Menos pretensioso que seu imperial antecessor Pedro II, que prometeu vender as jóias da Coroa para acabar com a seca no semi-árido, o presidente Lula dis-se que vai “levar água para o Nordeste nem que seja com a lata d’água na cabeça”. Modéstia, muita modéstia. Lula quer fazer a transposição das águas do São Francisco, solução pensada pela primeira vez em 1847, pelo citado Pedro II, e depois em 1897, 1958, 1998 e 2000. Nesta segunda-feira, o assunto foi levado à análise do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, presidido pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Embora o assunto ainda esteja em discussão (em tese) o chefe de gabinete do ministro Ciro Gomes e seu homem de confiança, Pedro Brito, anunciou que os editais de licitação serão lançados em 30 dias.
A solução pretendida envolve a construção de 720 quilômetros de canais, 37 quilômetros de túneis (um deles com 15 quilômetros por nove metros de diâ-metro), nove estações de bombeamento e 27 aquedutos. Resultado: segundo o professor João Abner, doutor em Recursos Hídricos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é que o custo da água tornará inviável a obra. Ele compara: às margens do São Francisco, nos projetos de irrigação, o metro cúbico de água custa 2,3 centavos; a água da transposição terá preço de 11 centavos por metro cúbico. Será uma das mais caras do mundo. Abner diz que é falacioso o argumento que compara o custo da obra com a sua não realização. Isto significa comparar o preço da transposição com o preço da seca – mas a obra não vai acabar com a seca. Acrescenta que, na verdade, a água transposta se prestará ao desenvolvimento industrial do litoral, aí incluído o Porto de Pecém. “Mas eles (o governo) comparam com o custo para abastecimento huma-no, que não tem preço”, diz João Abner.
Além do mais, a água retirada do São Francisco será direcionada para a região do Nordeste mais bem servida de açudes. No Ceará, por exemplo, será abastecida a bacia do Jaguaribe, onde estão os quatro maiores reservatórios do estado. Ou seja, vão enviar a água para onde ela é menos necessária. Mais ainda, a obra, por si só, não é garantia de melhor qualidade de vida para as populações da região. Existem cidades localizadas a 10 quilômetros do São Francisco que são abastecidas por caminhões-pipas. João Abner diz que a questão, na verdade, é a democratização do acesso à água. A propósito, estudo da Comissão Pastoral da Terra mostra que 70% dos açudes públicos do Nordeste não servem à população. Um habitante do Piauí tem cinco vezes a disponibilidade de água de um morador de São Paulo, e o estado nordestino é muitíssimo mais pobre que o do Sudeste.
João Abner diz que a transposição é mais um capítulo – e que capítulo! – da indústria da seca e resume: o projeto é politicamente inconseqüente, economicamente inviável e socialmente injusto. As verdadeiras beneficiadas, diz ele, serão as empreiteiras, encarregadas de uma obra bilionária. Na sua maior parte, a água será destinada à irrigação (70%) e ao suprimento urbano (26%), restando algo como 4% para o abastecimento difuso. Seus principais usos serão a irrigação, o abastecimento da indústria e o estímulo da criação de camarões. Por causa do alto custo da água transposta, será necessário subsidiá-la e o encargo poderá recair sobre o consumidor urbano. Abner lembra, porém, que o São Francisco é um rio intensamente represado para a produção de energia elétrica e o sistema de transmissão do país é interligado. Assim, seria fácil diluir o custo do subsídio entre os consumidores de eletricidade de todo o Brasil.
A solução que João Abner sugere é dotar o semi-árido de uma rede de adutoras – Ceará e Rio Grande do Norte construíram cada um, nos últimos anos, mil quilômetros de canalização. A água para consumo humano, no campo, pode ser coletada e armazenada em cisternas de até 20 mil litros, que têm custo em torno de R$ 1 mil. Elas são construídas com placas de cimento pré-moldadas. É bom lembrar que nosso semi-árido é o mais chuvoso do mundo, com uma média pluviométrica de 750 mm anuais. Com 200 mm de chuva, uma família de cinco pessoas terá água para beber por até um ano, eliminando-se o risco de doenças de veiculação hídrica. E, para as mulheres, principalmente, acaba o penoso trabalho de ir buscar água, às vezes, a quilômetros de casa.
O problema do semi-árido é a distribuição desigual das chuvas, no tempo e no espaço. Além disso, o solo não absorve a água. Há necessidade, portanto, de aproveitar o chamado inverno para armazenar a água para os meses secos. É preciso que os reservatórios sejam cobertos, pois os índices de evaporação são altíssimos, dada a insolação da região, que supera 2.800 horas por ano, com temperaturas sempre acima de 30º. O semi-árido nordestino é um dos poucos tropicais do mundo e, portanto, um dos mais quentes.
Deixando-se de lado os aspectos econômico e político, há uma grande preocupação dos ambientalistas em relação ao que possa acontecer ao rio. Em março de 1972, a revista Realidade publicou várias matérias sobre o Velho Chico. Uma delas tinha como título: “Estão dizendo que o rio vai morrer”. O certo é que o São Francisco é hoje um rio poluído e assoreado. O governo fala em revitalizá-lo, mas isto exigirá tempo. Será preciso replantar as matas ciliares, construir sistemas de saneamento, educar a população. E a transposição é um projeto de curtíssimo prazo.
João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, adverte que foram constatados 38 dos 49 fatores de risco ambiental analisados. Entre eles, prevêem-se a extinção de algumas espécies de peixes, com a contrapartida da proliferação das piranhas, aumento da erosão (e, logo, do assoreamento) e ameaças aos sítios arqueológicos. Em alguns pontos do rio, desapareceram, por causa das barragens, peixes nobres, como o dourado e o surubim. Existe, além de tudo, uma quase inacreditável irracionalidade na condução da economia do semi-árido. João Abner, proveniente do Seridó, conta que a região viveu muito tempo do cultivo do algodão e da exploração de uma jazida de tungstênio. O bicudo acabou com as plantações de algodão e a China tomou o mercado brasileiro de tungstênio. Criaram-se, então, numa região em processo de desertificação, várias cerâmicas, consumidoras de lenha!
A matéria da Realidade conta com exatidão como se deu a devastação ao longo do Vale do São Francisco. Primeiro, foram os navios gaiolas, que chegaram a ser 30, na década de 1940. Numa viagem de ida e volta entre Juazeiro e Pirapora, cada embarcação consumia, em média, 400 metro cúbicos de lenha, o equivalente ao desmatamento de quatro hectares de cerrado ou dois de mata. Em 1970, a produção de 1,5 milhão de toneladas de ferro-gusa implicou o corte de 90 mil hectares de cerrado e 45 mil hectares de matas. O restante foi suprido por plantações de eucaliptos. A isso, somavam-se um milhão de residências rurais que usavam a lenha como combustível. Esta situação levou Vasconcelos Sobrinho, ecologista, ex-diretor do Serviço Florestal do Ministério da Agricultura e na época professor da Universidade Rural de Pernambuco, a afirmar (em 1972):
“O São Francisco é um rio condenado. Forçosamente virá a tornar-se um rio temporário. Desprovida de sua cobertura vegetal, a bacia perdeu a capacidade primitiva de reter as águas das chuvas e encaminhá-las às profundidades do solo para alimentar seus afluentes nas estiagens.”
E Carlos Drummond de Andrade escreveu: “Está secando o Velho Chico. Está mirrando, está morrendo”.
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