Reportagens

O Nordeste na liderança da transição energética

A região tem captado diversos projetos de energias renováveis e será a primeira no país a receber uma planta de hidrogênio verde

Carolina Lisboa ·
7 de julho de 2022 · 2 anos atrás

Por sua posição estratégica, com bons ventos, abundância de sol e uma extensa região costeira, o Nordeste tem se tornado um grande protagonista na transição energética das fontes fósseis para as renováveis e na busca pela neutralidade de emissões dos gases de efeito estufa (GEE) até 2050, conforme estipulado na meta brasileira do Acordo de Paris.

Uma das atuais apostas da região é o hidrogênio verde (H2V), que não gera emissões de carbono e que tem potencial de geração a partir de eólicas em terra (onshore) e no mar (offshore) e de plantas fotovoltaicas. O hidrogênio verde pode ser usado em processos industriais e atividades dependentes de combustíveis fósseis, grandes emissoras de GEE.

Os projetos de H2V vêm sendo capitaneados pelo estado do Ceará, com o Hub do Hidrogênio Verde, enquanto o Rio Grande do Norte é líder nacional na produção de energia eólica, que pode abastecer plantas de H2V. 

Contudo, a falta de regulamentação nacional sobre o tema gera incertezas e um grau de insegurança aos projetos, que se somam aos possíveis riscos ambientais e conflitos relacionados aos usos de vastas áreas continentais e marítimas para produção de energia.

Panorama energético

O Brasil é um dos países com a matriz energética mais limpa do planeta. Segundo a Aneel, do total de usinas em operação, 83% são impulsionadas por fontes consideradas sustentáveis.

Apesar disso, o setor energético brasileiro ainda é responsável por 18,22% das emissões de GEE, segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG).

A região Nordeste é líder em energias renováveis. Somente em fonte eólica, ela abriga cerca de 90% da capacidade instalada do país, com mais de 20 GW, o equivalente à capacidade inteira de Portugal, proveniente de todas as fontes. 

E essa participação deve crescer nos próximos anos. Hoje há 54 projetos de eólicas offshore em análise no Ibama, que juntos superam 133 GW. Além disso, foi mapeado um potencial de 1.700 GW para toda a costa, quase nove vezes a potência total instalada do país, que até junho foi de 183 GW.

O Rio Grande do Norte e a Bahia são os maiores produtores nacionais de energia eólica. Os estados respondem por 64% da capacidade instalada do Nordeste, com valores semelhantes de potência outorgada (autorizada), sendo o RN líder em potência fiscalizada (em operação).

“A posição geográfica e a qualidade dos ventos, como também uma política de estado de incentivo a fonte renovável, contribuíram significativamente para que o RN atingisse liderança nacional em potência eólica instalada”, conclui Hugo Fonseca, coordenador de Desenvolvimento Energético da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico do RN (Sedec-RN).

Hidrogênio verde

A produção de hidrogênio a partir de fontes renováveis e sem emissão de carbono, o chamado hidrogênio ‘verde’ ou H2V, é a próxima aposta da região. Ele é considerado um dos pilares da descarbonização, com potencial de uso no transporte aéreo e naval, produção de fertilizantes, metalurgia e produção de cimento e aço.

“O uso do hidrogênio, conceitualmente, é uma boa ideia, pois é um combustível versátil”, avalia André Luis Ferreira, diretor do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), organização sem fins lucrativos com sede em São Paulo. “Hoje ele é produzido para aplicações específicas, como no refino do petróleo e na produção de amônia e fertilizantes. É muito utilizado como matéria-prima e não como fonte de energia”.

O hidrogênio é comumente produzido a partir do gás natural, conhecido como hidrogênio ‘cinza’ porque emite CO2 na sua produção. Ele também pode ser ‘azul’, quando há captura de CO2 no processo. Mais de 90% do hidrogênio brasileiro é cinza e apenas duas plantas produzem hidrogênio azul. A Petrobras detém 95% da produção nacional, utilizada para consumo interno.

O método mais viável para produção do hidrogênio verde é a partir da eletrólise, processo no qual eletrodos submersos criam uma corrente elétrica contínua que separa o hidrogênio do oxigênio presente na água. O custo de produção ainda é alto, pois o processo demanda muita eletricidade e os equipamentos são caros.

Contudo, os custos vêm diminuindo devido ao barateamento da energia elétrica e o aumento da demanda por eletrolisadores, máquinas que produzem hidrogênio e oxigênio a partir de eletricidade e água. No Brasil, somente três empresas comercializam o equipamento: Siemens, ThyssenKrupp e Hytron, empresa brasileira adquirida pela alemã NEA Group.

A produção de hidrogênio por eletrólise representa apenas 0,1% da matriz energética global, mas possui potencial em um cenário de descarbonização. De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), a utilização do hidrogênio verde pouparia a emissão de 830 milhões de toneladas anuais de CO2 originados da sua produção por combustíveis fósseis.

“O hidrogênio ainda não é importante na matriz energética de nenhum país. A Europa também está iniciando seu uso como fonte de energia. Por isso, os países vão começar a investir em plantas no Nordeste”, explica Ferreira, diretor do IEMA.

Nordeste no mapa do H2V

O Brasil não aparecia no mapa internacional do H2V até fevereiro de 2021, quando foi lançado o Hub do Hidrogênio Verde no Complexo Industrial e Portuário do Pecém, no Ceará. “Foi uma mudança de paradigma no cenário nacional e internacional”, afirma  Monica Panik, da Associação Brasileira do Hidrogênio (ABH2), mentora da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil) e curadora da Biosphere World (BW).

Um hub de hidrogênio é uma região que concentra uma cadeia produtiva que vai desde a geração de energia renovável para abastecer as plantas de H2V até sua produção a partir da eletrólise da água, passando pelo armazenamento e distribuição, com uso do hidrogênio em diversos setores da economia.

Arte: Gabriela Güllich

As estimativas de capacidade de produção do complexo cearense são de cerca de um milhão de toneladas de hidrogênio por ano. Parte do gás será direcionado para o polo industrial que ocupa a área do porto e o restante será escoado para a Europa. 

“Com a decisão de ser pioneiro na produção de H2V no Brasil, o Ceará atraiu mais de 20 bilhões de dólares em investimentos anunciados por empresas internacionais e nacionais que assinaram memorandos de entendimento com o Governo do Estado e com o Complexo do Pecém para instalar plantas de hidrogênio e amônia verdes”, explica Panik. Até maio deste ano, 17 empresas haviam assinado memorandos de entendimento.

A primeira usina de H2V do Complexo do Pecém vem sendo anunciada pela empresa EDP. É um projeto-piloto que vai gerar hidrogênio verde em pequena escala. A unidade terá capacidade de produção de 250 Nm3/h do gás e sua operação deve ser iniciada em dezembro de 2022.

A usina será a primeira do Brasil e contará com investimentos de R$41,9 milhões, contemplando placas solares com capacidade de geração de 3 MW e um módulo eletrolisador de última geração. O hidrogênio será gerado na termelétrica Pecém e usado para substituir parte do carvão mineral que abastece a usina.

Enquanto isso o Rio Grande do Norte, líder nacional em energia eólica, vem estudando a implantação de um porto-indústria que tem entre suas finalidades o suporte a projetos de geração eólica offshore e produção de hidrogênio verde. 

Memorandos de entendimento já foram assinados entre empresas como a Vestas e a Enterprize Energy e o Governo do RN para desenvolvimento de estudos sobre a viabilidade do porto-indústria e de projetos de energia eólica offshore, amônia verde e H2V.

“Características como plataforma continental rasa, infraestrutura de transmissão, dados de medição de vento offshore e fator de capacidade média anual de 61% mostram que o RN está bem posicionado”, explicou Hugo Fonseca da Sedec-RN.

Complexo do Pecém, no Ceará, será potencial polo para produção de hidrogênio verde no Brasil. Foto: Divulgação

O fator de capacidade é a relação entre a produção efetiva e a capacidade máxima em um mesmo período de tempo. O RN possui o maior fator de capacidade média anual para instalação de usinas eólicas offshore do Brasil e potencial para gerar mais de 140 GW, equivalente a dez hidrelétricas de Itaipu.

Segundo a Aneel, em 2020 o Governo do RN captou cerca de R$ 8,3 bilhões em investimentos contratados para energia eólica. No primeiro semestre de 2021, foram mais R$ 5,3 bilhões. Em evento ocorrido em maio no RN, representantes do setor de energias renováveis projetaram investimentos de R$ 35 bilhões no estado para os próximos quatro anos.

A qualificação técnica também está nos planos do RN. Em abril deste ano foi assinado um acordo entre a Agência de Cooperação Técnica Alemã (GIZ) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) para a criação do primeiro Centro de Excelência em Hidrogênio Verde do país na capital Natal, com investimentos de cerca de R$ 14 milhões.

“Esperamos que até junho de 2023 o Centro esteja equipado e sendo utilizado para pesquisas e realização de cursos”, informa Marcelo Ramos, assessor técnico da GIZ. 

Serão criados ainda outros cinco hubs regionais no Ceará, Bahia, São Paulo, Paraná e Santa Catarina dentro do projeto H2Brasil da GIZ em parceria com o Ministério de Minas e Energia. O projeto apoia concursos de inovação e educação profissional em H2V e derivados, além da instalação de laboratórios de produção em universidades. 

A cadeia produtiva de H2V deve gerar 5,4 milhões de empregos na União Europeia até 2050. Apesar de não haver números precisos para o Brasil, Ramos estima 2,5 milhões de empregos até 2050. “Além disso, o mercado de H2V vem se tornando cada vez mais global, numa busca integrada por soluções de transição energética e descarbonização”, frisa o assessor.

H2V mais barato do mundo

Um estudo da consultoria McKinsey estimou que o megawatt-hora (MWh) da energia eólica no Nordeste custaria entre 119 e 142 reais, enquanto a energia solar estaria entre 129 e 169 reais. Assim, um projeto de produção de H2V em escala teria custo total de produção de aproximadamente 1,90 dólares por quilo em 2030. Caso esse mesmo projeto seja conectado à rede elétrica, o custo cai para cerca de 1,70 dólares por quilo.

O relatório sobre as perspectivas econômicas do hidrogênio da Bloomberg NEF, que modelou 28 mercados de diversos países, apontou que o H2V poderia ser produzido por 0,8 a 1,6 USD/kg na maior parte do mundo antes de 2050, se tornando mais barato que o gás natural. O Brasil teria o H2V mais barato, a 0,55 USD/kg, seguido por Chile, Argentina, EUA e Índia.

O custo da energia é determinante para viabilizar o H2V. De acordo com Daniel Lopes, da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil) e diretor da Hytron, 60% do custo do H2V é oriundo da eletricidade necessária para a produção, e esse custo será de 80% a partir de 2030. 

“O Nordeste será capaz de produzir o H2V mais barato do mundo, pois possui eletricidade abundante a baixo custo, radiação elevada, ventos constantes e está geograficamente bem posicionado”, afirma o engenheiro.

De fato, diversos aspectos fazem do Nordeste o potencial produtor do H2V mais barato do mundo. O Ceará, por exemplo, está numa localização privilegiada, a 4.016 milhas náuticas do Porto de Roterdã, o maior da Europa. O Porto é acionista em 30% do Complexo do Pecém e já estabeleceu rota para o H2V.

A Zona de Processamento de Exportação (ZPE) do Ceará, uma empresa do Complexo do Pecém, gera incentivos fiscais que tornarão ainda mais barata a produção para exportação. Além disso, Pecém abriga indústrias potenciais consumidoras de hidrogênio, como as de aço, fertilizantes, cimento ou operação de veículos portuários.

Outro fator importante para baratear os custos do H2V é a complementaridade diária solar e eólica encontrada no interior do Ceará, Piauí e Bahia. A incidência de sol durante o dia e vento à noite é condição ideal para o funcionamento dos eletrolisadores para produção de hidrogênio 24 horas por dia.

Regulamentação

O arcabouço legal brasileiro que dá suporte para eólicas offshore e plantas de H2V ainda vem sendo criado ou adaptado para abranger as novas modalidades de aproveitamento energético.

O Conselho Nacional de Política Energética propôs iniciativas como o Programa Combustível do Futuro e o Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2) nos quais há comitês que dialogam para estabelecer normas e regulamentações. Ambos tiveram suas diretrizes publicadas em 2021 e estão em desenvolvimento.

O Decreto Federal n°10.946/2022, em vigor desde 15 de junho, versa sobre a cessão de espaços físicos e o aproveitamento de recursos naturais para geração elétrica offshore. O Ministério de Minas e Energia tem até dezembro para publicar normas complementares ao decreto. “O MME está trabalhando fortemente, desde o início da publicação do Decreto, no texto com as diretrizes e detalhes dos processos”, informa o ministério em nota.

Além do decreto, alguns projetos de lei estão em tramitação na Câmara e no Senado, como o PL n°11.247/18 que autoriza a implantação de usinas eólicas e solares e os PLs n°3.655/21 e n°576/21, que disciplinam a outorga dessas usinas em corpos d’água sob domínio da União.

Já o PL n°725/22, em tramitação no Senado, disciplina o hidrogênio como fonte energética no país. “É um projeto propositalmente simples, mas altamente indutivo, em vez de interventivo. Dá um norte importante para os empreendimentos que já se anunciam no Brasil para essa nova fonte, bem como para as diversas tecnologias que a tornam viável”, explica Jean Paul Prates (PT-RN), autor do PL.

H2V para exportação

A produção do H2V no Nordeste vem sendo pensada para suprir a demanda internacional, podendo se tornar uma commodity energética para o país. A previsão é que seja instalada 70% da nossa capacidade atual de produção.

O H2V pode ser consumido e transportado de muitas formas, seja comprimido, liquefeito ou na forma de derivados como a amônia (NH3). Para exportação, já existe uma infraestrutura razoável de transporte de amônia por navios. Já o transporte pela rede de gasodutos é limitado, sendo possível o tráfego de uma proporção de cerca de 10-20% de H2V na mistura de gás natural sem que haja dano aos dutos.

“O H2V tem viabilidade logística no transporte e há poucos riscos associados. Isso já é feito de forma trivial em várias partes do mundo”, afirma Daniel Lopes, da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil) e diretor da Hytron.

Hidrogênio verde é uma das apostas para transição energética e descarbonização no mundo. Foto: UE/Reprodução

Em maio passado, a Comissão Europeia apresentou o Plano REPowerEU, em resposta aos problemas do mercado global de energia causados pela invasão da Ucrânia pela Rússia. O Plano estabelece uma meta de importação de 10 milhões de toneladas de hidrogênio renovável até 2030 para substituir o gás natural, carvão e petróleo em indústrias e setores de transporte europeus.

Contudo, André Ferreira, diretor do IEMA, demonstra preocupação quanto a essa demanda internacional. “O Nordeste do Brasil ajudará na transição energética da Europa, mas nós continuaremos usando termelétricas e combustíveis fósseis. Como será utilizado o hidrogênio no mercado interno? Quais os riscos e ônus para o país? As empresas estão se associando com governos, mas há poucos debates nesse sentido, até dentro das ONGs”, pondera.

Na opinião de Roberto Kishinami, coordenador sênior do portfólio de Energia do Instituto Clima e Sociedade (iCS), o hidrogênio e a amônia são commodities e sua produção ou comercialização “não tem potencial de maiores benefícios para o país, além da obtenção de moeda estrangeira com a venda de água, solo fértil, biodiversidade e expulsão de populações tradicionais, como ocorre com a agroindústria exportadora”.

“O mínimo a exigir é que o hidrogênio verde esteja inserido em uma política industrial, onde tenha um papel na produção de fertilizantes, energéticos ou outros produtos de maior valor agregado para a economia local e que, antes de tudo, suas contribuições para a geração de emprego, renda e bem-estar estejam identificadas”, aponta Kishinami.

Mercado interno

Ferreira acredita que um grande potencial do H2V no mercado interno seria sua utilização como bateria do sistema elétrico, para aproveitar o excesso de energia e compatibilizar produção e demanda. “Podemos armazenar o vento produzindo hidrogênio, mas há custos e riscos, pois o processo de eletrólise é caro e necessita de muita água”, explica.

Já para Daniel Lopes, da SAE Brasil, o H2V pode surpreender e atender a outras demandas internas. “O principal demandante é a produção de combustível. Seu uso já é realidade em veículos movidos a hidrogênio na França, Japão ou Alemanha mas, no Brasil, acredito que só daqui a 5 ou 10 anos, pois os custos ainda são elevados e há muita demanda”, pontua.

Os pesquisadores veem potencial para descarbonizar os transportes, especialmente de carga, com o uso do hidrogênio, embora sejam necessários motores movidos a célula a combustível, equipamentos que funcionam de forma contrária à de um eletrolisador, pois convertem energia química em elétrica utilizando hidrogênio e oxigênio.

Já para o mercado de carros e caminhões, um estudo publicado na revista Nature mostra que os veículos elétricos a célula de combustível (FCEV) são três vezes menos eficientes que os elétricos a bateria (BEV) e que estes têm maior tendência a dominar esse nicho.

Projetos eólicos offshore

No Ceará e no Rio Grande do Norte, alguns empreendimentos já se adiantaram na solicitação de licenças ambientais para produzir H2V a partir da energia eólica gerada no mar (offshore), já que a capacidade de geração de energia é maior nesses parques devido à potência das máquinas, geralmente acima de 15 MW.

De acordo com o Ibama, até 27 de janeiro de 2022 haviam sido solicitados licenciamentos para 36 empreendimentos eólicos offshore no Brasil, totalizando 5.464 aerogeradores. Em 20 de abril, já eram 54 empreendimentos, com 9.074 aerogeradores. As solicitações vêm aumentando rapidamente, mas as normas ou locais adequados para sua implantação ainda não estão bem definidas.

Exemplo de um parque eólico offshore instalado no litoral do Reino Unido. Foto: Nicholas Doherty

O superintendente do Ibama no RN, Rondinelle Oliveira, informou que o estado tem nove projetos de eólicas offshore, enquanto Piauí e Ceará têm 14 projetos mapeados. “Podemos perceber que há muita sobreposição de projetos, o que dificulta a análise pelo Ibama”, explicou ele. Dos 54 pedidos de licenciamento no Ibama em todo o Brasil, 17 têm sobreposição de polígonos.

Para Hugo Fonseca, da Sedec-RN, a sobreposição existe porque está havendo uma corrida de mercado. “Todas as empresas têm direito a requerer licença e elas querem uma cessão independente no leilão. É preciso que haja uma cessão planejada, para evitar essa sobreposição”, diz.

O Governo Federal ainda não decidiu se os empreendedores poderão solicitar a cessão independente diretamente ou se serão feitos leilões para licitação de áreas em troca do pagamento de bônus de outorga, como ocorre na exploração de petróleo e gás offshore.

Os projetos offshore são grandes em extensão e geração, tornando o licenciamento mais complexo. De acordo com Fonseca, a maioria está no mesmo estágio, ou elaborando EIA/RIMA e estudos complementares ou em análise pelo Ibama. “Os que deram entrada nas licenças estão aproveitando o prazo de quase dois anos após a emissão do Termo de Referência para se capitalizar e encontrar parceiros antes de enviar o projeto”, conta.

Um reflexo dessa complexidade foi a extinção em abril deste ano de três processos relacionados à emissão do Despacho de Requerimento de Outorga de eólicas offshore, sendo dois no Ceará. A Aneel avaliou como fora dos padrões os riscos ambientais para a biodiversidade e as propostas de intervenção, exigidas nas diretrizes de regulamentação.

Possíveis impactos negativos

A implantação de parques solares e eólicos para o suporte energético do H2V demandam vastas áreas continentais e marítimas, podendo gerar riscos ambientais e conflitos de uso com atividades tradicionais. Isso é crítico quando não há normas bem estabelecidas, especialmente na região que possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, segundo o IBGE.

Os impactos socioambientais em terra no Nordeste já são bem conhecidos. Já os possíveis impactos advindos das eólicas offshore vêm causando apreensão em algumas comunidades.

Em países da Europa e América do Norte, a instalação de parques eólicos no mar segue legislação e normativas que priorizam o controle e a mitigação de impactos como aumento do nível de ruídos produzidos pelos aerogeradores, colisão com aves em deslocamento, mudança em habitats bentônicos (fundo do mar) e pelágicos (coluna de água dos oceanos), alteração de cadeias alimentares, poluição por aumento do tráfego de embarcações, liberação de contaminantes e até aumento do calor sob linhas de transmissão.

Ana Paula Prates, do Instituto Talanoa, lembra que o Brasil já conta com políticas públicas como as Áreas Prioritárias para Conservação da Biodiversidade na Zona Costeira e Marinha e que é necessário desenvolver um Planejamento Espacial Marinho para estabelecer onde melhor posicionar os empreendimentos offshore.

“A questão é escolher onde colocá-los e, antes de abrir para o licenciamento, ter normas, regras e legislação muito bem estabelecidas, que possam conter ou minimizar esses impactos. Caso contrário, estaremos apenas jogando um enorme impacto no mar sem ao menos avaliar adequadamente”, frisa Prates.

Uma outra questão, apontada por Roberto Kishinami, do iCS, é a falta de conhecimento. “O Brasil investe quase nada em pesquisas básicas para conhecimento do que é seu território marítimo. Até mesmo os impactos da pesca – pequena comparada aos volumes globais – não são identificáveis pela falta de uma ‘linha de base’ “, destaca.

O coordenador acredita que, para não repetir os erros já cometidos nos empreendimentos onshore e evitar os impactos cumulativos de quase 10 mil aerogeradores implantados no litoral, será preciso uma avaliação socioambiental sistêmica. “É preciso delimitar se e quantas torres podem ser implantadas em cada bloco, polígono ou outra divisão geográfica, para que não haja danos irreversíveis”, alerta.

Com relação ao hidrogênio, deve-se avaliar os riscos envolvidos na manipulação, armazenamento e transporte em escala do gás e seus derivados. O H2 é muito inflamável e vaza de qualquer recipiente, permeando pelas paredes, o que exige paredes grossas, altas pressões e temperaturas de -253 °C para armazená-lo.

Já a amônia, um derivado sob a forma do qual o hidrogênio pode ser armazenado e transportado, é altamente tóxica. Mesmo pequenos acidentes podem criar grandes riscos para pessoas e ambiente.

Além disso, a produção de H2V utiliza muita água. Portanto, o risco de escassez hídrica e seca nos territórios de produção do gás, especialmente no Nordeste, precisa ser avaliado.

Utilizar água do mar dessalinizada como alternativa à doce também traz riscos. O processo de dessalinização gera um resíduo duas vezes mais salino que a água do oceano. Se descartado no mar sem tratamento, forma uma salmoura tóxica que degrada ecossistemas costeiros e marinhos, pois aumenta a salinidade e temperatura e diminui o oxigênio dissolvido na água, contribuindo para a formação de “zonas mortas”.

Desafios do Nordeste

A transição energética necessária para descarbonização mundial traz consigo muitas oportunidades e desafios, especialmente para a região Nordeste do Brasil. 

Regulamentar as eólicas offshore e a produção de hidrogênio e amônia verdes, construir ou adaptar portos e infraestrutura, lidar com os altos custos e desafios de produção, armazenamento e transporte dessa energia e atender aos padrões internacionais são questões em pauta nos governos locais.

Por outro lado, obter uma produção realmente ‘limpa’ ao longo de toda a cadeia, minimizando quaisquer impactos socioambientais, deve ser a meta principal. Por isso, as discussões e o envolvimento de toda a sociedade são fundamentais, para que haja uma transição energética justa e igualitária.

O H2V é uma tecnologia ainda em desenvolvimento no mundo inteiro. Assim, é fundamental avaliar os projetos sob todos os aspectos e, ao surgirem os dilemas, fazer uso do velho e conhecido (mas pouco utilizado) princípio da precaução.

Reportagem elaborada com uma bolsa de jornalismo fornecida pela parceria do ClimaInfo, com o apoio financeiro do Instrumento de Parceria da União Europeia com o Ministério Federal Alemão para o Meio Ambiente, Conservação da Natureza e Segurança Nuclear (BMU) no contexto da Iniciativa Climática Internacional (IKI). Os conteúdos desta publicação são de inteira responsabilidade dos seus organizadores e não necessariamente refletem a visão dos financiadores.

  • Carolina Lisboa

    Jornalista, bióloga e doutora em Ecologia pela UFRN. Repórter com interesse na cobertura e divulgação científica sobre meio ambiente.

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