Reportagens

No dia do Pantanal, documentário relembra incêndios e projeta futuro do bioma

Novo filme de Lawrence Wahba documenta os incêndios que devastaram o Pantanal em 2020 e jogam luz sobre a necessidade de conservar o que ainda está de pé.

Marcio Isensee e Sá ·
12 de novembro de 2021 · 2 anos atrás

Imagine que você é um documentarista cinematográfico e, em março de 2020, está em campo, no Pantanal, para registrar as inúmeras belezas do bioma. De um dia para o outro, chegam as notícias da pandemia de Covid-19 e você se vê “preso”, sem poder voltar para casa. De quebra, ainda recebe a notícia que o projeto em que trabalhava foi cancelado e você está desempregado. Nos mesmos dias desta estadia prolongada e forçada, você registra os primeiros (e ainda pequenos) focos de incêndios do que viria a ser o maior desastre ambiental já registrado no bioma. Essa é a história de Lawrence Wahba e de como começou o documentário “Jaguaretê-Avá: Pantanal em Chamas”, que estreia neste dia 12 de novembro, data que marca o Dia do Pantanal. 

“Essa história caiu no meu colo e quando eu vi, eu era parte dela”, conta Lawrence em entrevista com ((o))eco. Mesmo quando conseguiu, enfim, voltar para casa, seu coração continuou no Pantanal. Enquanto acompanhava apreensivo o desastre que se descortinava, começou a produzir o documentário, lançado exclusivamente na Globoplay nesta sexta-feira. Foram 10 semanas em campo, divididas em quatro expedições por diversos cantos da região pantaneira, e inúmeros encontros com brigadistas, veterinários, voluntários e pesquisadores, numa produção que ao todo consumiu 13 meses de trabalho.

Ao longo deste trabalho, Lawrence não se limitou a documentar a tragédia pantaneira e seus personagens. Muitas vezes o documentarista largou a câmera para pegar o abafador e ajudar no combate às chamas. Além disso, ajudou a criar a Brigada Alto Pantanal, iniciativa que sustenta duas brigadas comunitárias permanentes no bioma. “Eu acho que se eu não for ambientalista, se eu não for um eco-chato, se eu não militar, não vai sobrar natureza para documentar”, comenta Wahba em tom de brincadeira.

Confira a entrevista que ((o))eco fez com o documentarista Lawrence Wahba sobre seu novo filme e suas experiências no Pantanal:

Você relaciona a pandemia e o Pantanal, do controle que a gente tenta ter sobre a natureza e o quanto a gente é pequeno dentro desses grandes desastres. Como é que você vê a nossa relação com o meio ambiente? 

Eu gosto muito de uma de uma citação que eu ouvi primeira vez no inglês, nem lembro quem é o autor, mas que é praticamente a tese do filme – e tanto os incêndios no Pantanal quanto tudo isso que a gente viveu com a pandemia nos remete demais – que é que o homem ocidental se vê a partir da natureza. No inglês ‘apart’, quer dizer ‘not as a part’. Quer dizer, nós estamos à parte e não como uma parte. Acho que é um erro de entendimento. Eu tenho relido [Ailton] Krenak, todo esse contato com os povos originais do Brasil, e não precisa ser indígena, pode ser o próprio fazendeiro pantaneiro, quando você fala daquele fazendeiro realmente simples, ligada à terra, não o latifundiário que veio e colonizou. Ao contrário da Amazônia, que mostra esse movimento artificial da pessoa indo lá em busca de uma nova fronteira agrícola e vendo aquele gado como cifrão, o cara está trabalhando com gado ou com soja ou no mercado financeiro, não interessa, ele está trabalhando só pelo dinheiro. No Pantanal, a gente vê aquele fazendeiro que está lá há muitas gerações e que conhece o ciclo das chuvas, dos ipês, da mata, até por isso eu dei espaço pro seu Jamil, que é um fazendeiro. É essa consciência de você ser parte de um todo maior que nós perdemos, e ao perder essa consciência nós estamos nos destruindo. Afinal, foi esse mesmo fenômeno de se ver à parte da natureza e desrespeitar a natureza que acabou trazendo esta pandemia e potencialmente nos trará outras no futuro.

A primeira coisa é que o ser humano precisa ter esse entendimento, que vem das culturas originais, de que nós somos parte de algo muito maior e não controlamos nada. E quando a gente respeita esse algo maior e se integra com ele, a gente consegue viver em harmonia com o planeta e com nós mesmos enquanto espécie. Quando a gente perde essa conexão, justo no Brasil que é o lugar com a maior biodiversidade do planeta, que era onde mais a gente tinha que ter esse entendimento, essa conexão, a gente perdeu completamente. Acho que essa é a tese central do meu filme.

Isso parece estar bem explícito no Pantanal. Você tem as condições climáticas adversas, mas o principal fator do fogo é o homem, não é? 

Eu não sou nenhum especialista em fogo, procuro deixar bem claro que eu sou só um documentarista que estava lá, essa história caiu no meu colo e quando eu vi, eu era parte dela. Aí comecei a estudar e tive a oportunidade de falar com grandes autoridades. Por uma coincidência, não sei como, eu acabei tendo um contato com o ministro do Meio Ambiente de Portugal e acabei conseguindo ter uma reunião, uma entrevista, com o presidente da AGIF que é a Agência de Gestão Fogos Rurais de Portugal. E também falei com um repórter espanhol que tinha acabado de fazer um grande documentário sobre os incêndios florestais na Espanha. Toda essa questão de combate a incêndio florestal, ela é baseada num tripé que é: a prevenção, o combate e a punição. 

A prevenção é a educação ambiental e o tal do manejo integrado. No Brasil a gente tem uma visão muito errada, confunde-se o manejo do fogo integrado com as queimadas. São duas coisas completamente diferentes, porque as queimadas do Pantanal são uma realidade, os próprios raios das tempestades vão causá-las, como no Cerrado. Então você queimar matéria orgânica acumulada durante as chuvas, onde você tem o controle da expansão desse fogo, é completamente diferente de uma queimada. Deve ser feito com as devidas autorizações dos órgãos ambientais e com a devida supervisão técnica para não se perder o controle do fogo. 

O combate [ao fogo], que é um grande problema. Nós acompanhamos de dentro tanto do ano passado quanto este ano. É um combate muito politizado. Hoje o Brasil está tão quebrado e tão polarizado que a ONG, o fazendeiro, o bombeiro, ele está mais preocupado quem é pró Bolsonaro e quem é contra. Ainda mais nesse estado que eu estou aqui [Mato Grosso], onde o bolsonarismo mesmo ainda é um movimento extremamente presente. Fica polarizado até no combate e aí a gente tem uma dificuldade de integrar os comandos. Então vem, para mim, o trabalho brilhante da SOS Pantanal, principalmente do Leonardo Gomes, que está falando: “o fogo não é de esquerda e de direita, o fogo ferra todo mundo”. Então essa questão do combate precisa ser melhor organizada e integrada. 

E o terceiro pé do tripé que é a punição, infelizmente, está branda demais. Quer dizer, você ou eu, se a gente fizer uma merda no nosso apartamento, esquecer o gás ligado, alguma coisa, e criar um incêndio, nós vamos ser responsáveis, inclusive criminalmente. Enquanto que no campo não. Teve um caso agora em Miranda [município em Mato Grosso do Sul] de um fazendeiro que começou um incêndio terrível e tomou uma multa de 9 mil reais, não são nem três vacas [esse valor]. Quanto esse cara prejudicou a sociedade, os vizinhos, colocou vidas humanas em risco, a natureza, é uma destruição que não existe valor indenizatório. Agora se você pega esse cara e bota na cadeia ou põe uma multa com um impacto terrível, vai fazer com que cada vez que ele tenha que fazer uma queimada, ele precise do órgão ambiental, ele mantenha uma equipe para fazer esse controle e não deixar o fogo sair da área limitada. Então essa questão da legislação é muito branda. Tanto em Portugal como na Espanha, que eu estava falando, é pena de prisão para quem começou um fogo rural, porque ele está pondo vidas em risco.

Para nós, ocidentais, só interessa a vida humana, sem entender que a vida da natureza é condição essencial para a continuidade da vida da espécie humana. 

Além do risco à vida humana, há o risco à biodiversidade. Inclusive há um debate sobre tratar a natureza como um ser que tem direitos. Isso me remete um pouco àquela cena de “cemitério” que você presenciou e colocou no filme. 

Pra mim a natureza vale, em alguns casos, até mais do que a vida humana, porque ela perpetua a vida das próximas gerações. Eu vi situações, eu testemunhei em vários lugares, mas aquela que entrou no filme, na fazenda Curizal, houve uma discussão com um bombeiro que não queria andar. Ele queria lançar o contra-fogo numa distância da sede que ia pegar uma mata onde tem o Zogue-zogue, uma espécie de macaco endêmico do Pantanal. E o cara ia botar o fogo e esse fogo ia pegar a mata, e aí eles tiveram uma discussão com brigadistas da nossa brigada e ele falou “pelo amor, esse macaco só existe aqui na Serra da molar, não tem em nenhum outro lugar do mundo” e o bombeiro falou “eu estou aqui para salvar vidas humanas”. O incêndio destruiu 84% da reserva Curizal, que é uma reserva de transição do final do Pantanal com a mata Chiquita boliviana e já tem a arara vermelha. Esse conflito é um exemplo de que para nós, ocidentais, só interessa a vida humana, sem entender que a vida da natureza é condição essencial para a continuidade da vida da espécie humana. 

Mais de 20% do bioma queimou no ano de 2020, matando fauna e flora. Foto: Lawrence Wahba

O filme deixa muito claro, até por ser em primeira pessoa, a sua relação também de ativista. Você é um documentarista e ao mesmo tempo mobiliza, arruma recurso, cria brigada. Como você vê o papel do documentário e do documentarista no ativismo, principalmente no ativismo ambiental? 

Eu comecei a minha carreira como instrutor de mergulho, apaixonado pelo mar. Desde o começo, quando eu comecei a trabalhar com tubarões, fazendo documentário de mar, há quase 30 anos, em 1992. Eu não sou biólogo, mas eu era cinegrafista das pesquisas do professor Dr. Sérgio de Almeida Rodrigues, do Biociências da USP [Universidade de São Paulo]. E o Serjão, já falecido, em 1982 ele publicou um livro sobre mudanças climáticas e aquecimento global. O livro eu tenho guardado até hoje, autografado. Foi a primeira vez na vida que eu ouvi falar em aquecimento global e mudanças climáticas. E aí quando eu comecei a trabalhar, eu procurava ter essa militância, essa coisa de educação ambiental, de falar nas escolas. Como documentarista, eu passei a levar o mar para muitas pessoas. 

Aí fui fazendo minha trajetória. Tive um grande mestre que foi o Haroldo Palo Júnior, o maior naturalista e documentarista de natureza que esse país já teve. Nos anos 90, tive o privilégio de trabalhar com ele no Pantanal e aí me apaixonei por esse bioma. E naquela época, em 1999, nós lançamos o primeiro filme. E fizemos a abertura do filme com Almir Sater e o Guilherme Rondon, que era um ambientalista local, falando contra a hidrovia [do rio Paraguai]. Então eu acho que se eu não for ambientalista, se eu não for um “eco-chato”, se eu não militar, não vai sobrar natureza para documentar (risos). É uma via de duas mãos. Agora, certamente esse filme levou a minha militância a um outro nível. Porque nós, documentaristas, eu, documentarista, por muitos anos eu acreditava que o próprio audiovisual e a questão de fazer filme para criança, trabalhar a educação ambiental, já era suficiente. E esse filme foi hands on [profissional que bota a mão na massa], foi o momento de largar a câmera e pegar o abafador. 

Lawrence Wahba e o biólogo Hugo Fernandes durante as gravações do filme. Foto: Divulgação.

É uma história que eu não planejei contar. Eu estava lá no Pantanal para fazer um filme sobre o ciclo do bioma mais preservado do Brasil. Fui pego com a pandemia, o que não foi uma exclusividade minha, todo ser humano do planeta teve que mudar os seus planos com a pandemia, mas de cara eu tive o projeto que eu estava filmando cancelado. Era uma produtora inglesa, uma viagem de scouting [de reconhecimento], onde eu ia fotografar e fazer vídeos curtos para eles definirem algumas locações que fariam parte da série. Eles me remuneraram pela viagem e disseram “fica com essas imagens porque a gente vai ter que abortar o projeto”. Além disso, eu fiquei desempregado, porque era um projeto que ia me tomar mais de um ano. Num primeiro momento, ver o Pantanal pegando fogo, fez eu virar realmente militante, investir recursos próprios. Por acaso o coronel Rabelo, do Instituto Homem Pantaneiro, era um conhecido e que teve um papel decisivo para nos evacuar do Pantanal, porque era aquele iniciozinho de pandemia, boato de que as divisas de estado iam ser fechadas e a gente ia ficar preso no Pantanal. Aí foi piorando a história do fogo, quando chegou em julho/agosto, o Coronel Rabelo falou do PrevFogo, do que estava acontecendo e nós tivemos juntos a ideia de criar essas primeiras duas brigadas comunitárias, com essa questão socioambiental. E o que foi legal é que quando eu tive essa ideia, no sofá da minha casa, em isolamento social, preso na pandemia, a gente falou “cara esse nosso movimento precisa ser replicável”. Se a gente criar duas brigadas, mas explicar na mídia a importância dessas brigadas comunitárias no primeiro combate, a gente pode criar um movimento. Aí chegou na Gisele Bündchen, no Luciano Huck. 

Todo esse trabalho é muito importante na prevenção e essas brigadas atuam não só nos momentos extremos de fogo, mas no ano todo. 

Uma brigada é uma orquestra. O cara do abafador tem que trabalhar em sintonia com o cara soprador, da bomba costal ou da motobomba, é um trabalho vinculado, uma banda de rock. Cada equipamento exige uma expertise e uma sintonia de movimentos. E aí o [Roberto] Klabin falou “eu fiz isso na minha fazenda” e ele juntou com a SOS Pantanal, que é uma ONG que ele é um dos fundadores, e começou a replicar as Brigadas Comunitárias. E aí os nossos “vilões” viraram heróis, entre aspas. Por exemplo, a Fazenda Cristo, do André Esteves, um dos caras mais ricos do Brasil, usou tornozeleira eletrônica, é pecuarista de grande escala… E de repente esse cara, com esse tipo de perfil, estava criando seis brigadas e estava mandando funcionário dele pago por ele para ajudar a combater em áreas públicas ou áreas comunitárias de quilombolas. 

Para manter esse movimento, estamos indo agora nos patrocinadores do filme, para tentar levantar o dinheiro para mais um ano de brigada. Estamos com 14 ribeirinhos empregados e fazendo um trabalho lindo. Quando não tem fogo, eles estão indo nas comunidades e dentro da nossa brigada tem dois veterinários. A gente está trabalhando na prevenção. Os brigadistas são todos os ribeirinhos, alguns deles foram do PrevFogo, entendem disso como ninguém. Eles vão na comunidade ensinar o MIF [Manejo Integrado do Fogo], vão plantar árvores com as crianças, vão explicar o perigo do fogo. Todo esse trabalho é muito importante na prevenção e essas brigadas atuam não só nos momentos extremos de fogo, mas no ano todo. 

Tem um depoimento no filme do coronel Homero, então presidente do ICMBio, que deixa bem claro o quanto a questão dos incêndios no Pantanal foi desprezada e até negada pelo governo… 

Propositadamente!

Pois é, essa era minha pergunta: Você acha que a política ambiental de agora intensifica e atrapalha a preservação?  

Essa é uma pergunta que não precisaria nem responder (risos). Acho que a essa altura, só pessoas com sérios problemas cognitivos não entendem o desastre que é o governo Bolsonaro. Eu não quis usar os nomes de Bolsonaro e [Ricardo] Salles no filme, primeiro porque ia conspurcar meu filme, segundo porque eles são pequenos, eles são fantoches desse Jaguaretê-Avá, deste demônio que vive na ignorância. Você vê o fazendeiro arriscando a vida, chorando porque perdeu a vaca, arriscando a vida para defender o Pantanal e está escrito Bolsonaro 17 na caminhonete dele. Então é óbvio que esse governo é horrível. 

Eu acho que o governo anterior, que no ponto de vista social era tremendamente melhor e no ambiental era um pouco melhor, cometeu um crime de lesa humanidade ao construir Belo Monte. Um governo que fez Belo Monte, um governo que fechou os olhos para Mariana, que quando a gente falava que a lama ia chegar em Abrolhos e a ministra ridicularizou os ambientalistas, e dois anos depois você ver metais pesados nos corais de Abrolhos. Infelizmente, essa é uma frase que eu falo desse momento polarizado, o descaso com o meio ambiente não é de esquerda nem de direita no Brasil. É um negócio criminoso, tanto quanto o outro imbecil que fala que quer passar a boiada a todo custo. Sem dúvida, no caso dos incêndios do Pantanal, foi até mais profundo porque o Ricardo Salles [ex-ministro do Meio Ambiente] desceu em Corumbá, sobrevoou, deu entrevista para a imprensa e logo em seguida foi empoderar os fazendeiros que punham fogo. Interferiu na Polícia Federal, inclusive nós trazemos um depoimento do delegado Rubens e daí ele é afastado. Curiosamente o delegado Rubens é o mesmo delegado que foi contactado pelo órgão ambiental americano quando teve aquele problema da madeira que saiu sem regulamentação.

Nós temos um governo que é quase uma ditadura, que interfere em todos os mecanismos que ele pode interferir e que o então ministro do Meio Ambiente falou com todas as letras que o objetivo dele era passar a boiada. E ele foi lá pro Pantanal e menosprezou, desmobilizou a operação Pantanal, demitiu o coronel Homero [Cerqueira, ex-presidente do ICMBio] e se perderam 40 dias preciosos, onde o fogo se alastrou loucamente. Quando eles voltaram para o combate, em setembro, já estava fora de controle e tinha parede de fogo de 60 quilômetros. Aí não existia mais força humana para parar uma parede de fogo de 60 quilômetros.

Eu tive um bate boca com um patrocinador que falou que meu filme era politizado porque apareciam a Marina Silva e o [Rodrigo] Agostinho [Deputado Federal]. Eu respondi: meu filme é tão, tão politizado que o coronel Homero, que era da ROTA [tropa do Comando Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo] e até hoje é bolsonarista, fala no filme, tem poder de palavra. O Homero é um exemplo: se você botar eu e ele numa mesa, a gente vai discordar de 98%, mas é um cara que dialoga. Por isso que o diálogo é tão importante. Aí você vê o quão autoritário era o Ricardo Salles, que briga com a própria direita, demite o coronel, porque ele quer destruir. Uma vez que pegou fogo e não tem mais mata, aí pronto, você pode botar boi à vontade. 

A minha esperança, por paradoxal que seja, é o homem pantaneiro. É quebrar a barreira do país polarizado e entender que aqui está todo mundo junto e no mesmo barco para defender o Pantanal.

A gente tem previsões relativamente tenebrosas para o Pantanal tendo em vista as mudanças climáticas. Estudos apontam que é uma das regiões sul americanas que mais vai aquecer e secar. Ao mesmo tempo, o Pantanal é cercado por soja, tem muita pecuária e toda a pressão antrópica. Qual a sua esperança e a sua desesperança em relação ao Pantanal?

Essa pergunta é difícil pra caramba de responder. Os maiores problemas que afligem o Pantanal, de certa forma, estão fora dele. A questão do fogo ainda pode ser integrada, mas se a gente não vê, por exemplo, o decreto que o Bolsonaro revogou que permite o plantio nas cabeceiras do Pantanal [suspenso depois pela Justiça] e acentuou desastres já consolidados por décadas como o do Rio Taquari. Então a primeira questão é a gente proteger o entorno, as nascentes, a área de planalto. Tudo é conectado e o Pantanal, por ser muito pequeno, é muito frágil, ele depende da preservação do seu entorno.

A minha esperança é que a gente está falando demais dos 26% destruídos do Pantanal e o que a gente deveria tentar focar é nos 74% preservados. Não adianta a gente querer na marra consertar.É tudo interligado no Pantanal. A melhor solução é cuidar muito bem desses 74% preservados para que a natureza vá se curando através da expansão. 

A esperança é que o Pantanal é menos burocrático do que outras áreas. 95% do Pantanal é propriedade privada e o pantaneiro típico, mesmo fazendeiro que ainda usa adesivo do Bolsonaro, é apaixonado por aquele lugar. Então a minha esperança, por paradoxal que seja, é o homem pantaneiro. É quebrar a barreira do país polarizado e entender que aqui está todo mundo junto e no mesmo barco para defender o Pantanal.

É o que eu falo dos povos originais e do respeito à terra. O seu Jamil [personagem do filme] de 72 anos, nascido e criado no Pantanal a vida toda, falou em junho: “essa florada de Ipê, está escrita, é sinal de muita chuva esse ano”. Todos os cargos da Embrapa que eu conversei desconhecem essa relação. E ontem o meu barqueiro Fabrício, nascido em Poconé, 38 anos de idade, mas neto de pantaneiro, criado no Pantanal, à noite na estrada viu muita caranguejeira, nunca tinha visto tanta na vida, pareciam um filme de terror elas cruzando a estrada, e ele falou: “o que eu estou vendo aqui, sinal de que vai alagar. A aranha sabe que vai alagar e está migrando para as áreas mais altas, anota que essa cheia vai ser forte”. Então a minha esperança é no Sr. Jamil, é no Fabrício, é no Ipê e nas aranhas. A natureza avisando que, como diz o Krenak, ainda dá tempo de adiar o fim do mundo.

  • Marcio Isensee e Sá

    Marcio Isensee e Sá é fotógrafo e videomaker. Seu trabalho foca principalmente na cobertura de questões ambientais no Brasil.

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