A Floresta Atlântica é uma das áreas mais ricas do planeta em termos de biodiversidade. Esta grande floresta, hoje reduzida drasticamente, continua sofrendo vários impactos em toda sua extensão. Mesmo tendo sua área reduzida e passando por severas alterações ambientais, a Mata Atlântica ainda guarda muitos segredos aos bravos pesquisadores que a estudam incansavelmente. Muitas espécies novas ainda são descobertas no bioma, muitas listas de espécies são publicadas, ao mesmo tempo que existem áreas com quase nenhuma informação e que diminuem de tamanho diariamente. A descoberta da biodiversidade da Floresta Atlântica e a sua elevada taxa de destruição travam uma verdadeira corrida contra o tempo: preservação e conhecimento X destruição e ignorância.
Uma das áreas da Mata Atlântica menos estudada e mais impactada, corresponde ao conjunto de florestas (costeiras e interioranas) localizadas entre os estados de Alagoas e Rio Grande do Norte, e recebe o nome de Centro de Endemismo de Pernambuco. Esta área em particular, pouco conhecida, mas já muito destruída, abriga uma altíssima biodiversidade, com um alto grau de espécies endêmicas. Dentro desta área singular, com 56.400 km² de extensão, encontra-se um conjunto de florestas interioranas, muito pouco estudadas, localizadas acima dos 600 metros de altitude, denominadas de “Brejos de Altitude” ou “Brejos Nordestinos”.
Os Brejos de Altitude, em linhas gerais, são testemunhos de uma conectividade passada entre a Amazônia e a Floresta Atlântica, quando estes dois biomas se encontravam e compartilhavam espécies vegetais e animais. Assim como outras regiões da Mata Atlântica, os Brejos também sofrem severos impactos ambientais, sendo o principal deles o desmatamento, que acarreta perda direta de área e de biodiversidade. Dentre todas as fitofisionomias da Floresta Atlântica, os Brejos de Altitude, são sem dúvidas, as áreas menos conhecidas.
Se tratando da Herpetofauna (fauna de répteis e anfíbios), mais precisamente das serpentes, existia pouca informação para a região dos Brejos. Algumas informações foram publicadas pelo célebre herpetólogo Paulo Vanzolini e por alguns outros diletos colegas de profissão; entretanto, foi em 2011 que o primeiro panorama geral das serpentes que habitam os Brejos foi apresentado à comunidade científica. Na ocasião, eram conhecidas 5 famílias, 22 gêneros e 23 espécies de serpentes para apenas 8 brejos em todo o Centro de Endemismo de Pernambuco (que apresenta mais de 30). Após quase uma década, um novo panorama, publicado no periódico científico Ethnobiology and Conservation, foi apresentado por pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal Rural de Pernambuco e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Estes novos dados mostram um expressivo aumento em todos os números, sendo atualmente conhecidas sete famílias, 37 gêneros e 63 espécies para 16 Brejos. Mesmo com esse significativo aumento, muitas florestas interioranas ainda são completamente desconhecidas quanto a diversidade de serpentes, com potenciais promissores para novos estudos.
Algumas espécies registradas nos Brejos chamam a atenção pela raridade como é o caso das serpentes Echinanthera cephalomaculata (sem nome popular conhecido), da Surucucu (Lachesis muta), espécie rara e ameaçada no Centro de Endemismo de Pernambuco, e da Surucucu de Fogo (Spillotes sulphureus). Outras espécies são muito comuns, podendo ser encontradas em quase todos os Brejos, como é o caso da Coral Verdadeira (Micrurus aff. ibiboboca), da Jibóia (Boa constrictor), da Salamanta (Epicrates assisi) e da Falsa Coral (Oxyrhopus trigeminus).
A pesquisa, publicada no periódico Ethnobiology and Conservation, mostra ainda que existem dois “tipos” de Brejos, os quais diferem quanto à composição da fauna de serpentes. O Planalto da Borborema, uma importante formação geográfica da região Nordeste, aparentemente, separa os Brejos entre úmidos e secos. Levando esta perspectiva ao estudo publicado, fica claro que os Brejos úmidos, situados a leste do Planalto, apresentam uma fauna de serpentes mais próxima da encontrada na Floresta Atlântica costeira; já os Brejos secos situados a oeste do Planalto, apresentam uma fauna de serpentes muito mais próxima à encontrada na Caatinga. Os dois tipos de Brejos apresentam espécies de serpentes endêmicas, tanto da Caatinga quanto da Mata Atlântica. Outro resultado importante da pesquisa, mostra que a maioria dos Brejos estudados até agora, que contam com listas de espécies resultantes de inventários bem conduzidos, indicam que a Floresta Atlântica costeira compartilha um grande número de espécies com vários Brejos, principalmente os úmidos, o que sugere, que a Floresta Atlântica costeira, se estendia até as regiões das escarpas do Planalto da Borborema, como atestam vários Brejos úmidos atualmente.
Infelizmente, a pesquisa também constatou que além do desmatamento e da caça ilegal, a exploração descontrolada de recursos hídricos tem se tornado muito forte na região, contribuindo para o desequilíbrio ecológico. Outra constatação é de que nenhuma das 63 espécies de serpentes registradas, faz parte da lista de fauna ameaçada do Brasil. Um fato que chama a atenção e merece reavaliação, uma vez que várias espécies sofrem fortemente com a degradação encontrada nos Brejos e apresentam reduções drásticas em suas populações.
Restam muitas perguntas para serem respondidas sobre os Brejos de Altitude, inúmeras na verdade. Certamente a mais urgente a ser respondida é: por quanto tempo estas áreas únicas da Floresta Atlântica irão resistir aos fortes impactos ambientais que sofrem? Não há uma resposta precisa para esta pergunta, porém, se estas áreas continuarem a ser vítimas do descaso e esquecimento das raras políticas públicas voltadas para a conservação do patrimônio biológico do Brasil, inegavelmente irão desaparecer em pouco tempo. Irão, inequivocamente, fazer parte do rol das grandes paisagens nordestinas de um passado não tão longínquo que permeiam obras literárias e contos populares, que relatam as grandes e altas matas da Caatinga, os formosos rios ricos em peixes, os grandes cânions repletos de pinturas rupestres, assim como as belas e exuberantes matas dos Brejos de Altitude. Lutemos para que isso não aconteça.
Gentil Alves Pereira Filho – Universidade Federal da Paraíba
Marco Freitas – Instituto Chico Mendes de Biodiversidade
Washington Luiz Silva Vieira – Universidade Federal da Paraíba
Geraldo Jorge Barbosa de Moura – Universidade Federal Rural de Pernambuco
Frederico Gustavo Rodrigues França – Universidade Federal da Paraíba
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Não encontrei nomes desatualizados. Todos me pareceram ok, a não ser o acento agudo em "jibóia" (hoje,jiboia). Parabéns, Gentil e demais da equipe, pela divulgação desse ambiente tão ameaçado com fauna e flora relictuais de grande relevância.
Valeu Renato. Muito obrigado! Grande abraço
Conteúdo espetacular, alguns nomes científicos precisam ser revisados, não estão condizentes com as espécies. Forte abraço
Olá Tailon. Quais seriam os nomes errados? Obrigado.
Gentil