O Brasil não possui, até hoje, dados nacionais consolidados sobre o número de queimadas nas rodovias . O que existe são estatísticas regionais feitas, majoritariamente, pelos Bombeiros e testemunhos de motoristas que presenciam a ocorrência dos focos, concentrados nas épocas secas do ano. Uma dessas testemunhas é o técnico mecânico Edmar Viana, que há 20 anos convive com o problema nas estradas que ligam Rio de Janeiro à Bahia, principalmente as BRs 262, 381 e 116.
Com experiência de 24 anos na análise de falha em máquinas e equipamentos mecânicos, Viana percebeu que os focos poderiam ser gerados pelos próprios veículos, já que muitas vezes ocorrem em áreas sem ocupação humana. Ele juntou uma série de fatores, como idade da frota de caminhões que rodam no país (cerca de 20 anos) e dos motores usados por eles – que muitas vezes já foram reformados ou substituídos, podendo ser ainda mais antigos que os veículos-, combustível usado, falta de acostamentos nas vias e comportamento dos caminhões.
E as bitucas?
Em 2007, a pesquisadora Jennifer Dainer, da Universidade de Tecnologia de Sidnei, realizou estudo prático para entender o potencial das bitucas de cigarro para ignição do fogo. Com a ajuda de bombeiros locais e da Organização Australiana de Ciência e Pesquisa da Comunidade (CSIRO, na sigla em inglÊs), Dainer tentou provocar o fogo em condições propícias à disseminação e em uma região com alta concentração de bitucas – em três semanas foram coletados 426 cigarros em uma área de apenas 60 metros quadrados. O experimento teve sucesso em 33% dos casos. Outra pesquisa sobre o tema, desta vez realizada pela CSIRO em parceria com o instituto neozelandês Scion, em 2009, foi mais a fundo no problema. Intitulado “Bitucas de cigarro e fogo”, o trabalho estudou as situações mais propícias para ocorrência de queimadas por brasas de cigarro. Entre os resultados encontrados estão que o tipo de tabaco e filtro influenciam na ignição. Bitucas de fumo enrolado na mão, como o fumo de corda, não foram capazes de iniciar qualquer incêndio. Também parece haver uma associação entre filtros e a capacidade de provocar fogo: em cigarros americanos sem filtro e com aditivo para combustão a chama foi criada com facilidade. O processo de ignição mais comumente observado foi quando um cigarro sem filtro queimou todo e acendeu o matocombustível quando a bituca chegou ao final. O fato de o cigarro se romper ao ser jogado também influencia. Ao se quebrar em contato com o ar ou solo, a capacidade de inflamação da bituca diminui. Assim, segundo a pesquisa, não seria possível incendiar o mato com bitucas jogadas de carros que estão viajando a cerca de 80 km/h. O tipo de combustível é ainda fator determinante. Queimam com mais facilidade, por ordem crescente de dificuldade de ignição: material vegetal decomposto e madeira podre, lanugem de sementes, casca de árvores fibrosas, folhas de pinheiros no chão, folhas de pinheiro em árvores, ervas recém mortas e folhas de eucaliptos caídas. |
A conclusão a que Viana chegou foi que os focos seriam causados pela fuligem incandescente que jorra do escapamento do caminhão. O fato de muitas vias não possuírem acostamento e de a ultrapassagem ser comum pelo lado direito colaboram para a situação, já que o material incandescente expelido – que pode chegar a uma temperatura entre 400°C a 600°C – sai mais próximo da vegetação. Por meio de observação, ele percebeu que os focos acontecem mais freqüentemente em curvas e aclives, isso porque o veículo, segundo ele, trepida na hora de reduzir a marcha para efetuar as manobras, provocando o descolamento da fuligem que estava grudada no escapamento.
A alternativa para solucionar o problema seria substituir a frota de caminhões velhos por veículos mais novos. Como essa medida tende a demorar muitos anos para ser efetuada, Viana propõe outra saída, muito mais simples e que poderia ser facilmente implementada se houvesse interesse do poder público em criar ações de incentivo para isso. “O escapamento dos caminhões poderia ser voltado para baixo, e não para o lado, mudando a direção dos flocos de fuligem que se despregam”, disse a O Eco. O trabalho de Viana, intitulado “Queimadas no Brasil: causa real nas rodovias”, foi apresentado à Universidade do Norte do Paraná (Unopar) em abril passado. A idéia do técnico é desenvolver o trabalho nos próximos anos.
Experiência em Paraty
Segundo o pesquisador da Unicamp Carlos Fernando S.Andrade, que há alguns anos estuda a ocorrência de queimadas em beiras de rodovias, não é possível atribuir uma só causa para o problema no país. Ele depende de vários fatores, como vegetação da área de ocorrência, situação climática e dos ventos no momento da ignição e intensidade da chama inicial. Em 2009 ele publicou, junto com o diretor da empresa SYGMA Fire Protection & Environmental Engineering, Sérgio de Araújo, e com o engenheiro agrônomo Sílvio Velloso, da empresa Flora Paraty, o trabalho “Podem as bitucas de cigarro iniciar incêndios na beira da rodovia Rio-Santos (BR 101), região de Paraty?”
Segundo levantamento dos Bombeiros daquela região, todos os anos ocorrem cerca de 100 queimadas que não são provocadas por práticas agrícolas. Os incêndios são quase sempre em campos sujos, com capim e gramíneas que secam no inverno. Cada foco queima de dois a dez hectares, sendo que, na metade das vezes, não pode ser controlado, causando perda total da área afetada. Em 2005, por exemplo, a estimativa é que tenham sido queimados 325 hectares de vegetação na beira da BR 101.
Para tentar entender os reais motivos desse fogo, Andrade e os outros pesquisadores realizaram experimentos práticos controlados e chegaram à conclusão de que, naquela região, de Mata Atlântica, as queimadas também não são provocadas por bitucas. Mesmo em condições favoráveis para disseminação do fogo, como baixa umidade, capim seco e alto e pouco vento, as várias tentativas de provocar a chama por meio da brasa do cigarro falharam.
Como a maioria dos focos na BR 101 acontece em áreas de circulação humana, como perto de pontos de ônibus, e geralmente nos finais de semana, a conclusão a que chegaram é que o vandalismo é a causa principal das queimadas na região. “Na nossa costa verde, de Mata Atlântica, podemos afirmar que o fogo não é causado pelas bitucas, por causa do tipo de vegetação, mais úmida, e pelo clima. No Cerrado e Caatinga, com formação vegetal diferente e tempo mais seco, pode ser que essa seja uma das causas”, explicou.
Programa de reflorestamento
Mais importante do que entender as causas de cada foco de queimada é procurar combatê-las, defende Andrade. Para isso, o pesquisador, junto com a Flora Paraty, criou um projeto de arborização da Rio-Santos. Com o reflorestamento de áreas limítrofes da estrada, cria-se uma barreira de proteção à mata remanescente. As árvores ainda fazem sombra, evitando que o capim seque e se torne um potencial combustível para o fogo. O projeto também tem promovido a instalação de placas de conscientização e ações em escolas e com as comunidades adjacentes à estrada para coleta de sementes, produção, plantio e proteção de mudas. “Não adianta só realizar ações de educação ambiental”, diz o pesquisador.
Em pratica desde 2001, o projeto já promoveu o plantio de cerca de 12 mil árvores na chamada Costa Verde do Rio de Janeiro. O trabalho conta com o apoio da Prefeitura de Paraty e terceiro setor local, além da anuência do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Somente nos últimos dois anos, o plantio das árvores, associada ao tempo mais chuvoso, ajudou a diminuir em 90% a incidência de queimadas nas margens da BR 101.
Leia também
Entrando no Clima#40 – Florestas como forças de estabilização climática
Podcast de ((o))eco fala sobre como as florestas têm ganhado espaço nas discussões da COP 29 →
ONU espera ter programa de trabalho conjunto entre clima e biodiversidade até COP30
Em entrevista a ((o))eco, secretária executiva da Convenção Sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU fala sobre intersecção entre agendas para manter o 1,5ºC →
Livro revela como a grilagem e a ditadura militar tentaram se apoderar da Amazônia
Jornalista Claudio Angelo traz bastidores do Ministério do Meio Ambiente para atestar como a política influencia no cotidiano das florestas →