Reportagens

Mamona com gosto de álcool

Apesar da propaganda favorável, biocombustíveis são vilões disfarçados. A cana-de-açúcar está aí para mostrar que os danos ambientais são iminentes.

Aline Ribeiro ·
10 de março de 2006 · 19 anos atrás

O presidente Lula e a imprensa não param de exaltar a lei que regulamenta a utilização do biodiesel no Brasil. O governo acha que a produção desse tipo de combustível vai ser uma revolução na geração de empregos. Isso porque, teoricamente, processo envolve pequenos agricultores no plantio de espécies oleaginosas para a produção. Também se diz que a disseminação do uso do biodiesel trará benefícios ambientais, ao substituir a queima de derivados do petróleo, muito mais poluidores.

Se os efeitos sociais da medida ainda são discutíveis, os ambientais já se anunciam temerários.

“É preciso pensar que para produzir o óleo vegetal utilizado no biodiesel é preciso haver plantações. Ou seja, temos de ter espaço. Se a área escolhida for um ecossistema ameaçado, o meio ambiente será degradado de forma intensa”, alerta o ambientalista Ibsen Gusmão Câmara. Ele entende do assunto, pois testemunhou os efeitos perversos de um programa parecido que teve o seu auge na década de 80: o Pró-Ácool. Em 1996, publicou o resultado de seus estudos no livro Os limites originais do bioma Mata Atlântica na região Nordeste do Brasil, em parceria com Adelmar Coimbra-Filho. Resumo da descoberta: a cana-de-açúcar acabou com o que restava de florestas nativas na região.

“O processo foi o grande responsável pela destruição da Mata Atlântica. Em 1945, quando sobrevoava o Nordeste brasileiro, ainda via diversos remanescentes da floresta. Hoje, na região, temos apenas pequenos vestígios de mata, em locais de declive que não possibilitaram a plantação na época”, comenta Ibsen.

Males da cana

Um trabalho da Embrapa Monitoramento por Satélite realizado no nordeste de São Paulo mostra o custo ambiental da cultura do álcool da maneira como é conduzida até hoje. “As queimadas são protagonistas da deterioração ambiental”, diz o pesquisador Aldo Roberto Ometto, autor de tese de doutorado que avalia os impactos da cana-de-açúcar no estado. “As pessoas acham que o pior problema é aquele carvãozinho que suja as roupas. Mas o que mais prejudica, na verdade, são aquelas partículas invisíveis facilmente inaladas. Elas podem chegar a até 50 quilômetros da plantação e causam sérios problemas de saúde, tanto para as pessoas que trabalham na colheita quanto para a população ao redor”, explica.

Para os solos, a queimada ocasiona a perda de nutrientes. A palha da cana, que poderia ser utilizada como adubo para a terra, é perdida. E os danos vão além. Quando a planta é queimada, a sacarose de dentro da cana-de-açúcar sai, cristaliza e vira um melado. Em contato com o chão, acaba ficando sujo. Por isso, quando chega à usina, tem de ser lavado, num processo que consome grande quantidade de água. Isso sem falar nos agrotóxicos. Segundo Ometto, a média de herbicidas utilizada no cultivo da cana é muito mais alta do que em outras culturas. “Enquanto a plantação de laranja consome 2,4 kg por hectare ao ano, a de cana utiliza 5,5 kg”, compara.

O estudo realizado pela Embrapa avaliou uma área de 52 mil km², em 125 municípios paulistas. Para desgosto dos pesquisadores, que vêem na cana uma cultura sustentável se práticas mais modernas forem adotadas, apenas um produtor rural de grande escala cultiva a cana-de-açúcar sem utilizar agrotóxicos. Outro cuidado muitas vezes esquecido pelos agricultores diz respeito à utilização da vinhaça, um dos derivados da cana. Os produtores aproveitam o resíduo para adubar o solo, mas ignoram a possível existência de lençóis freáticos, que podem ser contaminados pelo produto. “O plano de irrigação tem de respeitar as características fisiológicas da área”, ressalta Ometto.

A ocupação dos solos do interior paulista pela cana-de-açúcar é impressionante. Segundo o pesquisador da Embrapa, há cerca de 20 anos 23,5% de uma área de 37 mil km² nas proximidades de Ribeirão Preto eram cobertos pela cultura. Hoje, mais de 50% das terras estão tomadas pela plantação. Como na utopia do biodiesel, a próspera cultura geraria centenas de novos empregos. Mas os estudos da Embrapa desmentem a esperança. Enquanto o cultivo de laranja gera 0,19 postos de trabalho por hectare ao ano, com a cana esse número cai para 0,07. Se forem estimadas as vagas diretas, indiretas e induzidas, a taxa é ainda mais discrepante.

Nos últimos anos a produção de álcool para combustível ganhou novo impulso, devido ao crescente interesse de países estrangeiros na substituição da gasolina pelo etanol e ao advento dos carros bicombustíveis (flex) no Brasil. A volta dos plantios de cana-de-açúcar assusta. “Estamos nos preparando para a mesma maluquice vista há 30 anos”, opina o economista Luiz Prado, ex-presidente da Fundação de Engenharia do Meio Ambiente do Rio de Janeiro (Feema) e por muitos anos consultor de organismos financeiros internacionais.

Prejuízos sociais

Se não bastasse o ressurgimento do álcool, vêm aí os novos biocombustíveis, com uma onda de plantações de mamona, milho, soja ou o grão que melhor se adapte aos processos de mercado.

Além da ameaça real de desmatamento e agrotóxicos, as benesses sociais prometidas pelo governo também se mostram duvidosas. Luiz Prado afirma que os benefícios para o pequeno produtor rural serão nulos exatamente nas áreas mais pobres do país. “A logística que o ciclo envolve custa muito dinheiro e não foi computada. Imagina quanto um produtor de mamona, por exemplo, terá de se deslocar até chegar a uma máquina de processamento da semente. Ele ainda precisará levar o óleo ao local em que a Petrobras vai misturá-lo ao diesel. Mais de 50% do lucro é gasto com transporte”, avalia.

Prado não se baseia apenas nos argumentos econômicos. No âmbito social, a fabricação de biodiesel também não parece um negócio da China. “Os agricultores ficarão nas mãos das grandes empresas de extração de óleo. Haverá uma concentração da renda e da propriedade rural. Além disso, o sistema de produção pode contribuir para o êxodo de populações para as periferias urbanas”, ressalta. A concorrência pelo uso da terra também incomoda o economista. Ele prevê que os alimentos ficarão mais caros devido à expulsão das culturas para longe dos maiores centros consumidores. Mais uma vez, o transporte seria vilão dos altos preços.

Nem social nem ambiental, o biodiesel soa como promessa furada. Já vimos esse filme.

Leia também

Notícias
20 de dezembro de 2024

COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas

Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial

Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia

Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.