Um mar de campos até onde a vista alcança. Aqui e lá, uma árvore rompe a linha da vegetação baixa, timidamente se retorcendo para fora da terra, como quem não está certa do seu lugar no mundo. Não chove há 3 meses, e o verde da grama se mescla com amarelos de uma vegetação dourando ao sol. Ali, de repente, surge um veado assustado de trás de uma moita, saltando até sumir de vista. Um sabiá chama ao sol nascente, ao que se houve uma, duas, três respostas. A conversa denuncia os galhos de onde sai canto. Apertando os olhos se vê, pequeno, castanho-burro-quando-foge, com peito como se sujo de barro, o sabiazinho laranjeira (Turdus rufiventris) crescendo e murchando a cada psiu.
Aí surge outro som. Meio surdo, lá longe, mal se nota. Aos poucos cresce, e a cantoria da manhã é abafada pelo som crescente de motor. Som que treme, e junto treme a terra toda. Baque surdo de árvore morta levantando a terra vermelha do cerrado. Madeira boa, vai virar cerca. Os sabiás são assustados pra distante. Pássaros voando, árvores no chão. Os caminhões levam os troncos para longe, e o resto queima. Fogo lambe mato, lambe grama, lambe flor, erva, arbusto, toco de árvore que não arvoreia mais. Foge o tatu, uiva o lobo-guará. Lagartos se entocam debaixo da terra, com as formigas, sem suspeitar que daquele fogo não há como escapar. Não há chuva que molhe aquelas cinzas, não há raiz que rebrote e dê flor.
E as máquinas chegam. Varrem o solo de sementes, cobrem tudo de um verde intenso, brilhante. Não é verde de cerrado não senhor. É um verde só, que cobre o vermelho da terra, nem mais se percebe a terra. É terra pobre de cerrado, terra velha, lavada por milênios sem conta, mas nisso dá-se um jeito. Joga um pó aqui, um líquido lá, uns vapores vêm de avião. A terra pobre agora enche os celeiros de toneladas e toneladas de grão. Mas os celeiros não são destino, são só passagem. As fileiras sem fim de vagões do trem levam os grãos pra todos os cantos, para as fábricas, pros portos, pros navios, pros sete mares, pros porcos da China, pros bois da Europa. Pros bois do Cerrado.
Os olhos brilhantes da vaca, adorável ar estúpido de bicho preso, que dá filhote, que dá leite, que dá o corpo. Olhos vidrados no além. O céu azul do cerrado reflete nos olhos que não servem mais para ver. E não veem as outras vacas, a fila incontável de vacas, não veem a ração, não veem a fábrica de onde sai ração e entra soja. Não veem os cortes na bandeja de isopor no supermercado.
O menino, distraído com as cores nas prateleiras, responde com os ombros quando a mãe pergunta, passando os olhos pelo freezer do mercado: “quer carne ou frango pra janta hoje, filho?”. As batatas perdem as cascas, expondo a umidade escorregadia da sua carne pálida. Cebolas em rodelas. Bifes assando na frigideira. “Tá na mesa!”. O Cerrado tá na mesa.
Hoje, quase metade do Cerrado já foi convertido em agricultura e pasto. De toda a produção de soja do Brasil, mais de 63% vem do Cerrado. Essa soja é separada em óleo e resíduo. O óleo é em grande parte destinado à indústria alimentícia para o preparo de praticamente qualquer alimento industrializado, e pequena parte dele vira biodiesel. De todo resíduo, que compõe 79% da massa de soja produzida, 98% vira ração para alimentar animais, no Brasil e no mundo. O Brasil é o maior produtor de carne de boi do mundo, e o Cerrado concentra 55% dessa produção. Em nome das espécies que habitam o Cerrado, reduza seu consumo de carne.
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Perfeito! Precisamos de consciência, nosso Cerrado está morrendo! Nosso planeta está morrendo…tudo isso por um bife (animal, vida que merece respeito também) na mesa.
Pra vc poder pedir "consciência" teclando em seu laptop de ultima geração, muito bicho morreu também…na mineração pros componentes da máquina, na enchimento do reservatório da usina hidrelétrica pra gerar eletricidade na tomada da sua casa, na exploração de petróleo que virou diesel pro caminhão que fez o transporte do produto, e por aí vai. Não coloquem a culpa no coitado do bife…veganos/vegetarianos e demais "conscientes" também matam…só que de uma maneira um pouquinho menos óbvia!!!
Pô Absalão, tu veio aqui pra fingir que impacto ambiental é binário? Quer dizer que as opções são: (1) negar a vida carnal e começar a fazer fotossíntese; (2) já que algum impacto é inevitável, vou foder com a porra toda. É assim? Até da pra engolir um argumento desses vindo de um malacólogo qualquer, mas não de você, cara!
Repara que ela não sugeriu a ninguém virar vegano ou vegetariano, só sugeriu comer menos carne. Tá coçando a cabeça? Lê um paper:
https://www.nature.com/articles/nature13959
Ainda tá na dúvida? Lê dois:
https://www.nature.com/articles/s41598-017-06466-…
Agora lembra que o território brasileiro é ocupado por 38% de pastagens para pecuária, 10% por hidrelétricas, 6% agricultura, e menos de 1% por mineração. Acho que o teu bifinho tá saindo mais caro que a hidrelétrica e a mineradora que fez meu laptop.
E se cuida Absalão, se as predições do aquecimento global se confirmarem, a acidificação dos oceanos não vai deixar concha de molusco pra se estudar.
"Agora lembra que o território brasileiro é ocupado por 38% de pastagens para pecuária, 10% por hidrelétricas, 6% agricultura, e menos de 1% por mineração." Fonte: Arial. Todos esses números estão errados! Uma criança olhando o mapa do Brasil conseguiria ver que as hidrelétricas não ocupam 10% do território. A título de comparação, as UCs federais ocupam 10% do território. Olhe um mapa e compare com os reservatórios das hidrelétricas. Como todo ambientalista, é o rei do achismo.
Comparar porcentagens de área utilizada por atividades totalmente diferentes não passa de "raciossímio", comparando alhos com bugalhos. Fosse assim, as usinas nucleares seriam as "queridinhas" dos eco-chatos, pois ocupam uma área minúscula e produzem muito mais energia por metro quadrado que qualquer outra forma de geração. Pergunte aos eco-chatos também sobre a "pegada ecológica" de conglomerados urbanos comparado à áreas rurais, muito mais impacto (resíduos/efluentes/sugadouro de energia/alterações microclimáticas/impermeabilização do solo, etc) por metro quadrado. Já no caso das hidrelétricas, cujo impacto se reflete por toda a bacia, e não só pela área efetivamente atingida pela enchente do reservatório, analisar somente a área é subavaliar os impactos. Existem usos agropecuários compatíveis com a conservação (cabruca do cacau, pecuária pantaneira) e existem outras bem lesivas, como monoculturas, mas pela sua conta de % vai tudo no mesmo balaio. Enfim, esse negócio de comparar áreas é bisonho… "ciência de boteco"!
Em tempo, boa parte do cerrado é sacrificado por causa do "soybean for export", e não do boi que vira bife para lares brasileiros (essa encrenca é compartilhada por outros biomas). De qualquer maneira, concordo que, principalmente pela questão dos recursos hídricos, o cerrado deveria ser mais bem manejado pelo poder público. Ficar a mercê da fome dos chineses, ou qualquer outra dependência de commodity, é situação estratégica e economicamente vulnerável para o país.
Gostaria que o senhor incluísse algumas referências na resposta.
Al Gore, vc não é aquele político gringo que fez um filme cheio de "fake environmental news"?
Não conheço esse que usa o nome do Al Gore mas o filme que assisti desse cara é muitíssimo bom o planeta está morrendo vou certamente nao percebe isso porque você deve ter tudo de bom mas o planeta esta morrendo
Tá bom então…só UMA amostrinha pra vc não ficar muuuuito chocado: http://scienceandpublicpolicy.org/images/stories/…
Essa é a geração de biólogos nutella. Faz textão em formato de poesia.
Hein?! Poesia é cultura! Poesia é beleza! Talvez preferisse "sertanejo universitário" em forma de texto, rsrsrs.
Cultura meu caro, isso se adquire, basta ter inteligência para apreciar, você também é capaz.
E quanto a "biólogos nutella" isso se chama consciência. E você também é capaz, o primeiro já fez, lendo um texto lindo desse.
O melhor de tudo é a cidadã tentando adivinhar e errando tudo! O primeiro passo já dei e parei por aqui mesmo. Texto muito ruim.