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Pelo Controle da Munição

Além de pacificar nações, projetos africanos pelo desarmamento ajudam o meio ambiente. E Brasil ainda aceita armas de fogo nas florestas por força da caça ‘tradicional’.

4 de dezembro de 2007 · 17 anos atrás
  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

Retornei de uma viagem de quase quatro meses à África exatamente quando nosso Molusco-em-Chefe iniciava nova visita aos presidentes vitalícios daquele continente, modelos de democracia e gestão pública que ele parece admirar. Já no Brasil soube que, como era de se esperar, já há movimentações pelo seu terceiro mandato e o sujeito, que não se cala, não distingue parlamentarismo de presidencialismo.

Aqui também tive a agradável surpresa do desmatamento zero paulista, idéia de um secretário de meio-ambiente “ruralista”. E de constatar a que veio o Chibio parido por uma turma que se chama de “ambientalista” me faz sentir saudades de Zequinha Sarney e José Carlos Carvalho.

Também constatei o esperado aumento nas taxas do desmatamento amazônico. Era óbvio que a coisa iria explodir, já que a queda nas taxas se devia mais ao baixo preço dos commodities agrícolas do que às ações de fiscalização esporádica. Com os preços da soja & cia voltando a subir, o Ibama arrecadando 2,5% das multas aplicadas, corruptos presos nas operações da Polícia Federal voltando a trabalhar, a corrupção e ineficiência de órgãos federais e estaduais que deveriam cuidar das licenças de desmatamento e coisas como mandatos de reintegração de posse (meus parabéns a MT, RO e PA), não poderia dar outra.

Se propriedades desmatadas ilegalmente fossem sumariamente expropriadas (parte poderia ser adequada para a reforma agrária), territórios bárbaros como Buriticupu e São Félix do Xingu fossem ocupados de forma permanente por destacamentos militares em missão civilizadora, e a Justiça desse aos desmatadores o mesmo tratamento dado a Marc van Roosmalen, talvez a coisa fosse diferente. Mas como no Brasil dos neandertais, pesquisar é crime e desmatamento é desenvolvimento…

O que me surpreendeu ao retornar foi a discussão causada pelo filme Tropa de Elite. Deveria ser óbvio que o pilar do comércio de drogas (assim como do de madeira, carvão vegetal, animais silvestres, mercadorias roubadas/pirateadas, etc) está no mercado que as consome. Sem ações focadas em quem adquire a mercadoria, combater o tráfico, seja de drogas ou madeira, é como enxugar gelo. O que me lembra uma notícia divulgada depois do 11/9 de que a Al Qaeda teria tentado cooptar traficantes colombianos para enviar cocaína com antraz para os USA. Os narcos logicamente declinaram da parceria, pois isso mataria seu mercado.

A África é um continente fascinante não apenas pela sua natureza e culturas, mas por ser um campo de testes de toda sorte de teoria social, política e econômica. A maioria das idéias propostas, de um lado, por nossos inteliquituais da vanguarda do atraso, e de outro pelo que se consideram setores conservadores, já foi ou está sendo testada no continente. É uma das razões pelas quais apóio totalmente o ensino da história africana em nossas escolas. Desde que seja honesto sobre o que aconteceu após a independência dos antigos mestres coloniais, e sob as muitas experiências socialistas, autocratas ou simplesmente cleptocratas.

Aspectos da segurança pública nos vários países africanos são muito pitorescos. Em Angola ouvi reclamações sobre como o filme Cidade de Deus havia causado aumento da violência, pois os adolescentes dos museques estavam imitando os personagens. Ao mesmo tempo, em partes de Luanda a circulação é proibida após certo horário da noite e me informaram que um bandido preso pela terceira vez não terá a oportunidade de uma quarta. Na Nigéria, a milícia dos Bakassi Boys, que mata bandidos com facões cegos e depois os queima com pneus no pescoço, renderam a Anambra o prêmio de most crime-free state no país.

Em Lagos vi soldados do Exército patrulhando ruas, e enquanto eu estava lá um par de ladrões de feira foi obrigado a desfilar nu e com pneus no pescoço enquanto eram chicoteados pelos soldados. Na minha passagem pela África do Sul os jornais noticiavam coisas como bebês esquartejados e jogados no quintal vizinho nos Cape Flats, e uma pesquisa de 2001 mostrava que 11% dos garotos de 15 anos achava jack-rolling (= gang-rape) algo cool e um em cada quatro homens adultos admitia ter estuprado alguém.

Estas são possibilidades de futuros alternativos para o Brasil. Afinal, enquanto temos a distinção de ser o quarto país mais violento do mundo, somos um dos últimos sempre que nosso ensino é avaliado. Em meio a esta vergonha, nossas políticas oscilam entre o realismo cru e a crença cega que rejeita fatos desconfortáveis. Mas a África mostra também experiências com uma estratégia de combate à violência que resultou em ganhos ambientais e deveria ser seriamente considerada no Brasil.

O fim de guerras civis em Angola, Moçambique e Libéria (para mencionar algumas) levou ao início de processos de paz nos quais uma das medidas adotadas foi o desarmamento da população. Armas de fogo foram recolhidas e seu uso passou a ser restrito às forças de segurança. Na Libéria a ONU banca um projeto onde comunidades que são declaradas livres de armas (após o devido arrastão da polícia, com a colaboração local) podem receber recursos financeiros e assistência técnica para construir clínicas de saúde, campos esportivos, estradas, etc.

Além de resultar em maior dificuldade para que as pessoas se matem no atacado (facas, machados e tacapes são mais pessoais), a menor quantidade de balas zunindo no ar resulta em um alívio para a fauna silvestre que também servia de alvo e fonte de carne, marfim e outras mercadorias.

O resultado é que, além de maior paz na terra entre os homens de boa vontade, algumas populações animais estão se recuperando e há mais esperança para espécies que estão para se tornar mera lembrança. Fenômeno similar, resultante do desarmamento, ocorreu no Chile de Pinochet e na Guiné Equatorial de Macías (um dos ditadores mais alucinados da história moderna), mas em um contexto bem mais sombrio. Fora da África, no Laos, o desarmamento foi conduzido nas áreas de influência das unidades de conservação com o propósito específico de reduzir a pressão sobre espécies ameaçadas.

Apesar da proibição da caça datada de 1968, fruto de um bom momento do seu regime (assim como foi o Código Florestal), nossos generais falharam em dar o passo lógico de confiscar as armas de fogo, e a proibição resultou inócua na maior parte do Brasil. Uma pena. Boa parte de nossas espécies ameaçadas poderia ter hoje uma situação menos ruim, nossa sociedade poderia ter perdido o hábito do uso de armas de fogo e culturas regionais que cultuam a resolução de conflitos à bala, como Alagoas, as fronteiras amazônicas, os morros do Rio e a periferia de São Paulo, poderiam ser mais pacíficas.

No Brasil, a caça é um problema ambiental sério, mas que recebe pouca ou nenhuma atenção. Faz sentido, pois aqui as políticas ambientais recentes parecem ter se dedicado mais à manutenção da pobreza no mato e a fazer com que a questão ambiental perca credibilidade. Além de, é claro, a ajudar os amigos e dar sustento a suas ONGs. Embora seja em grande parte ilegal (exceção feita ao RS, onde a caça colabora para que banhados não virem arrozais), a caça é corriqueira, disseminada e descontrolada.

Já escrevi sobre isso antes, e acho que devemos distinguir a caça devidamente manejada, que também é um instrumento de conservação da atividade que corre solta no padrão tragédia dos comuns. Mas vale a pena olhar alguns estudos sobre o assunto. Uma estimativa conservadora feita por Carlos Peres em um estudo publicado em 2000 apontava que os 2,22 milhões de habitantes de áreas rurais da Amazônia brasileira consumiam 23,5 milhões de mamíferos, aves e répteis. Não surpreende que boa parte da Amazônia esteja vazia de bichos e os turistas estrangeiros comumente se decepcionem e acabem tendo que se contentar com macacos e araras engaiolados.

A revista científica Biotropica publicou, em meados deste ano, uma série de artigos sobre os impactos da caça em florestas tropicais, problema global e que dizimou e está dizimando espécies na América tropical, África central e sudeste asiático, e comprometendo sistemas ecológicos que mantém as florestas. Um estudo notável, parceria de Carlos Peres e do colombiano Erwin Palácios, comparou as densidades de espécies caçadas em 101 localidades em toda a Amazônia. Como as florestas amazônicas variam em produtividade e outros fatores, um estudo desta natureza procura isolar os efeitos da atividade humana daqueles que podem ser considerados naturais.

Embora muitos acreditem que a Amazônia é largamente inacessível e intocada, o fato é que a área de florestas que estão em pé, mas são quase vazias de bichos, é tremendamente subestimada, como mostrado pelo novo estudo reforçou os anteriores ao mostrar os impactos dramáticos da caça. Por exemplo, espécies favoritas no menu, como antas, macacos-aranha e queixadas, tiveram suas densidades reduzidas em, respectivamente, 44, 55 e 328 vezes entre sítios não impactados e aqueles sob pressão de caça.

Não é surpresa que em muitos estas, e outras espécies sensíveis como mutuns e jabotis, haviam sido extintos, incluindo sítios explorados por “populações tradicionais”, aquelas que deveriam nos ensinar como usar recursos naturais de forma sustentável. Um estudo do mesmo Carlos Peres, publicado em 2003, calculou que apenas 1,6% da Amazônia é tanto estritamente protegida e inacessível a caçadores.

Obviamente há necessidade de mecanismos de controle da atividade e de manejo de coisas como reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentado (mais um oxímoro) que tenham base científica, e não política.

Um tema recorrente de estudos deste tipo é que quando a atividade se mantém isto é resultado da presença de grandes áreas adjacentes onde a caça não ocorre por ser proibida ou por serem inabitadas, e servem de fonte para os bichos que recolonizam as áreas caçadas. Ou seja, as demonizadas unidades de conservação de proteção integral mantêm o bife nas mesas dos “tradicionais”.

Na Mata Atlântica, onde densidades humanas são máximas e populações animais mínimas, a caça é um desastre óbvio e não há a menor justificativa para que a prática seja tolerada, seja lá quem for que a pratique. E há outro aspecto pernicioso da atividade. O que mais assusta qualquer um explorando trilhas em lugares díspares como o Parque Estadual dos Três Picos (RJ), a Estação Ecológica de Murici (AL) e a Reserva Biológica de Uma (BA) é a possibilidade de tropeçar em um “canhão”, “cano” ou “trabuco” e ter uma perna destroçada ou as partes pudendas transformadas em carne moída.

Estas armadilhas são um risco maior que pisar em uma serpente ou ser vítima de assalto. Completamente não seletivas e funcionando sem necessidade da presença do caçador, são o instrumento de preferência dos caçadores comerciais que atuam em reservas como a Serra da Capivara.

Como grande parte das armas de fogo em circulação no meio rural, os canhões e similares são fabricados artesanalmente. Quando morei no interior do Piauí me impressionei com a habilidade dos ferreiros em fabricar armas sob encomenda e cheguei a ter uma bela escopeta feita por um artesão local. O ponto é que armas não podem ser facilmente controladas se há uma miríade de pessoas fabricando-as. Controlar a munição é uma alternativa.

Nenhum cidadão normal, exceto meus colegas que coletam espécimes para museus (e isto pode ser esticar demais o termo), pode justificar o uso de mais que um punhado de balas e cartuchos por ano para seu treinamento de tiro, uma caçada legal nos banhados gaúchos ou a rara autodefesa.

Poucos fabricantes abastecem o mercado com cartuchos, espoletas, pólvora e chumbo, e penso que estes insumos podem ser mais facilmente controlados. Minha sugestão é que haja a proibição total da venda avulsa dos insumos que permitam fabricar munição em casa. Nada de cartuchos ou espoletas vendidos a granel, como vi em armazéns no Piauí e Rondônia. Apenas a aquisição de balas e cartuchos completos seria permitida, decretando a morte das “pica-paus” e de alguns modelos de armadilhas.

Imagino algo similar ao SPC, onde inserir o CPF de uma pessoa no sistema permitiria saber se o comprador é autorizado (tem uma arma regularizada e não é um psicopata), se pisou na jaca e se extrapolou sua cota anual. Se a venda fosse condicionada à devolução dos cartuchos gastos, mais segurança teria o sistema, que poderia ainda comparar o total de vendas com a produção das fábricas e detectar se há desvios. Alguém já deve ter pensado nisso, mas não custa repetir.

Isso pode demorar, mas a simples proibição da venda de espoletas e cartuchos avulsos já poderia ter um impacto significativo, pelo menos para a conservação da fauna. Fica aqui minha sugestão.

Não muito tempo atrás nossa sociedade optou, democraticamente, pelo não desarmamento e pelo direito da posse individual de armas, antes pela falta de confiança no Estado como provedor de segurança do que por qualquer outra razão.

Acredito que será uma decisão a ser lamentada, como a de países que democraticamente elegeram ex-golpistas metamorfoseados em líderes populistas embalados por promessas de um novo “socialismo” nacionalista, autocrata e belicista (o Führer e o Bolivariano têm paralelos fascinantes).

Mas já que optamos por uma sociedade armada sem que tenhamos atingido o mínimo de civilidade (os suíços e finlandeses estão armados até os dentes, mas não barbarizam como nós), o controle da munição poderia ser o início de uma mudança cultural. Os bichos que vivem na linha de tiro agradeceriam.

Alguém irá certamente se opor alegando que as “populações tradicionais” precisam caçar para se alimentar. Afinal os cartuchos calibre 20 responderam por 53% dos vertebrados mortos por uma aldeia dos emblemáticos Kayapós. Sem entrar na questão da sustentabilidade ou na comparação entre o preço da munição e o da carne de gado vendida na cidade mais próxima (onde eles têm que comprar sua munição), é interessante ver armas de fogo inventadas pelos eurodescendentes imperialistas como tradicionais. Já que o negócio é manter parques antropológicos livres da contaminação cultural, qual seria o problema de valorizar o conhecimento tradicional e utilizar o vasto repertório de técnicas pré-pólvora que vão da arapuca à zarabatana?

Usar “razões religiosas” para justificar a extinção de espécies (como já ouvi dos Guaranis plantados nos parques paulistas) cai na falácia de que tudo que é tradicional (e de cunho religioso) é positivo e deve ser mantido. Isso é tão ridículo como um Centro de Tradições Paulistas advogar a necessidade de restaurar a tradição bandeirante de prear índios. E tão tolerável como o uso da religião para justificar as barbáries que por aí grassam.

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