Desde que o mundo é mundo, a relação da espécie humana com a natureza sempre foi marcada pelo conflito. Desde o princípio, o Homem tem tratado as outras espécies como adversários a serem, temidos, domados e, em muitos casos, destruídos. O temor que atualmente se reserva aos maremotos, furacões e ao aquecimento global é equivalente ao que se tinha em relação à floresta, ao oceano, à escuridão e aos animais.
Milênios vividos sob o domínio dessa relação marcaram na cultura ocidental e deixaram traços fortes em quase todos os idioma de raízes europeias. Na língua portuguesa, em pleno século XXI, ainda contamos aos nossos filhos que o caçador heróico vem salvar chapeuzinho vermelho da boca faminta do lobo MAU. Por outro lado, se não achamos mais o mar tenebroso, ainda dizemos que um problema de difícil solução “é um mato sem cachorro” e que um sujeito mal educado “é um selvagem”; assim como uma situação complicada pode ser traduzida por expressões como “o bicho está pegando”; e roubar, na gíria, é “dar o bote”.
O desenvolvimento da espécie humana e sua supremacia sobre as demais foi se dando na medida em que o homem aprendeu a controlar a Natureza, utilizando-a para seus próprios objetivos. Nesse contexto, o domínio da técnica de fazer fogo, a domesticação dos primeiros animais e a agricultura foram etapas decisivas na relação do Homem com o Meio Ambiente.
Relação que passou crescentemente a se pautar pelo controle do espaço necessário às necessidades vitais de um determinado grupo. O tamanho do espaço na razão direta do tamanho do grupo. Tal controle dava-se, via de regra, pela relação predatória do Homem em relação à natureza que o cercava, pelo desmatamento para dar lugar à agricultura e ao pastoreio ou pela caça, pesca e coleta de frutos e vegetais. Com freqüência todas as atividades simultaneamente.
Assim, parece ter evoluído a Humanidade, tanto na Europa, Ásia e África quanto nas Américas. Inicialmente, contudo, essa relação conflituosa e predatória não afetava demasiado a Natureza, já que os homens eram poucos, não viviam até idades muito longevas e eram desprovidos de tecnologia avançada. Para usar a terminologia ambiental moderna, embora fosse nociva ao meio ambiente, a população humana estava dentro dos limites da capacidade de suporte do Planeta.
À medida em que novas ferramentas e inventos foram sendo criados e os homens foram se multiplicando, a degradação passou a ter novos contornos. Madeira começou a ser derrubada para a construção de casas e muralhas, montanhas foram cavoucadas para a extração de minerais. Quanto mais cresciam as populações, sobretudo na Europa, mais era necessário tomar espaço à Natureza para aumentar o rebanho e incrementar a agricultura. Um efeito colateral importante nesse momento foi o expressivo aumento da caça aos grandes predadores, agora menos pelo perigo que representavam para o homem do que pelo estrago que faziam ao rebanho, abatendo mais cabeças do que seria aceitável para o fazendeiro. Talvez residam nas antigas espécies carnívoras do topo da cadeia alimentar no velho continente, como o leão europeu, as primeiras extinções de espécies animais causadas pela ação consciente do Homem.
Essa relação crescentemente predatória, entretanto, ainda era de certa forma sustentável. Sua face mais impactante ao meio ambiente afetava, sobretudo, a Europa. Mesmo lá, devido ao relativo atraso tecnológico, provocava estragos que em grande parte a própria Natureza era capaz de absorver. Até que três acontecimentos históricos se juntaram para acelerar e disseminar a predação dos recursos naturais pela espécie humana, levando o Planeta a viver, quinhentos anos mais tarde, uma situação preocupante do ponto de vista da sua própria sustentabilidade. Foram eles os avanços na navegação, que permitiram aos povos europeus chegar a todos os cantos do mundo, a Revolução Industrial que modificaria radicalmente os padrões de produção e de organização social dos povos, e a descoberta de novos remédios pela medicina, que derrubaram as taxas de mortalidade, aumentaram a longevidade dos Homens e garantiram o crescimento exponencial da população mundial.
Assim, ao tempo em que os europeus chegavam às Américas e encontravam o caminho marítimo para as Índias, os inventos da Revolução Industrial permitiam a produção em série de diversos bens em máquinas que demandavam crescentes quantidades de matéria prima para uma população em crescimento vertiginoso. Tais fatos combinados com uma cultura arraigada que entende a natureza como um inimigo foram responsáveis pelo descalabro ambiental que vivemos hoje.
E o que fazer para estancar esse descalabro? O primeiro passo é identificar o problema. O segundo é pensar soluções e incorporá-las ao arcabouço legal. Ambos estão a caminho. O advento, já mais que centenário, dos parques nacionais, e a legislação que protege a natureza, hoje bastante sólida no Brasil e no mundo, são prova disso.
A verdade é, contudo, que uma forma de pensar engendrada ao longo de milhares de anos e introjetada no consciente coletivo não se muda somente com medidas emanadas do Governo. Mudança real só vai acontecer quando o grosso da sociedade entender de verdade, e não apenas da boca para fora, que é necessário conservar o meio ambiente. Essa percepção passa pelo racional mas também precisa ter uma componente emocional.
Este é o raciocínio que está por trás da Educação Ambiental nas escolas e no princípio do uso público das áreas protegidas, cujo mantra é “conhecer para conservar”. Ao que tudo indica, contudo, essas duas vertentes da “catequese conservacionista” têm proporcionado resultados lentos e insuficientes para estancar o desmatamento e a extinção progressiva de espécies, para citar somente dois problemas que afligem a natureza.
Agora, entretanto, vejo luz no fim da tela. Os meios de comunicação de massa parece terem finalmente se aliado à causa, sobretudo a indústria do audio-visual. Seja a Rede Globo, no plano doméstico, com seus Globo Ecologia e suas mensagens embutidas nos programas do dia a dia, como a novela Araguaia, seja Hollywood na escala Global. Filmes como Avatar e, mais recentemente Rio, do diretor brasileiro Carlos Saldanha, trazem uma mensagem inequívoca a esse respeito.
São superficiais? São maniqueístas? Com certeza sim. Rio, que tive o prazer de assistir ontem, vai ainda além. Dá um show de imprecisões. Aumenta em muito a área verde da Cidade Maravilhosa e transforma a Floresta da Tijuca em habitat para muitas espécies que lá não vivem. Por outro lado, mostra um lado lúdico da metrópole mais bela das Américas, pintando com tintas alegres e otimistas a Pedra da Gávea, a Pedra Bonita, o Solar da Imperatriz, a Vista Chinesa e o Corcovado. Também, consciente ou não, presta uma homenagem ao trabalho do Professor Adelmar Coimbra Filho, pois dá protagonismo a uma família de tucanos, extintos na Guanabara e ali reintroduzidos por ele.
O filme pouco explica as mazelas ambientais que vivemos. Menos ainda aponta soluções realistas para elas. Mas, de uma maneira leve e bem humorada, toca no coração das crianças (de todas as idades) do mundo inteiro, ajudando a criar uma nova percepção cultural no que toca ao meio ambiente. Nesse sentido, trata-se de educação ambiental e da boa. Abre a cabeça dos miúdos (e de muitos adultos) e os predispõem a uma nova visão da natureza em que esta não é mais a inimiga da espécie humana. Só em um ambiente cultural assim, medidas conservacionistas podem vicejar.
A se manter esse novo alinhamento da indústria audiovisual, creio não ser demasiado otimista prever que, no espaço de uma geração, quem trabalha na área ambiental vai colher os frutos dessas sementes que começam a ser plantadas hoje.
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