Em face do crescente empobrecimento da diversidade biológica planetária em uma escala catastrófica, decorrente das atividades humanas, ninguém questiona seriamente que uma das principais estratégias para mitigar este quadro seja o estabelecimento de Unidades de Conservação (UC), que no Brasil estão distribuídas em 12 categorias divididas em dois grandes grupos, as de proteção integral e as de uso sustentável. Levando em consideração apenas o quesito preservação da biodiversidade, as UCs de proteção integral de domínio público, como os parques, as reservas biológicas e as estações ecológicas (ou os monumentos naturais e refúgios de vida silvestre quando instituídos em terras públicas), podem ser consideradas como as mais eficientes, pois elas não partilham este objetivo com o uso direto dos recursos naturais, como as UCs de uso sustentável.
A criação de tais áreas é sempre difícil, pois frustra planos para o seu aproveitamento direto pelos mais variados agentes privados e públicos. Mas, vencida esta fase crucial, é necessário então “tirá-las do papel”, ou seja, pagar indenizações por desapropriações; construir estruturas administrativas e de uso público; contratar servidores e terceirizados; elaborar e implantar programas de manejo, proteção, conservação e educação ambiental; adquirir veículos, equipamentos e utensílios; e pagar despesas correntes como luz, telefonia, internet e combustível.
Tudo isto custa dinheiro, muito dinheiro, e seria ingenuidade acreditar que os governos farão destaques orçamentários suficientes para cobri-las integralmente, ou que liberarão o correspondente financeiro destinado a esta rubrica. “Afinal”, diz o governante típico, “com os hospitais à míngua, salas de aula precisando ser construídas, crianças andrajosas vagando pelas ruas e os índices de criminalidade urbana em alta, como destinar recursos públicos para salvar da extinção uma bromélia ou um sapo?”
Devemos continuar a pressionar para que os governos assumam o seu dever, mas devemos ao mesmo tempo buscar uma independência financeira tão grande quanto possível dos orçamentos públicos para o SNUC, blindando-o ao máximo contra as vicissitudes da política e da economia. Há diversas possíveis fontes de financiamento, mas vamos nos deter aqui em uma que tem estado bastante em evidência nos últimos tempos, apresentada por alguns como a panaceia para o problema crônico da falta de recursos públicos para os parques e reservas, e vista por outros como mais um exemplo da observação feita pelo historiador Warren Dean em A Ferro e Fogo, sua magistral obra sobre o processo da destruição da mata atlântica brasileira: “A troca do patrimônio estatal pelo ganho de curto prazo dos interesses privados é uma tema constantemente repetido na história brasileira, tão habilidosa e diversificadamente adotada e tão inerente que se mostrava como a razão mesma da existência do Estado“.
Refiro-me às concessões de serviços, em todas as suas formas, deixando claro que o presente artigo não tem a pretensão de ser mais do que um livre pensar sobre o tema, em parte baseado na minha experiência de pouco mais de nove anos à frente das Unidades de Conservação estaduais do Rio de Janeiro.
O que precisa ser pago
Antes de mais nada, precisamos dividir as despesas relacionadas às Unidades de Conservação, grosso modo, em despesas de implantação (investimento) e despesas de manutenção (custeio).
Para investimentos, a compensação ambiental tem proporcionado recursos significativos, capazes de financiar um programa paulatino e responsável de atendimento destas necessidades. Outras fontes de recursos podem complementá-la, como projetos nacionais e internacionais de grande envergadura de proteção às florestas tropicais. Portanto, com empenho, criatividade e obstinação, há espaço para grandes avanços neste sentido.
O problema crucial é como fazer isto tudo funcionar no dia a dia. Grandes programas de apoio às UCs nunca contemplam salários e custeio, o que é irreal. O argumento é sempre que isto compete ao governo que instituiu a UC, o que, em tese, está correto. Mas e se o governo não cumprir a sua parte? Portanto, considero, em princípio, que o grande desafio de um programa de concessão de serviços em Unidades de Conservação é garantir o funcionamento diário delas, com a agilidade e eficiência possíveis, indefinidamente.
Dos princípios
Já vimos para que a receita proveniente de concessões em parques e outras UCs deveria ser prioritariamente dirigida. Agora, o ponto crítico a ser pensado é o que deve ser concessionado à iniciativa privada, e aí o debate torna-se mais complexo. Para auxiliar o raciocínio nesse sentido, listo abaixo quatro princípios que devem, em minha opinião, ser observados por um programa de concessões em qualquer modalidade, visando ao justo equilíbrio entre os interesses públicos e privados, bem como entre interesses privados conflitantes.
I. Do livre acesso dos cidadãos aos atrativos naturais
A categoria “parque” tem seus objetivos básicos divididos entre a preservação da biodiversidade e dos ecossistemas e a visitação pública responsável. Essa finalidade dual dos parques é o que os torna tão atraentes e procurados pela população. Consequentemente, é também o que os converte no alvo prioritário quando se pensa em concessão de serviços em áreas naturais protegidas. Como não é atribuição inerente ao poder público gerenciar nenhuma destas atividades, decorre que tê-las planejadas, implantadas e operadas por agentes privados com tradição em cada segmento garante produtos e serviços de elevado padrão de qualidade aos usuários que desejem contratá-los e desonera o órgão gestor da UC desta obrigação, permitindo que concentre seus esforços nas atividades típicas de estado, indelegáveis.
Mas, vejam: falamos aqui em concessões de serviços, e não em concessões de áreas (ou de UC inteiras, para este fim). Para alguns, tal diferença pode parecer sutil; para outros, como veremos, ela é crucial, e pode arruinar a experiência da visitação, o que conspira contra a excelência pretendida ao menos para determinados segmentos de usuários.
Existe um grande número de motivações que podem levar uma pessoa a visitar um parque, e uma política de uso público só poderá ser considerada como bem-sucedida se levar este fato em consideração e estabelecer estratégias diferenciadas para atender às expectativas de todos os possíveis segmentos de usuários: moradores do entorno, esportistas de aventura, turistas de aventura, turistas convencionais, religiosos, artistas, estudantes. Turistas convencionais têm sua visitação quase que inteiramente atrelada à aquisição de pacotes, para otimizar o pouco tempo disponível e minimizar as incertezas associadas ao conhecimento de um novo atrativo. Esportistas de aventura, no outro extremo, desejam precisamente o oposto, ou seja, explorar os ambientes naturais em seus próprios termos, tão inalterados quanto possível e sem o concurso de terceiros para este fim.
A única forma de que os serviços em um parque qualquer contemplem todos os segmentos de visitantes sem ferir a liberdade individual ou mesmo descaracterizar o próprio sentido da visitação para alguns deles, é oferecê-los em caráter opcional, para livre contratação pelos interessados. Decorre que se a área é que for concedida, e não os serviços em uma área de livre acesso às pessoas (com ou sem pagamento de ingresso, que não se confunde com o preço por um bem ou serviço), este ideal estará irremediavelmente comprometido.
A concessão de áreas, em vez de os serviços disponibilizados nestas áreas, além disso, dá azo desnecessariamente aos temores daqueles combatem a privatização do patrimônio público em favor de particulares, sem que com isso se ganhe mais eficiência na prestação desses serviços (interesse do poder público concedente), ou se sacrifique significativamente a margem de lucro pretendida (interesse do concessionário). A grande maioria dos visitantes dos parques quer mesmo é contratar todos os serviços que puder durante sua estadia, e mesmo os esportistas de aventura mais hardcore querem ter onde fazer um lanche e celebrar com uma cervejinha o sucesso de sua aventura!
II. Da livre contratação dos serviços oferecidos
O pagamento de ingresso em um parque ampara-se no princípio jurídico do usuário-pagador, ou seja, que haja uma contrapartida pelo direito de uso de um recurso natural – neste caso, com vistas à preservação do próprio recurso visitado. É razoável, no entanto, que a cobrança de ingresso seja incluída no rol de receitas do concessionário, em troca da manutenção total ou parcial da unidade. Mas, consoante o princípio de que a contratação de serviços deva ser sempre opcional, o ingresso deve significar apenas o direito de acesso ao parque, sem nele estar embutido o custo de serviços que podem não ser desejados, pagando o visitante apenas pelo que efetivamente consumir.
As empresas privadas já demonstraram que possuem grande criatividade na concepção de produtos e serviços de grande apelo para os visitantes, portanto prescindem deste artifício tão antipático. Mais do que antipática, contudo, é a obrigatoriedade que foi instituída em alguns parques da contratação compulsória de condutores de visitantes, assunto já tratado em outro artigo e que, por isso, não será aprofundado aqui, embora se constitua em uma concessão disfarçada.
III. Da gestão pública das UC públicas
A Lei 9.985/00 prevê a possibilidade de gestão compartilhada de uma Unidade de Conservação com uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP), e há também atos de criação de parques que preveem a gestão compartilhada preferencial com as prefeituras dos municípios onde eles se situam. Uma empresa que tenha como contrapartida de sua concessão a manutenção total ou parcial da UC está, na prática, gerindo certos aspectos seus.
Mas a responsabilidade pela gestão de uma UC pública será sempre pública, uma vez que algumas atribuições são indelegáveis por serem atividades típicas de estado, como a repressão a delitos penais e a fiscalização de infrações às normas e regulamentos, que devem estar a cargo de guarda-parques. Portanto, se aspectos tão fundamentais não podem, ou não devem, estar sob a responsabilidade de um particular, então não há que se falar em privatização de gestão de unidades de conservação – ainda que certos aspectos possam sê-lo, mediante convênio ou contratação. Concessões de serviços em UCs visam precisamente atribuir à iniciativa privada a gestão daquilo em que ela pode de fato exceder o setor público.
As parcerias público-privadas (PPP) são uma modalidade de concessão que aprofunda esta relação. Embora possam ser, em tese, uma alternativa interessante sob certas circunstâncias, apresentam o sério inconveniente de, pela sua própria natureza, ensejarem prazos muito longos de concessão, dificultando uma renovação mais rápida caso o modelo se prove inadequado ou a parceria apresente problemas recorrentes. As PPPs são mais interessantes quando o poder público não pode ou não quer arcar com despesas mais pesadas de investimento, mas não poder raramente é o caso. Com efeito, a única experiência do gênero em curso no país envolvendo UC é a da Rota Lund, em Minas Gerais, mas esta PPP, em vez de atender a uma situação específica, parece mais integrar um programa amplo de utilização deste instrumento em diversos setores da administração daquele estado – portanto uma escolha talvez mais ideológica do que motivada por necessidade real.
IV. Da diversidade de fontes de financiamento
“Não se colocam todos os ovos no mesmo cesto“. A antiga sabedoria popular nos relembra que não é prudente depositarmos todas as nossas fichas em uma única aposta, e o financiamento das despesas correntes das Unidades de Conservação não é exceção. É de todo interessante, por segurança, que a receita proveniente de concessões não seja a única, mas, sim, componha uma cesta de fontes de financiamento com esta finalidade. Assim, numa crise, outras fontes podem garantir as suas necessidades mais básicas, suspendendo-se apenas o que não for absolutamente essencial.
Não se imagina que haja controvérsia quanto a este princípio, e possíveis candidatos a este provimento suplementar de recursos para custeio são os fundos fiduciários específicos; a cobrança por serviços ecossistêmicos (inclusive passivos ambientais continuados em UC, como oleodutos, linhas de transmissão, antenas de telefonia celular etc.); e convênios com prefeituras municipais.
Em resumo
As concessões de serviços em parques ainda estão engatinhando no Brasil. O ICMBio saiu na frente, mas o número pequeno de contratos de concessão hoje em vigor bem demonstra as dificuldades enfrentadas, pois há que se conciliar os interesses do órgão gestor da UC (qualidade dos serviços prestados aos visitantes, fluxo de recursos mais ou menos regular para o custeio da unidade, mínimo impacto ambiental decorrente da visitação etc.) com aqueles do operador privado (adequada margem de retorno do investimento, segurança jurídica, contratos que especifiquem o que não pode ser feito em vez do que pode, para estimular a criatividade etc.).
Com base na experiência já adquirida e no extraordinário potencial para visitação pública existente nas áreas protegidas brasileiras, e observadas as preocupações acima elencadas, vislumbra-se aí um campo fértil para negócios que elevem a geração de renda e empregos vinculados às nossas UC a novas ordens de grandeza. E, ao mesmo tempo, assegurem meios para a sua manutenção desvinculados das incertezas próprias dos orçamentos públicos, além de elevarem o nível de percepção de sua importância junto à opinião pública e, em consequência, arregimentarem mais defensores de sua própria existência.
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Excelente texto .. e viva nossas UCs !!