Há exatos 50 anos, o presidente Juscelino Kubitschek assinava o Decreto 49875, que criava o Parque Nacional do Tocantins, com 625 mil hectares. Abrangendo o maciço cristalino da Chapada dos Veadeiros, o Parque Nacional do Tocantins se estendia para o norte, incluindo o vale dos rios Tocantins e Paranã em seus limites.
Se os limites desse parque nacional tivessem sido mantidos até os dias atuais, este certamente seria a unidade de conservação mais relevante do bioma Cerrado, incluindo formações campestres no topo das montanhas mais altas do centro-oeste, formações florestais associadas a grandes rios de influência amazônica, planícies de inundação sazonalmente alagadas formando pequenos pantanais, imensas extensões do cerrado mais heterogêneo e diverso do Brasil. Um verdadeiro espetáculo.
As áreas abertas da região eram tão ricas em fauna que ficaram conhecidas pelo fluxo de caçadores especializados na caça a veados que exploravam a região. Desta forma, toda região ficou conhecida como Chapada dos Veadeiros. A espécie mais caçada no passado, o veado-campeiro (Ozotocerus bezoarticus), é atualmente um elemento da fauna do Cerrado de difícil observação na região.
Conflitos com proprietários de terra e outros interesses sobre o solo e os recursos naturais da região, levaram à primeira facada nesse patrimônio natural. Durante o governo do general Emílio Médici, foi assinado o Decreto 70492 em 11 de maio de 1972, o qual reduziu os limites do Parque Nacional do Tocantins para menos de 172 mil hectares (171.924ha para ser exato) e mudou o nome da unidade de conservação para Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Tal decisão foi justificada com base em argumentações apresentadas em um relatório de 1969, produzido por uma comissão de técnicos do extinto Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal (IBDF), nomeados pelo Ministério da Agricultura, para avaliar os parques nacionais do Brasil. Dentre os problemas do Parque Nacional do Tocantins apontados pela comissão, foi destacada a grande extensão territorial da unidade de conservação (!) e o efeito “nocivo” da sua existência sobre as atividades minerárias e agropecuárias na região. O mais interessante é que esta comissão sugeriu a exclusão de áreas de planícies dos rios ao norte do Parque, justamente aquelas que a equipe não vistoriou.
Seguindo a mesma linha de raciocínio (produto da inteligência militar?), o Presidente General João Batista Figueiredo assinou o Decreto 85596 em 17 de novembro de 1981, retirando mais um grande naco do Parque Nacional, reduzindo-o para os atuais 62 mil hectares, uma área pálida diante da grandiosidade do Parque Nacional do Tocantins e ineficiente para a conservação em longo prazo da biodiversidade regional. Este pequeno limite é insuficiente para incorporar toda a diversidade paisagística e biológica da região e é incapaz de manter populações saudáveis de predadores de topo de cadeia, responsáveis pela manutenção da diversidade das comunidades animais. Neste ato também foram excluídas dos limites da unidade de conservação diversas nascentes de rios, como o Rio Preto, principal curso de água do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.
Com o Decreto sem número de 27 de setembro de 2001, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ampliou o Parque para 235.000 ha, restaurando um pouco do seu valor biológico pretérito. Intensamente comemorado por ambientalistas e pesquisadores, esse ato enfureceu muita gente, especificamente aqueles cujos interesses na região foram afetados, como grandes proprietários de terra, políticos, empresários e uma cambada de sócio-ambientalistas, com seu discurso socialmente correto e ecologicamente desastroso, baseado em baboseiras ideológicas, inventadas nos gabinetes refrigerados de quem nada entende de conservação, ecologia e evolução. Uma beleza…
Aqueles tempos eram confusos. A Lei do SNUC mal tinha completado um ano de idade e seu decreto regimental ainda não havia sido publicado. Ainda havia muitas brechas na legislação, muita informação intencionalmente distorcida correu livremente na mídia, muita gente queria se promover, muitos queriam continuar com suas cadeiras, outros queriam simplesmente escafeder o decreto.
Em 2002 ingressei por concurso público na Diretoria de Ecossistemas do IBAMA, sob a Coordenação do Sérgio Brant. Um dos assuntos mais relevantes no momento era justamente o que estava ocorrendo com a ampliação da Chapada dos Veadeiros. Havia muitas tentativas de derrubar o decreto de ampliação. Eu conhecia em detalhes os limites da ampliação, sendo capaz de identificar os argumentos furados contra a ampliação. Não haviam povoados inseridos dentro da proposta, os limites existentes foram baseados em estudos bem embasados, a ampliação não inviabilizava economicamente os municípios, mas ordenava a ocupação do solo, afetava o interesse de especulação sobre a terra, protegia cabeceiras e espécies raras. A ampliação era bastante bem vinda do ponto de vista da conservação e de uma preocupação responsável com o futuro da região. Mas a força política e econômica levantada contra a ampliação foi grande e a enormidade de boatos infundados espalhados na região causou grande comoção social. O espaço que tínhamos para esclarecer as questões era mínimo, até mesmo dentro do Ministério do Meio Ambiente.
Como os argumentos contra os estudos técnicos não prosperaram, o jeito foi atacar a forma no qual foram realizadas as consultas públicas. Com base na interpretação geral do que o Decreto 4340 de 22/08/2002 estabelecia sobre consulta pública, o Supremo Tribunal Federal acatou a relatoria da Ministra Ellen Gracie, sugerindo acatar o Mandado de Segurança 24184, impetrado por grandes proprietários de terra da região. É relevante ressaltar que o relado da Ministra Ellen Gracie não excluiu a possibilidade da Presidência da República apresentar outra proposta de ampliação, o que até o momento, não ocorreu. E me parece que não vai ocorrer nunca…
Logo após a anulação do Decreto que ampliou o Parque, realizamos uma vistoria na área e verificamos que a maior parte dos proprietários estava conduzindo desmatamentos de suas propriedades, erodindo a biodiversidade e excluindo sua relevância como área de conservação. Parabéns aos contrários à ampliação do Parque Nacional da Chapada. Foram extremamente eficientes em promover a maior ação de desmatamento da história da região.
No entanto, a Chapada dos Veadeiros continua sendo um dos meus lugares prediletos para pesquisa no Cerrado e nada me resta a fazer senão continuar fazendo minha parte pela conservação da região e esperar que algo positivo aconteça. Sempre que visito a região identifico mais parcelamento do solo, mais áreas desmatadas, mais especulação. Existe um estranho sentimento na região e dos milhares de visitantes que afluem nos municípios da região que a existência do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros garante a conservação dos atributos naturais da área. Ledo engano. Já é possível identificar o avanço de espécies invasoras dentro do Parque.
Por outro lado, existem ações atuais positivas para o futuro da região. No dia 10 de dezembro de 2010 foi criado o Centro de Estudos do Cerrado da Chapada dos Veadeiros da Universidade de Brasília que irá levar cursos de graduação e de apoiar pesquisas com biodiversidade na região. O conselho consultivo do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros está sendo reativado. Além disso, outras ações na região podem alavancar políticas de conservação na região, como a criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural da Serra do Tombador, com mais de 9.000 ha de área e propriedade da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza. Apesar de tudo, sempre existem razões para a esperança e para o trabalho.
Em todo caso, feliz aniversário Parque Nacional Chapada dos Veadeiros!
Leia também
Pato ameaçado por energia limpa
O Cerrado em jogo
PCHs ameaçam Veadeiros
Desmate e confusão em Veadeiros
Leia também
Entrando no Clima#31 – Mais uma COP do Clima começa em berço de petróleo
Podcast de ((o))eco começa a cobertura da COP29 diretamente de Baku, no Azerbaijão →
As COPs sob o jugo do petróleo
Estamos revivendo nas COPs a velha fábula da raposa no galinheiro, onde os países mais envolvidos com a produção de petróleo sediam conferências climáticas em que um dos grandes objetivos é justamente eliminar os combustíveis fósseis →
Sentados sobre petróleo, países se reúnem no Azerbaijão para discutir crise climática
“Nós devemos investir hoje para salvar o amanhã”, diz presidente da COP29, Mukhtar Babayev, que já foi vice-presidente de petrolífera estatal no país →