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O Almirante verde

A Marinha sempre rendeu ao Brasil bons defensores do patrimônio natural nacional. Um de seus filhos mais ativos e respeitados é o Almirante Ibsen de Gusmão.

13 de junho de 2006 · 18 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

O Almirante Ibsen de Gusmão Câmara não é um homem verde, nem usou fardas dessa cor. Ele, fardado de azul ou de branco, é um dos brasileiros que mais efetivamente lutou e luta pela defesa do patrimônio natural do Brasil. É verde só pelos seus aportes à natureza desde os navios e bases que comandou e dos elevados cargos que ocupou. Continua verde como oficial aposentado quando, ainda com mais afinco, defende as florestas, os animais e plantas e, como não podia deixar de ser, também defende veementemente os mares e os seres vivos que neles habitam e que constituem o patrimônio da nação brasileira. O Almirante Câmara é uma surpreendente mistura de militar e cientista, mistura da qual a história traz poucos exemplos, que merecem ser muito mais conhecidos.

Apareceu no cenário ambiental brasileiro faz muito tempo, embora, discretíssimo, sua presença não tenha sido sempre notada. Quando na ativa, foi o elemento chave para propor, desenhar e, assim mesmo, obter a decisão política do estabelecimento de muitas unidades de conservação marinhas, como os parques nacionais marinhos de Abrolhos e Fernando de Noronha e a Reserva Biológica do Atol das Rocas. Atol das Rocas foi a primeira unidade de conservação marinha do Brasil e foi por ele delimitada, pois o antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal sequer sabia o que é uma isóbata. Não se restringiu às marinhas. Ajudou e muito no estabelecimento da Reserva Biológica do Rio Trombetas, essencial para a conservação das tartarugas de rio, com seus 380 mil hectares. Também ajudou a estabelecer outras unidades de conservação na Amazônia e muitas estaduais, como foi o caso do Parque Estadual de Carlos Botelho, em São Paulo, por ele proposto. Não se restringiu a propor e promover unidades de conservação. Lutou muito para evitar desastres ambientais e foi fundamental para determinar a política brasileira sobre a defesa de baleias e outros mamíferos marinhos.

Ele se converteu num cientista de primeira linha quando se interessou pela paleontologia, a fitogeografia e a zoologia e, também, num ponderado ativista ambiental, dirigindo organizações não governamentais importantes como o faz até hoje. Ele é um dos mais respeitados cientistas brasileiros na sua área de pesquisa e é igualmente muito conhecido no exterior, onde grande parte de seus leitores e admiradores ficam pasmos ao saber que ele também foi um militar da mais alta patente.

Ibsen conta que seus inícios no tema ambiental se deram nos anos 1960s quando servia na Amazônia e que desde então, se associou à Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), a mesma que ele, já aposentado, dirigiria. Também afirma, generosamente, que a Marinha de Guerra sempre facilitou e estimulou seu interesse pela natureza e que algumas das suas responsabilidades militares lhe alertaram diretamente sobre a tragédia dos bens comuns e a conseqüente destruição do patrimônio natural no mar e nas selvas. A Marinha rendeu, assim, um duplo serviço à nação; teve um oficial brilhante que fez como devia o seu trabalho e ademais gerou um cientista e ativo defensor do verde e do azul do país.

É estimulante ver a confiança e o interesse que o Ibsen –como é chamado sem nenhuma cerimônia pelos seus novos pares- desperta nos eventos em que participa. Nas ocasiões públicas termina sendo rodeado de uma pequena nuvem de jovens melenudos ou barbados e de moças de jeans, todos carregando mochilas, que pretendem obter dele algum conselho, alguma sugestão para desenvolver as suas teses e pesquisas ou, apenas pretendendo que o mestre lhes proporcione algum estímulo ou reconhecimento. Assim, se converte num professor bem querido e respeitado e, olhando a cena, requer muito esforço imaginar que ele também foi um poderoso almirante.

Contrariando o imaginário popular, é difícil achar uma pessoa que com maior paciência e genuíno interesse escuta os demais e respeita as opiniões dos outros, inclusive as mais divergentes e contrárias às suas próprias opiniões. Durante anos representou a sociedade civil nas sessões do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) sendo sempre esperada sua palavra séria e pertinente com a qual, intermináveis discussões chegavam a um final feliz.

Só o conhecendo bem, se pode notar que é um militar. A forma como abotoa a camisa e a altura em que usa a calça, o corte do cabelo, a postura do corpo, sentado ou de pé, sua requintada cortesia de oficial de marinha e, claro, sua pontualidade às vezes irritante, revelam a disciplina e a formação. Seus conhecimentos vastos sobre ecologia e meio ambiente são, inteiramente, fruto da sua curiosidade científica, de sua capacidade de observar e interpretar a natureza e de seus hábitos de leitura. A combinação de militar e cientista produz, nele, um maravilhoso resultado.

Talvez a característica mais marcante de Ibsen seja sua irredutível fidelidade a seus princípios e convicções. Por isso mesmo ele é uma unanimidade no meio ambientalista: todos o respeitam. Ainda estando em serviço ativo, contrariando a muitos no governo de então, teve papel fundamental para evitar que se materializasse a proposta de destruir a Reserva Florestal de Mata Atlântica de Caucaia do Alto, para a construção do que hoje é o aeroporto internacional de Guarulhos. Mas, este é apenas um exemplo, dentre muitos outros, do caráter admirável do personagem.

O Brasil deve se orgulhar muito de ter um Ibsen de Gusmão Câmara. Poucos países têm essa sorte, mas, no caso brasileiro, ele não foi o único oficial da marinha de guerra que se destacou, tanto na carreira militar, como na cientifica. Foi um almirante, Álvaro Alberto da Motta e Silva, que, após anos de esforços, obteve o estabelecimento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Outro almirante, José Luis Belart foi, como o próprio Ibsen diz, seu precursor e mentor na defesa do patrimônio natural nacional, também, através do conhecimento científico e do profundo desejo de fazer algo a mais para o beneficio geral.

Ibsen não só é discreto. Também é muito modesto e, por isso, não vai gostar de ler esta nota. Mas, os que o conhecemos, respeitamos e admiramos queremos que muitos mais saibam o que ele fez e está fazendo pela natureza e pela vida no Brasil e no mundo. Os exemplos de civilidade são muito raros nestes dias como para desperdiçar o do Almirante verde.

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