Reportagens

Mamona com gosto de álcool

Apesar da propaganda favorável, biocombustíveis são vilões disfarçados. A cana-de-açúcar está aí para mostrar que os danos ambientais são iminentes.

Aline Ribeiro ·
10 de março de 2006 · 18 anos atrás

O presidente Lula e a imprensa não param de exaltar a lei que regulamenta a utilização do biodiesel no Brasil. O governo acha que a produção desse tipo de combustível vai ser uma revolução na geração de empregos. Isso porque, teoricamente, processo envolve pequenos agricultores no plantio de espécies oleaginosas para a produção. Também se diz que a disseminação do uso do biodiesel trará benefícios ambientais, ao substituir a queima de derivados do petróleo, muito mais poluidores.

Se os efeitos sociais da medida ainda são discutíveis, os ambientais já se anunciam temerários.

“É preciso pensar que para produzir o óleo vegetal utilizado no biodiesel é preciso haver plantações. Ou seja, temos de ter espaço. Se a área escolhida for um ecossistema ameaçado, o meio ambiente será degradado de forma intensa”, alerta o ambientalista Ibsen Gusmão Câmara. Ele entende do assunto, pois testemunhou os efeitos perversos de um programa parecido que teve o seu auge na década de 80: o Pró-Ácool. Em 1996, publicou o resultado de seus estudos no livro Os limites originais do bioma Mata Atlântica na região Nordeste do Brasil, em parceria com Adelmar Coimbra-Filho. Resumo da descoberta: a cana-de-açúcar acabou com o que restava de florestas nativas na região.

“O processo foi o grande responsável pela destruição da Mata Atlântica. Em 1945, quando sobrevoava o Nordeste brasileiro, ainda via diversos remanescentes da floresta. Hoje, na região, temos apenas pequenos vestígios de mata, em locais de declive que não possibilitaram a plantação na época”, comenta Ibsen.

Males da cana

Um trabalho da Embrapa Monitoramento por Satélite realizado no nordeste de São Paulo mostra o custo ambiental da cultura do álcool da maneira como é conduzida até hoje. “As queimadas são protagonistas da deterioração ambiental”, diz o pesquisador Aldo Roberto Ometto, autor de tese de doutorado que avalia os impactos da cana-de-açúcar no estado. “As pessoas acham que o pior problema é aquele carvãozinho que suja as roupas. Mas o que mais prejudica, na verdade, são aquelas partículas invisíveis facilmente inaladas. Elas podem chegar a até 50 quilômetros da plantação e causam sérios problemas de saúde, tanto para as pessoas que trabalham na colheita quanto para a população ao redor”, explica.

Para os solos, a queimada ocasiona a perda de nutrientes. A palha da cana, que poderia ser utilizada como adubo para a terra, é perdida. E os danos vão além. Quando a planta é queimada, a sacarose de dentro da cana-de-açúcar sai, cristaliza e vira um melado. Em contato com o chão, acaba ficando sujo. Por isso, quando chega à usina, tem de ser lavado, num processo que consome grande quantidade de água. Isso sem falar nos agrotóxicos. Segundo Ometto, a média de herbicidas utilizada no cultivo da cana é muito mais alta do que em outras culturas. “Enquanto a plantação de laranja consome 2,4 kg por hectare ao ano, a de cana utiliza 5,5 kg”, compara.

O estudo realizado pela Embrapa avaliou uma área de 52 mil km², em 125 municípios paulistas. Para desgosto dos pesquisadores, que vêem na cana uma cultura sustentável se práticas mais modernas forem adotadas, apenas um produtor rural de grande escala cultiva a cana-de-açúcar sem utilizar agrotóxicos. Outro cuidado muitas vezes esquecido pelos agricultores diz respeito à utilização da vinhaça, um dos derivados da cana. Os produtores aproveitam o resíduo para adubar o solo, mas ignoram a possível existência de lençóis freáticos, que podem ser contaminados pelo produto. “O plano de irrigação tem de respeitar as características fisiológicas da área”, ressalta Ometto.

A ocupação dos solos do interior paulista pela cana-de-açúcar é impressionante. Segundo o pesquisador da Embrapa, há cerca de 20 anos 23,5% de uma área de 37 mil km² nas proximidades de Ribeirão Preto eram cobertos pela cultura. Hoje, mais de 50% das terras estão tomadas pela plantação. Como na utopia do biodiesel, a próspera cultura geraria centenas de novos empregos. Mas os estudos da Embrapa desmentem a esperança. Enquanto o cultivo de laranja gera 0,19 postos de trabalho por hectare ao ano, com a cana esse número cai para 0,07. Se forem estimadas as vagas diretas, indiretas e induzidas, a taxa é ainda mais discrepante.

Nos últimos anos a produção de álcool para combustível ganhou novo impulso, devido ao crescente interesse de países estrangeiros na substituição da gasolina pelo etanol e ao advento dos carros bicombustíveis (flex) no Brasil. A volta dos plantios de cana-de-açúcar assusta. “Estamos nos preparando para a mesma maluquice vista há 30 anos”, opina o economista Luiz Prado, ex-presidente da Fundação de Engenharia do Meio Ambiente do Rio de Janeiro (Feema) e por muitos anos consultor de organismos financeiros internacionais.

Prejuízos sociais

Se não bastasse o ressurgimento do álcool, vêm aí os novos biocombustíveis, com uma onda de plantações de mamona, milho, soja ou o grão que melhor se adapte aos processos de mercado.

Além da ameaça real de desmatamento e agrotóxicos, as benesses sociais prometidas pelo governo também se mostram duvidosas. Luiz Prado afirma que os benefícios para o pequeno produtor rural serão nulos exatamente nas áreas mais pobres do país. “A logística que o ciclo envolve custa muito dinheiro e não foi computada. Imagina quanto um produtor de mamona, por exemplo, terá de se deslocar até chegar a uma máquina de processamento da semente. Ele ainda precisará levar o óleo ao local em que a Petrobras vai misturá-lo ao diesel. Mais de 50% do lucro é gasto com transporte”, avalia.

Prado não se baseia apenas nos argumentos econômicos. No âmbito social, a fabricação de biodiesel também não parece um negócio da China. “Os agricultores ficarão nas mãos das grandes empresas de extração de óleo. Haverá uma concentração da renda e da propriedade rural. Além disso, o sistema de produção pode contribuir para o êxodo de populações para as periferias urbanas”, ressalta. A concorrência pelo uso da terra também incomoda o economista. Ele prevê que os alimentos ficarão mais caros devido à expulsão das culturas para longe dos maiores centros consumidores. Mais uma vez, o transporte seria vilão dos altos preços.

Nem social nem ambiental, o biodiesel soa como promessa furada. Já vimos esse filme.

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