sempre fui apaixonado por aves. Um amigo conhecia um caçador que tinha um ovo de mutum, que colocou para chocar numa galinha e dele nasceu um pinto, que cresceu e estava batendo nas aves do galinheiro, e ele queria matar o bicho. Acabou me dando de presente, mas como eu não criava bichos grandes, o levei para a casa de um amigo e o mutum ficou morando na casa do cachorro por quase um ano. Eu me formei em engenharia civil e, coincidentemente, fui trabalhar na implantação de uma destilaria na área do Roteiro. E lá todos observaram que eu só falava em bichos e passava as folgas na mata olhando passarinhos. Então disseram que tinha um criador registrado que estava procurando mutuns na região. Pedi que dissessem que eu tinha uma fêmea. No outro dia chegou uma pessoa do Nardelli, perguntando se eu vendia ou trocava a ave e eu disse que, se eu tenho uma e vocês são registrados e estão querendo preservar, o mutum é de vocês. Nardelli levou essa fêmea para o criadouro no RJ e conseguiu formar um trio com os outros que havia conseguido. Desse trio nasceram os primeiros mutuns. Passei a frequentar o criadouro, fizemos uma amizade e o meu envolvimento começou aí, por influência do Pedro Nardelli. Quando saí da usina fui convidado para assumir o Instituto de Meio Ambiente (IMA-AL) e uma das primeiras coisas que fiz foi chamar alguns usineiros para conversar, com a proposta de preservar os remanescentes florestais que estavam como setor sucroalcooleiro. A ideia foi bem aceita e, quando saí do IMA, junto com as usinas Utinga-Leão e Serra Grande, criamos o Instituto para Preservação da Mata Atlântica (IPMA), em 1996. Já na logomarca do IPMA está o mutum-de-alagoas. Começamos a trabalhar com o tripé educação ambiental, recuperação de áreas degradadas e criação de UCs. Conseguimos a adesão todo o setor sucroalcooleiro do estado para que transformassem suas matas em RPPNs, em parceria com o IMA e o MP. Temos hoje 53 RPPNs já protocoladas e registradas, em fase de criação, que representam quase 10 mil hectares de mata. É uma vida dedicada a isso e vemos que está valendo a pena. Estamos criando um modelo a ser seguido. É possível fazer, desde que haja união. E um dia vamos fazer uma reunião para dizer que os mutum-de-alagoas está salvo da extinção.

Fernando Pinto, Presidente do Instituto para preservação da Mata Atlântica (IPMA)


O criador de aves Roberto Azeredo. Fonte: amda.org.br

Desde 1987 temos dois associados na CRAX: eu e o James Simpson. Há 30 anos sou presidente e ele é o vice. Não temos profissionais especializados em reprodução de aves. Sou autodidata, formado em administração de empresas, e trabalhei em banco estatal em MG. Esse interesse pelas aves nasceu quando eu era muito jovem nas fazendas da família. Ouvia os colonos falando ‘seu tio matou o último macuco que tinha nessa mata’. Fiquei com a ideia de fazer um trabalho de preservação dessas espécies. Fundamos a CRAX porque eu tinha que ter uma pessoa jurídica. Minha colaboração é compatibilizar o trâmite legal e as informações técnicas com a exigência das aves. É uma profissão que praticamente não temos, pois precisa saber da biologia da ave, como é o processo reprodutivo, realizar a reprodução assistida. Não existe um livro sobre como tratar espécies ameaçadas. Como autodidata, tive de me debruçar sobre isso e tenho perto de meio século de experiência. O mutum-de-alagoas é o mais ameaçado dentre as 60 espécies de cracídeos e uma das aves mais ameaçadas do mundo inteiro. É muito agressiva e os macho tem o hábito de atacar as fêmeas no início do período reprodutivo, quando elas ainda não estão prontas. No cativeiro, o macho pode matar as fêmeas, então precisa de uma intensa observação. São trabalhos que tiram muito da gente, nos feriados, hora do almoço, fins de semana. Tem machos que não aceitam determinadas fêmeas, então temos que saber formar os casais. A metodologia que desenvolvi foi de usar um macho com sete fêmeas, cada um em recintos distintos. Quando a fêmea estava pronta, abríamos o recinto e o macho copulava. Ele faz uma dança, copula e volta para o corredor. A temporada 2021-22 gerou 22 mutuns-de-alagoas. Se no CEP temos espécies com populações mínimas, tem que haver projetos de reprodução assistida, ou elas desaparecerão. Trabalho para ampliar o banco genético de espécies ameaçadas que praticamente não existem mais. Todos os procedimentos do trabalho do mutum-de-alagoas foram e são financiados por pessoas físicas: por mim, pelo Pedro Nardelli, pelo Moacyr Dias. Ganho pela satisfação de fazer algo de concreto pelo meio ambiente, porque só tem gasto e eu não paro um minuto. Os animais comem no sábado, domingo, feriado, férias. Considero esse trabalho como uma forma de ‘empobrecer alegremente.

Roberto Azeredo, Presidente da CRAX – Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre


O projeto Mata Atlântica: novas histórias é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.

  • Carolina Lisboa

    Jornalista, bióloga e doutora em Ecologia pela UFRN. Repórter com interesse na cobertura e divulgação científica sobre meio ambiente.

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