“Na Capitania de São Vicente, sendo já alta noite a horas em que todos começavam de se entregar ao sono, acertou de sair fora de casa uma Índia escrava do capitão; a qual lançando os olhos a uma várzea que está pegada com o mar, e com a povoação da mesma Capitania, viu andar nela um monstro, movendo-se de uma parte para outra com passos e meneios desusados, e dando alguns urros de quando em quando tão feios, que como pasmada e quase fora de si se veio ao filho do mesmo capitão, cujo nome era Baltazar Ferreira, e lhe deu conta do que vira, parecendo-lhe que era alguma visão diabólica… andava ali uma coisa tão feia, que não podia ser senão o demônio.
Então se levantou ele muito depressa e lançou mão a uma espada que tinha junto de si… e pondo os olhos naquela parte que ela lhe assinalou viu confusamente o vulto do monstro ao longo da praia, sem poder divisar o que era, por causa da noite lho impedir, e o monstro também ser coisa não vista e fora do parecer de todos os outros animais.
E chegando-se um pouco mais a ele, para que melhor se pudesse ajudar da vista, foi sentido do mesmo monstro: o qual em levantando a cabeça, tanto que viu começou de caminhar para o mar donde viera. Nisto conheceu o mancebo que era aquilo coisa do mar e antes que nele semetesse (sic), acudiu com muita presteza a tomar-lhe a dianteira, e vendo o monstro que ele lhe embargava o caminho, levantou-se direito para cima como um homem ficando sobre as barbatanas do rabo, e estando assim a par com ele, deu-lhe uma estocada pela barriga, e dando-lhe no mesmo instante se desviou para uma parte com tanta velocidade, que não pode o monstro levá-lo debaixo de si… o grande torno de sangue que saiu da ferida lhe deu no rosto com tanta força que quase ficou sem nenhuma vista: e tanto que o monstro se lançou em terra deixa o caminho que levava e assim ferido urrando com a boca aberta sem nenhum medo, remetou a ele, e indo para o tragar a unhas, e a dentes, deu-lhe na cabeça uma cutilada mui grande, com a qual ficou já mui débil, e deixando sua vã porfia tornou então a caminhar outra vez para o mar.
Neste tempo acudiram alguns escravos aos gritos da Índia… e chegando a ele, o tomaram todos já quase morto e dali o levaram à povoação onde esteve o dia seguinte à vista de toda a gente da terra.
Era quinze palmos de comprido e semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha umas sedas muito grandes como bigodes… Os índios da terra lhe chamam na sua língua Hipupiara, que quer dizer demônio d’água”.
Essa é a versão curta da estória onde Pero de Magalhães Gandavo descreve como um monstro marinho conhecido por Ipupiara foi morto por um fidalgo português no litoral de São Paulo em 1564. Uma ilustração acompanha o relato, parte de seu livro História da Província de Santa Cruz, publicado em 1576, e é reproduzida aqui.
Fascínio
“Monstros são uma das partes mais divertidas dos relatos de exploradores, já que muitos não tinham a menor ideia do que estavam vendo e os supersticiosos tendiam a considerar bichos desconhecidos como coisa do demônio.”
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Monstros são uma das partes mais divertidas dos relatos de exploradores, já que muitos não tinham a menor ideia do que estavam vendo e os supersticiosos tendiam a considerar bichos desconhecidos como coisa do demônio. Esses relatos também animam os criptozoólogos que, caminhando no fio da navalha entre excentricidade e ciência (com muitos descambando sem pudor para a primeira) buscam espécies de animais, de preferência grandes e/ou bizarras, ainda não descritas cientificamente. É aquele pessoal que procura o Pé Grande, o Ogopogo, o Político Honesto e o Monstro de LochNess, para mencionar criptídeos com minúscula probabilidade de existirem de verdade, e exemplares vivos do OrangPendek e do Tilacino, esses um pouco menos improváveis.
O Ipupiara é um monstro razoavelmente fácil de identificar. Até os dias de hoje, lobos marinhos Arctocephalustropicalis e A. australis e, mais raramente, leões-marinhos Otariaflavescens chegam ao litoral de São Paulo durante o inverno, às vezes mais de uma dezena no mesmo ano. Um leão-marinho macho pode ultrapassar 2,7 m de comprimento e 300 kg e você não gostaria de ficar entre um bicho destes e o mar, mesmo com uma espada.
O Ipupiara era, muito provavelmente, um turista uruguaio ou argentino que se tornou vítima da violência local ao visitar uma praia brasileira.
Outro bicho aquático tem identidade mais complicada. O Negro D’água ou Nego D’água ou Caboclo D’Água é mais famoso no rio São Francisco − onde há uma estátua na cidade de Juazeiro −, mas há histórias dele nos rios Tocantins, Paranaíba e Grande. É uma figura humanóide, preto ou pardo, careca e com mãos e pés de pato, às vezes descrito com um único olho na testa. Em algumas histórias se manifesta com gargalhadas e assombra pescadores e derruba a canoa se eles se lhe recusarem dar um peixe.
Maria Izabel Muniz Figueiredo, no livro “Lendas e Mitos do Rio São Francisco” diz que “o Nego D’água mora no Rio São Francisco (…) entre Juazeiro a Pirapora, e muitos dizem que é um negro com pés de nadadeiras. E para alguns ele é meio homem e meio lontra. É conhecido também como o compadre das águas. O Nego D’água vive nas águas e tem seu reino no fundo do rio, e para muitos ribeirinhos ele é um neguinho bonito, apaixonado por moças de coxas grossas e bonitas. Se ele as encontra desprevenidas, arrasta-as para o seu reino no fundo do rio; quanto aos homens, se não ouvem seus apelos, não lhe oferecerem fumo, cachimbo e cigarros, ele os levará para os seus domínios para torná-los escravos”.
Imaginação
“Tirando o lado erótico da lenda, similar à do boto amazônico, um bom candidato para a origem desta lenda é a ariranha Pteronoura brasiliensis, que já existiu no São Francisco e toda a bacia do rio Paraná.”
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Há quem viaje MUITO na história (veja aqui, aqui e aqui), cortesia de nossa programação inata para identificar padrões mesmo onde estes não existem e de contar histórias.
Mas da mesma forma que Godzilla, os Grifos e o Kraken foram inspirados por bichos reais, será que o Negro D’Água é uma leitura, digamos, criativa de um bicho real?
Tirando o lado erótico da lenda, similar à do boto amazônico, um bom candidato para a origem desta lenda é a ariranha Pteronoura brasiliensis, que já existiu no São Francisco e toda a bacia do rio Paraná. É um bicho grande, escuro e que não parece obviamente peludo. Seus gritos quase gargalhantes impressionam e pode ser curiosa e ousada quando encontra pescadores. Não é preciso muita imaginação para ver como uma ariranha pode virar um humanoide aquático.
Especialmente quando a espécie já chegou no bico do corvo da quase extinção ou já foi desta para melhor. Quando uma espécie se extingue e as pessoas deixam de ter contato com a mesma, o princípio do quem conta um conto aumenta um ponto passa a valer e um bicho que era perfeitamente normal adquire características mágicas conforme histórias são passadas de geração para geração.
Outra criatura que foi reportada para o rio São Francisco é o Jaguaruçu. Ele é descrito por Gabriel Soares de Souza no seu livro Tratado Descritivo do Brasil, em 1587. Self-made man, senhor de engenho e explorador, Souza viveu na Bahia e percorreu o São Francisco no final do século XVI (onde encontrou ariranhas) deixando uma detalhada descrição da terra, sua gente e fauna.
Segundo ele “criam-se no rio São Francisco animais do tamanho de potros os quais os índios chamam jaguaruçu que são pintadas de ruivo e preto e malhas grandes; e têm quatro presas dos dentes do tamanho de um palmo: criam-se na água d’este rio, no sertão, donde saem à terra para caçar antas. Juntam-se três e quatro destes animais para levarem nos dentes a anta ao rio, onde a comem à vontade, e a outros animais e os índios que podem apanhar“ [atualizei um pouco a linguagem].
Souza considera o jaguaruçu (“onça grande” em tupi) um animal distinto do jaguaretê, a onça-pintada que matava as vacas dos colonos portugueses, e do jaguaracanguçu. Este seria uma onça-pintada “grande como um novilho” que viveria no sertão, longe do mar.
O termo canguçu é usado ainda hoje para se referir a onças-pintadas de grande porte. Com a massa média dos machos adultos indo de 60 kg a 100 kg conforme o habitat e disponibilidade de presas, além de muita variação no padrão das malhas, não é estranho que até hoje alguns acreditem haver mais de uma espécie de pintada (na verdade todas as onças-pintadas ao sul do rio Amazonas pertencem à mesma unidade evolutiva.
Existiu ou não existiu?
Mas… uma onça aquática grande, com dentes enormes (de sabre?) e que caça em grupos? O que pode ter dado origem a essa história?
” Pessoas mentem (e muito), enxergam o que não existe e não enxergam o que existe. Sem provas documentais, uma estória é uma estória.”
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Existiu em tempos coloniais algum grande felino, ainda desconhecido da ciência, que desapareceu de lá para cá? Só temos o relato de Souza e a ausência de restos subfósseis para nos orientar e isso não permite conclusão alguma. Pessoas mentem (e muito), enxergam o que não existe e não enxergam o que existe. Sem provas documentais, uma estória é uma estória.
Mas é tentador especular. A Coroa portuguesa tinha pouco interesse pelo estudo da fauna e flora do Brasil-colônia. Relatos como o de Souza, Amerigo Vespucci, Fernão Cardim, Padre Anchieta e poucos outros à parte, o estudo de nossa biodiversidade, assim como o urbanismo e o saneamento urbano, foi realmente inaugurado pelos naturalistas de Mauricio de Nassau no Brasil Holandês do século XVII. Que não durou, assim como a atenção ao urbanismo e ao saneamento, que até hoje não avançaram grande coisa.
Foi só no final do século XVIII que uma verdadeira expedição foi organizada pela Coroa. A Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, entre 1783 e 1792, que percorreu boa parte da Amazônia. A Coroa estava tão interessada no assunto que o capitão do navio que levou o material coletado para Lisboa pagou o frete com o dinheiro do dote de casamento da filha (Ferreira casou-se com a moça, segundo consta, para evitar constrangimentos) e, uma vez no museu, ficou ali esquecido. Até mesmo por Ferreira, que se dedicou a ser um bem sucedido funcionário público. Felizmente, Napoleão invadiu Portugal e o material do museu de Lisboa foi levado para Paris e finalmente estudado.
A biodiversidade brasileira só começou a ser estudada, para valer, com a chegada de naturalistas europeus na primeira metade do século XIX, quando nomes como Spix, Martius, Natterer, Saint-Hillaire, Wied-Neuwied, Wallace, Bates e Darwin passaram por aqui.
Houve uma idade das trevas entre a colonização europeia e a chegada dos cientistas durante a qual extinções, mesmo de bichos grandes e chamativos, podem ter acontecido sem serem registradas. Será que algum dia saberemos?
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