Ontem estava eu, entre relatórios, sonhos e projetos, com a TV ligada para não me sentir só, enquanto as crianças e o meu amor estavam pela casa. Ela veio, sentou-se a minha frente e na TV falavam sobre Bruno e Dom. Eu tentava disfarçar a tristeza, quando percebi o ar ficar mais pesado e ela se levantou. Enquanto se encaminhava para sumir dos meus olhos, chamei-a. Ela parou, sem se virar, permanecendo de pé de forma lúgubre. Eu me aproximei e a abracei ternamente, como dita o momento. Sabia que chorava. Suas lágrimas caíam sobre meus braços e seu soluço contido foi então ouvido, formando eco nas minhas sensações de dor e de luto. Indaguei sobre o motivo daquela dor que parecia vir da alma e, acreditando saber a resposta (mas sem imaginar a sua profundidade), ela apenas balbuciou: “eu vi você”. E agora, mais de 24 horas depois, algo que já sentira e que ainda sinto, reverbera neste combalido peito. Podia ter sido eu, podia ter sido qualquer um de nós. Na verdade, é até mais do que isso. Não podia, foi. Fomos todos nós. E somos todos quando um de nós, na guerra em que nos encontramos, desaparece dos nossos olhos. Nossa crença na luta dá lugar a um sentimento de um vazio inconsolável, de um desespero sem fim, de que nada mais irá nos fazer aprumar. Nos sentimos sós.
Essa dor tem nome, ou melhor, nomes. Ainda que pareça estranho para alguns, a sensação que tenho sobre todos é de que perdemos irmãos. A referência fraterna não tem relação com a religiosidade que conhecemos, mas é mais profunda, relacionada à terra, à existência, ao respeito pelos seres que a habitam, sejam eles humanos ou não humanos. Nossa fraternidade se relaciona à beleza do caminho, às histórias vividas e contadas, ao canto que alimenta e aos risos que espantam a tristeza, ao movimento que eleva da inércia a Anima (do latim alma).
Quanto mais me aprofundo na tentativa de explicar, mais entendo que vai além da minha luta, é a nossa luta. Que de tantas cores, tantos desejos e outros tantos quereres, se faz um só ato, se faz um. O um da convergência, do forte eco além do tempo e do espaço que acreditamos que poderia nos dividir, mas não divide, nos une. Essa sensação de que estamos separados é apenas uma ilusão, a ilusão de uma visão em vertigo. Acredite, estamos juntos e permaneceremos juntos.
“Mas que tudo isso se torne força. Viveremos o luto, vivemos o luto. Cada um viverá ao seu modo, de acordo com os seus, juntos ou só”.
Poderia dissertar aqui de tantos outros sentimentos despertos, da cólera que percorre nosso ser, da revolta que nos envolve quando vemos que a luta de irmãos pela justiça nem sequer é enaltecida, a insubmissão contra a extinção do caminho, contra o calar das histórias. Mas que tudo isso se torne força. Viveremos o luto, vivemos o luto. Cada um viverá ao seu modo, de acordo com os seus, juntos ou só.
Vou abrir um parêntese para falar do luto que vivencio. Estes dias lembrei que meu primeiro contato com algo que vai além do que se vê, pelos caminhos da Amazônia, deu-se em algum ponto entre o morrer e o despertar. Aprendi, com os povos da floresta, a acender em silêncio o tabaco e rezar de um modo bem particular. Eu, que nunca fui de rezar, aprendi a falar com o invisível. Dias atrás, o fiz mais uma vez, só, sob o límpido céu das terras altas das Gerais. Eu, meu luto e minha oração em fumaça. Foi a maneira que encontrei, para honrar tantas histórias que sentimos.
O que fazer desse ponto em diante? Muitos clamam, outros tantos, enlutados, precisam de tempo, e outros se levantam. Escuto em meus pensamentos os cantos, dois cantos. Um reflete parte do que sou, parte do que sinto nos sertões, o canto que na voz de Vandré nos diz que ainda há tanto pra se fazer e um tanto pra se salvar, “você que não entendeu, não perde por esperar”. É força. Porém mais que força e de uma beleza profunda, ouço outro canto, cantado em encantamento, pela alma dos povos originários Kanamari, o canto Wahanararai.
O canto nos fortalece, não impede as lágrimas, mas as significam. Ecoa além dos meandros em que podia ser ouvida. Vai além, desce pelo Javari e se mistura ao Solimões que se mistura ainda ao Purus, Juruá e Japurá, unindo-se ao Negro, absorve o valente Madeira até o grande Tapajós e de lá ainda ao Tocantins/Araguaia e ao mar. Se transforma em nuvens, as mesmas nuvens que se precipitam em vida, do litoral aos vales e até as terras altas. A vida ecoa.
E assim, como iniciei falando do amor que tenho, vou chegando ao final falando sobre o que me fortalece. Hoje pela manhã, envolvido nos planejamentos sobre peixes e gente, ao falar da luta e das possibilidades, mesmo sabendo que o risco sempre existirá, ela sorriu.
Nós continuaremos a lutar, lutaremos por todos, lutaremos por nós. Honraremos as histórias, todas elas, que nos fortalecem de todos os cantos e encantos. Que após todo luto vivido, possamos novamente nos reunir. Estaremos de pé por todos os lugares. Somos um só.
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Que textão incrível , Enrico Bernard!!!!!!!