A Polícia Federal (PF) prendeu ontem 72 pessoas acusadas de integrar uma quadrilha ligada ao tráfico de animais silvestres. A ação, deflagrada após mais um ano de investigações, ocorreu em nove estados brasileiros e trouxe à tona uma das chagas da conservação: a existência de um mercado cada vez maior para este tipo de “produto”. Segundo a PF, o grupo capturava e vendia 500 mil espécimes silvestres ao ano, a maioria em extinção, para países como República Tcheca, Portugal e Suíça, além do próprio Brasil. Por trás das cifras escandalosas, pairam questões polêmicas e ainda sem respostas. Por que ainda existe demanda por esse tipo de animal, quais são as armas efetivas contra o tráfico e a criação legalizada em cativeiro como arma ao mercado negro são algumas delas.
Para Dener Giovanini, fundador e coordenador da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), o interesse em ter espécies não-domésticas em casa tem raízes fincadas no início da colonização brasileira. “Essa [a criação de espécies silvestres] é uma questão muito pessoal, mas também um traço cultural do brasileiro que teve origem há 500 anos, quando colonizadores começaram a incorporar hábitos indígenas, inclusive no que se refere à criação de animais domésticos. Só que os animais domésticos dos índios eram araras!”, diz.
Por trás deste “traço cultural”, pesam também outros sentimentos humanos, como vaidade, curiosidade, desejo de status e falta de conhecimento. O resultado é a movimentação de 1 bilhão de dólares por ano no mercado negro de animais silvestres. E isso só para aves, que representam grande parcela do total de espécies comercializadas clandestinamente.
Criação legalizada é legal?
Segundo o biólogo Tiago de Oliveira Lima, presidente da União Nacional das Entidades de Criadores e de Comerciantes de Animais da Fauna Nativa, Exótica e Doméstica (Unifauna), a melhor arma no combate ao tráfico é a criação em cativeiro legalizada. Isso porque, de acordo com ele, para cada animal legalizado são preservados dez que morreriam em mãos de traficantes. Seu argumento é baseado em levantamentos que indicam que somente uma em cada dez aves sobrevive ao tráfico e 12 milhões delas morrem por ano, vítimas do comércio clandestino.
Lima também defende que o comércio legal regulamenta a prática, apresenta-se como solução para animais que tiveram de ser retirados de suas áreas de ocorrência – como em casos de construções de hidrelétricas – e ainda gera conhecimento científico “impossível de analisar” em animais soltos na natureza. “Consideramos, sim, as condições de cativeiro como variantes, mas o comportamento das espécies nestas situações não é 100% diferente do natural”, argumenta.
Apesar dos pontos positivos apresentados por ele, há entidades que lutam veementemente contra a prática. A Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA, na sigla em inglês) é uma delas. Segundo a veterinária Ana Nira Junqueira, consultora da WSPA no Brasil, a prática fere as “cinco liberdades” que são de direito dos animais silvestres, conseguidas quando o animal está livre de fome e sede, livre de desconforto, de lesões e doenças, de medo e estresse e livre para manifestar seu comportamento natural.
“Em cativeiro, o animal não tem condições de escolher seu parceiro, geralmente tem uma alimentação inadequada, o que provoca deficiências nutricionais, e está suscetível a ser contaminado ou transmitir doenças para as quais ainda não há vacinas”, diz Ana Nira. Além disso, a veterinária argumenta que ainda não existe medicina veterinária especializada suficiente para atender à demanda dos animais silvestres e que as pessoas não estão preparadas para lidar com eles nas residências.
Caso a criação legalizada seja incentivada como prática de combate ao comércio ilegal, pesa ainda o fato de que muito provavelmente o Ibama não terá condições de fiscalizar este comércio, argumenta Nira. “Não condenamos a criação em cativeiro. Em certos casos ela é importante, como quando os animais são muito antropizados (que ficaram em contato prolongado com humanos e não sabem mais viver em ambiente selvagem). O que não defendemos é que se crie uma fábrica de animas silvestres”, diz.
Para a WSPA, a melhor alternativa ao tráfico de animais silvestres é a educação e a mudança de hábitos na sociedade. “A justificativa que de o mercado existe por uma questão cultural não é válida. Nós não usamos as mesmas roupas de dez anos atrás, não comemos as mesmas coisas, estamos sempre mudando. Precisamos ter em nossa consciência que: ou mudamos ou morremos com eles (vida silvestre)”, diz a veterinária.
Encarar o problema de frente
Controversa ou não, a criação legalizada de animais silvestres como arma de combate ao tráfico deve ser enfrentada, diz Dener Giovanini, do Renctas. “Temos que ser mais pragmáticos. Claro que tem uma questão ideológica e emocional quando se fala de animais, mas o comércio legalizado é uma das armas para se combater o tráfico. Defendo que haja esta criação comercial para atender à demanda e para que parem de tirar os animais da natureza”, diz.
Segundo ele, esta “arma” deve vir associada a outras, como educação ambiental e fortalecimento da lei e da fiscalização. O que não pode acontecer é o governo fingir que a situação não existe. “Hoje a regulamentação da prática está espalhada em várias portarias e decretos. Esta falta de clareza só prejudica. É preciso que o governo se empenhe, crie financiamentos para a prática, que é muito cara”, defende.
Para Giovanini, é claro que a situação ideal seria a de que os animais silvestres fossem mantidos na natureza. No entanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a situação aconteça “Isso ainda é uma utopia e utopias existem para serem perseguidas, mas não podemos fugir da realidade”, diz.
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