Análises

Volta às origens

Autor viaja de moto pelos sertões do Norte de Minas e Oeste da Bahia, redescobre traços de seus antepassados e encontra um São Francisco em melhor estado do que esperava.

Marcelo Netto ·
18 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

Esta história começou com o seu Manoel, um vendedor de mexerica, na beira do rio São Francisco, perto de Três Marias, Minas Gerais. Ia pilotando uma moto Shadow 600 em direção a Tiradentes, em junho, para um fim de semana de conversa fiada num charmoso, alegre e engraçado encontro de motociclistas.

Obras da BR-040 me fizeram parar no meio de uma enorme fila de caminhoneiros. A moto clássica custom chama atenção. Todos a admiram. Ela liga um botão em algum lugar do interior das pessoas, mesmo as mais temerosas do veículo, e libera uma emoção relacionada à liberdade e aventura. Sinto isto por aí nas minhas andanças. Muitas vezes, quando atravesso cidades do interior, ciclistas empinam suas bicicletas em saudação. Crianças as adoram. Dão adeus e sempre respondo buzinando, acelerando, respondendo ao adeus, fazendo a felicidade delas.

Quem anda nas estradas também a admira. Na maioria das vezes. Os caminhoneiros se achegaram e já que ninguém teria nada mesmo para fazer durante uma hora naquele cerrado com vista para o lago da barragem de Três Marias o papo rolou fácil. Uma caminhonete velha cheia de mexericas e uvas era a matéria prima perfeita para uma conversa mole.

Esgotado o interesse pela Shadow mudei o assunto contando as histórias e peripécias da família mineira de meu avô na região do São Francisco.

Meu avô era inspetor das linhas dos Correios e Telégrafos no interior de Minas, entrando pelo alto-sertão da Bahia. Minha avó era muito ciumenta e por este motivo não tinham casa. Com uma filharada enorme, viajavam sempre, moravam em barracas ou em prédios, casas, salas improvisadas por prefeituras, muitas vezes de favor com moradores de pequenos povoados.

Fruta por todo lado

Meu avô escrevia peças de teatro, dramas, e a família, em troca, se apresentava para o povo da região. Minha mãe contava histórias destas peripécias. Minha tia escreveu uma novela sobre esta época e volta e meio a releio com carinho. E eu repetia as que me lembrava para os caminhoneiros, ajudado pelas observações do dono da caminhonete, o seu Manoel.

Falava de minha mãe e minhas tias roubando melancias nas barrancas do São Francisco, e seu Manoel: “elas estão lá até hoje!”. E ele falava dos japoneses – na verdade nisseis – que estão produzindo fruta adoidado por ali, inclusive uva. Nunca imaginei que seria possível produzir uva com qualidade no cerrado. Daqui a pouco vão produzir vinho …

Contei também da passagem da Coluna Prestes por aquelas bandas e das cidades vazias, abandonadas, povoados inteiros fugindo das escaramuças com as tropas do exército, inclusive meus avós, com a filharada debaixo das saias de minha avó.

Meu avô e sua inseparável trupe tiveram de trabalhar duro por causa desta passagem da História nacional. Os rebeldes cortaram as linhas telegráficas quando subiram do Sul para o Nordeste. Meu avô teve de reconstruí-las.

Quando a estrada finalmente foi liberada todos pagaram, menos eu. Seu Manoel não deixou. “Você não paga”, disse, deu o telefone de casa, que está no meu celular até hoje, e me convidou para comer a comida mineira de sua mulher, “inigualável”, segundo ele, em Pirapora, “ali perto”, mais de 100 kms, em outra viagem. Falei que iria. E fui.

Um mês depois, neste julho, liguei a moto e apontei sua proa para a Chapada Diamantina, passando por Pirapora, o que me trouxe mais 600 kms de estrada. Seu Manoel, aquela conversa, me fez sonhar o sonho de minha mãe. Voltar à região, passando por Montes Claros, a maior cidade do Norte de Minas, importante entroncamento rodoviário, que repete hoje nas estradas um pouco do papel que os vapores do rio São Francisco exerceram lá no antigamente, na época da Coluna Prestes, e do Lampião que também assustou os povoados da região.

Bandidos à espreita

Minha mãe não conseguiu, mas eu fui. Cheguei a Pirapora, um dia de viagem, e como sempre faço, encostei a moto e mergulhei na comunidade. Conversar e conversar. Andar, visitar e descobrir o que o rio São Francisco tem.

Acho que o rio está salvo para sempre, embora ainda sofra muito com práticas devastadoras. A babel da comunicação chega como se fossem ondas confusas de mensagens ao interior, mas o resultado final é bem educativo na questão ecológica.

Por exemplo, ouvi debate numa rádio local onde se defendia de maneira inteligente e politicamente correta a exploração racional do rio. A falação dos ecologistas de escritório acaba chegando lá.

Vi numa manhã de caminhada a ação de uma espécie de brigada de corpo de bombeiros que reprimia prática predatória numa curva do rio.

Aliás, descobri que as populações de antigamente eram sábias e sensíveis na escolha do local de fixação e fundação das cidades. Imaginei os primeiros moradores de Pirapora, sei lá quantos séculos atrás, decidindo que era ali que eles iam fincar sua morada. Viajei na imaginação e foi fácil descobrir por que. É o lugar mais bonito, com corredeiras e onde o rio faz a curva.

Esta brigada estava reprimindo uma covardia contra os peixes. Os peixes, claro, sempre nadam subindo o rio. Ao subir o rio o peixe encontra obstáculos naturais e artificiais. Os naturais são as corredeiras. Os artificiais são as barragens.

Por este motivo é proibido pescar logo abaixo dos obstáculos e com razão. Nos remansos, antes de tentar subir, o peixe descansa para enfrentar a pauleira a seguir, se alimenta, recupera energia da caminhada anterior. Está cansado e vulnerável. O pescador mau caráter sabe disto e, ataca. A brigada tava dando um sufoco neles. Foi emocionante ver a ação dos mocinhos.

Os bandidos atacam também na curva do rio. Ali por onde o peixe vai buscar caminho para vencer os obstáculos. Também é covardia. Em Pirapora tudo isto pode ser visto e imaginado. Os pioneiros construíram a cidade em volta disto que contei acima.

Corredeiras e curvas lindas. Não sei se a juventude local vê o que os meus olhos curiosos viram. Vi muito barzinho e muito namoro na beira do rio, mas acho que eles não percebem a luta do cotidiano daquela natureza, como não percebemos a maravilha da vida ao redor de nosso dia a dia.

O rio que já foi um país

Numa manhã de domingo umas aratacas pararam para descansar no teto da cobertura onde moro e, suspendendo uma leitura de um livro, fiquei de olho na gata que armava um bote para comer uma delas. Prometi que torceria o pescoço dela se fizesse isto, mas o final foi feliz. As aratacas descansaram e continuaram a viajar. E a gata, que gosta de mostrar, orgulhosa, as andorinhas que mata, antes de as comer, deixou de ser estátua predadora, sem piscar, prestes a atacar e voltou ao seu cotidiano de preguiça e ociosidade.

As aratacas me deram a idéia de colocar comida e uma fonte de água corrente para pássaros numa área protegida da gata. Diariamente olho com olhos compridos para a idéia e até hoje não vi qualquer pássaro fazer um pit stop por ali. Minha empregada, com pena desta tristeza, diz que preciso insistir e ter paciência que um dia eles descobrirão aquele pequeno oásis no alto do concreto e vão parar para descansar e se alimentar.

Tive de mobilizar os recursos de uma ex-mulher, convencê-la a me dar a fonte de água corrente que enfeitava sua sala, e com a ajuda de um eletricista montar a fontezinha na parede do meu pequeno jardim. Todo dia ao amanhecer a ligo, que está ao lado de um verdadeiro manjar de comida para pássaros num bonito aparador. Os vizinhos devem estar achando com razão que estou ficando louco.

Vi alguns aposentados comentando os episódios, em torno de suas bicicletas, na beira do rio São Francisco. A ação da brigada era mais animada para eles do que o noticiário da TV. Ou o programa da Ana Maria Braga.

Todos nós estudamos o São Francisco na infância e sabemos que é o rio da integração nacional e aquele babado todo. De boa… Mas é preciso ver para entender. Lá atrás nos tempos das peripécias da família mineira era só ele que fazia a integração do Norte e Nordeste com a região Sudeste e suas grandes cidades. Os cerca de 30 vapores que navegavam na região eram a salvação de vasta população ao trazer e levar café, algodão, açúcar, combustível, peças, novidades, por inúmeras cidadezinhas e cidadezonas do Brasil.

Minha mãe contava: “Viajávamos nos vapores, às vezes, entre amontoados de gente, bagagem, cargas, dormindo nas redes, como todo mundo, a não ser os mais ricos que iam nos poucos camarotes”. Ela não entendia aquilo como integração nacional, mas ela estava vivendo isto, estava tendo uma aula de geografia ao vivo e entendi tudo quando entrei no último navio-gaiola do rio São Francisco – o Benjamin Guimarães.

Surubim de espeto

Ele está em Pirapora. E ainda navega, faz passeios turísticos no fim de semana. Com a sua roda traseira empurrando as águas e o barco. Entrei nele, vazio, visitei os camarotes e imaginei sua época de glória. O camarote dos ricos é tão apertadinho. Um beliche e uma pia. O vapor é hoje tão pequeno para o nosso mundo, mas era imenso para o povo da época.

Aqueles que pensam que os vapores poderiam ser recuperados, esqueçam. Não é mais viável. Para se movimentar o Benjamim Guimarães precisa de uma equipe muito maior do que um super jato. E ele tem tão pouco espaço… É inviável economicamente. E é lento. Mas é querido e o pessoal que cuida dele o ama como merece. E vai ficar lá para sempre. A época da minha mãe passou.

Mas o rio São Francisco está vivo, como aprendi, nas conversas em suas barrancas modernas. E fiquei feliz de saber que tende a ficar cada vez melhor.

É hora de voltar para a estrada. Mas não pensem que esqueci o seu Manoel. Tentei encontrá-lo, mas não consegui. Tentei comer a comida de sua esposa, mas não consegui. O telefone existe e é de sua casa, mas meus contatos não foram bem recebidos. Não pelo seu Manoel que estava carregando fruta para abastecer as ceasas de Belo Horizonte e outras cidades da região.

Foi o que falaram. Insisti muito e aceitaram fazer um almoço naquele telefone. Peguei um táxi, dei o endereço, e falei que era uma pensão. O taxista disse que não sabia de uma pensão ali. Achei estranho como achei o mau humor das pessoas que atenderam ao telefone de seu Manoel. Chegamos lá e o motorista de táxi me disse: “Hum… aqui é o lugar de onde saem os ônibus clandestinos para Belo Horizonte”.

Não fiz comentário, paguei a corrida, era uma rua de casas muito pobres na beira do rio. E fingi que fui bater na porta do sobrado imundo, mas na verdade dei meia volta quando o táxi desapareceu e voltei caminhando. Na vinda havia visto um barzinho com umas cadeiras vermelhas e achei que aquele seria um bom lugar para tomar uma cerveja geladinha.

Fiz isto e me dei bem. Das cadeiras vermelhas, debaixo de uma mangueira em flor, podia avistar a vida em torno do rio. E me deliciei com a imagem das lavadeiras batendo a roupa nas pedras, enquanto um marmanjo preguiçoso não fazia nada, mas ficava por ali coçando o saco. Como se fosse possível ter um cafetão de lavadeiras. Na minha lombeira imaginei que talvez até fosse.

Na verdade só tinha nisto para pensar e no surubim no espeto que havia comido na noite anterior. Uma maravilha da gastronomia popular. Anotem aí – surubim em pedaços no espeto. Mas quero voltar lá para comer, também, o dourado, que só fazem inteiro.

Clique aqui para ler a segunda parte do texto sobre essa viagem.

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