Análises

Na trilha do Irmão Maior, maravilha aberta pela pacificação

Cidade partida, o Rio de Janeiro começa a colar seus retalhos. Retomada da favela do Vidigal abriu novas trilhas e desafios sociais.

Pedro da Cunha e Menezes ·
5 de janeiro de 2012 · 13 anos atrás
Grandiosa vista do arquipélago das Cagarras a partir do topo do Irmão Maior. Foto: Pedro Menezes. | Clique para ampliar
Grandiosa vista do arquipélago das Cagarras a partir do topo do Irmão Maior. Foto: Pedro Menezes. | Clique para ampliar
Em 1998, eu era assessor especial de Meio Ambiente da Prefeitura do Rio. Fui designado para acompanhar um diretor do Banco Mundial em visita a encostas em que o projeto “Mutirão Reflorestamento” estava sendo implementando. Foi meu primeiro contato com o poder paralelo. Para chegar aos locais onde as turmas trabalhavam, tínhamos que passar por dentro de favelas como a da Formiga e o Turano. Foi necessário obter permissão do tráfico.

 

Senti-me envergonhado. Eu, um agente do Governo, escoltado por um moleque descalço armado de metralhadora, isso há menos de 1 km do quartel do 6º Batalhão de Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Fora isso, a visita saiu bem. O convidado oficial declarou-se impressionado com o “Mutirão Reflorestamento”. A iniciativa, além de pioneira, é muito bem sucedida. Fato é, contudo, que durante o almoço que seguiu a visita, o assunto não rondou o plantio de mudas, mas deteve-se em armamentos, munições e volência.

Em 1999, assumi a direção do Parque Nacional da Floresta da Tijuca. Na época o Parque implementou um ambicioso projeto para erradicar os acampamentos de caçadores que grassavam no seu interior. Em dois anos foram desativados mais de 70 pontos de caça. O trabalho não poderia ter sido feito sem a cooperação do Batalhão Florestal da PM cuja ajuda, apesar de prestimosa, exigiu muito planejamento.

A maioria dos acampamentos estava nas bordas das favelas. Como o apoio da PM resumia-se a uma guarnição de três a cinco homens, era impensável desmontar as estruturas levantadas para a caça e descer direto para o asfalto, pois teríamos que atravessar “território inimigo”. Assim, antes de qualquer operação, era sempre imperativo definir uma rota de escape – sempre longuíssima – que evitasse a passagem por essas áreas cujo controle fugia às autoridades legalmente constituídas.

Vista de São Conrado e Gávea, com a Pedra da Gávea ao fundo. Foto: Pedro Menezes.
Vista de São Conrado e Gávea, com a Pedra da Gávea ao fundo. Foto: Pedro Menezes.
Até mesmo a fiscalização desarmada do Parque era muito difícil quando não impossível. Certa feita, uma equipe mista do IBAMA e de agentes ambientais da Guarda Municipal foi verificar uma denúncia de desmatamento próximo à favela do Cerro Corá. Voltou sem ter cumprido a missão. Foi rendida e submetida a toda sorte de humilhações sob a mira de pistolas e fuzis. Ao me relatar o fato, o líder da patrulha chorava copiosamente: “nunca fui tão humilhado em minha vida”. Mesmo hoje, mais de dez anos após o ocorrido não encontro palavras para traduzir o horrível sentimento de impotência que se apoderou de mim naquela hora.

 

De outra feita, acompanhei um tenente bombeiro e sua tropa em um combate a incêndio na encosta do Morro do Elefante. Começamos a debelar labaredas ao meio dia. Só extinguimos o último foco muito além das duas da manhã. Naquela altura era impossível sermos resgatados por helicóptero. O caminho de volta ao Parque por dentro da mata demoraria mais de três horas. Descer por uma das favelas do Andaraí seria o óbvio, pois nos tomaria apenas cerca de uma hora. Prevaleceu a cautela. Ninguém queria ser confundido com a PM na calada da noite. Caminhamos cerca de duas horas e meia por uma trilha alternativa que nos deixou na estrada Grajau-Jacarepaguá.

Tem mais: certa vez uma das viaturas do Parque saiu para atividades de fiscalização. Voltou antes do esperado. Os quatro fiscais brancos como cera. O carro tinha sido alvejado por uma bala. O projétil furara a lataria do veículo logo atrás do motorista, atravessara seu banco e perfurara a porta traseira do carona, indo perder-se no asfalto. Felizmente ninguém se ferira, só a autoridade constituída e o amor próprio dos Agentes do Estado.

 

Depois que deixei o Parque, me mudei do Brasil. Mesmo assim, vou ao Rio com muita frequência. Sempre subo um pico diferente. Ao longo do meu quase meio século de vida, até a virada de 2011 para 2012, subi todos os cumes do Município acima de 100 metros de altitude acessiveis por trilhas, exceto dois cujos caminhos passam necessariamente dentro de favelas.

Em 30 de dezembro de 2011, contudo, Thiago Haussig, funcionário do Parque Nacional da Floresta da Tijuca convidou-me para topar uma das figurinhas que me faltavam para completar o album, o Irmão Maior, bem em cima do Leblon e com vistas extraordinárias de toda a Zona Sul da cidade. Só havia um pequenino problema: a trilha começa bem dentro da favela do Vidigal.

Lagoa Rodrigo de Freitas e Ipanema se destacam no relevo variado e sinuoso do Rio. Foto: Pedro Menezes.
Lagoa Rodrigo de Freitas e Ipanema se destacam no relevo variado e sinuoso do Rio. Foto: Pedro Menezes.
Thiago assegurou-me que a realidade era outra e que a subida seria tranquila. Mencionou a política de pacificação das favelas levada a cabo pelo Delegado Beltrame e elogiou seus resultados. Aceitei sua palavra, que alías estava bem calcada em fatos. Logo de cara, na entrada da Comunidade havia duas viaturas do Batalhão de Choque. Ali, depois de esperar em uma bem organizada fila, tomamos cada um seu moto-táxi que, depois de cruzarem com mais um camburão, nos deixaram no bico da picada. A partir daí foi uma hora e pouco de pé no chão em uma bela trilha que segue sempre sobre o dorso do morro, nessa parte ainda coberto de viçosa Mata Atlântica. No caminho, passamos por uma dupla de PMs que descia do cume. Assustei-me com a metralhadora. Não era para tanto. O sargento que a carregava abriu um sorriso e nos desejou uma feliz entrada em 2012.

 

No cume, a 533 metros de altitude, apesar do dia nublado abriram-se esplêndidas vistas da Lagoa, da Pedra da Gávea e das Ilhas Cagarras. Um espetáculo difícil de traduzir em palavras. Enquanto o assistíamos boquiabertos, chegaram dois grupos distintos de turistas estrangeiros que se juntaram a nós na atitude de deslumbramento. Depois ainda apareceu mais uma turma, dessa vez de jovens moradoras do Vidigal. Não gostaram da companhia. Uma delas nos olhou contrafeita e praguejou: “na época do tráfico isso aqui era mais privé”.

Pois é, mesmo em uma cidade plural e democrática, nem tudo é perfeito para todo mundo. No que me toca, prefiro assim…

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Comunidade da Rocinha, na Gávea. Foto: Pedro Menezes
Comunidade da Rocinha, na Gávea. Foto: Pedro Menezes
Pequenas nuvens sobem pela encosta. Foto: Pedro Menezes
Pequenas nuvens sobem pela encosta. Foto: Pedro Menezes

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