Embora a data ainda não tenha sido oficializada – o Projeto de Lei que tramita no Congresso Nacional há alguns anos ainda não foi aprovado – desde 2013 os proprietários e entusiastas das Reservas Particulares do Patrimônio Natural, ou simplesmente RPPNs, comemoram o 31 de janeiro como seu “Dia Nacional”. A data foi escolhida para celebrar a assinatura do decreto federal que criou e regulamentou este tipo de área natural protegida, que é criada por decisão voluntária do dono da terra. Desde 31 de janeiro de 1990, os proprietários de áreas naturais com atributos especiais que aspiram vê-las protegidas em perpetuidade podem realizar este desejo requerendo seu reconhecimento como RPPN.
A origem da palavra privado vem do latim privatus, que significa ‘retirado da vida pública’. No entanto, quando uma propriedade ou parte dela é reconhecida legalmente como RPPN o que acontece é exatamente o oposto. Embora a propriedade privada seja mantida, os benefícios gerados são desfrutados por toda a sociedade. No Brasil, ainda que houvesse previsão legal para restrições voluntárias visando à proteção da natureza em propriedades privadas desde o primeiro Código Florestal, de 1934, foi apenas com o surgimento das RPPNs que esta possibilidade passou a ser juridicamente efetiva e segura.
Mais de um quarto de século depois de sua criação, as RPPNs representam um dos mais importantes e vastos sistemas de conservação privada voluntária do mundo. Já são quase 1.400 reservas, distribuídas por mais de 650 municípios nas 27 unidades da federação. Juntas, protegem cerca de 720 mil hectares, que abrigam centenas de espécies de plantas e bichos, muitos delas ameaçadas de extinção. Aliás, algumas dessas espécies têm nas RPPNs um dos seus últimos hábitats ainda bem conservados e protegidos. Em pelo menos 200 municípios brasileiros as RPPNs são as únicas unidades de conservação existentes. Sem falar nas dezenas de cidades, vilas e comunidades que têm seu abastecimento hídrico diretamente dependente de RPPNs.
No mundo, os primeiros exemplos de áreas protegidas criadas por decisão de proprietários particulares remontam ao Século 19. No entanto, até poucas décadas atrás a criação e a gestão de áreas para proteção da natureza era entendida como uma tarefa se não exclusiva, ao menos essencialmente estatal. Mas este quadro vem mudando rapidamente nas últimas décadas. Considerando as informações disponíveis no Banco de Dados Mundial sobre Áreas Protegidas, complementadas com dados de associações regionais – como a Aliança Latinoamericana de Conservação Privada – há no mundo mais de 10 mil reservas privadas, distribuídas por dezenas de países de todos os continentes, protegendo os mais diversos ecossistemas naturais.
Por conta da sua área geralmente pequena, se comparada com os grandes parques e reservas administrados pelos governos, as áreas protegidas privadas são consideradas complementares aos esforços públicos de conservação da natureza. No entanto, há que se ressaltar que, em número, as reservas privadas se equiparam, e em alguns países ultrapassam, as áreas protegidas públicas. Além disso, na medida em que despertam o interesse dos estudiosos e mais pesquisas vão sendo realizadas sobre o tema, torna-se evidente o papel estratégico que estas reservas desempenham na proteção de paisagens, hábitats, espécies e serviços ecossistêmicos.
No caso das RPPNs brasileiras, sua relevância fica mais evidente quando consideramos o grau de restrição e a intensidade de proteção das reservas desta categoria. Enquanto nos demais países as áreas protegidas privadas são temporárias – ainda que na maior parte dos casos os compromissos têm sido renovados continuamente – e diversos tipos de aproveitamento econômico dos recursos naturais são permitidos, as RPPNs são sempre reconhecidas em caráter perpétuo e somente turismo, educação ambiental e pesquisas podem ser realizadas no seu interior.
As RPPNs têm sido incluídas com destaque nas estratégias de conservação da biodiversidade e proteção dos serviços ecossistêmicos, especialmente nas escalas estadual e regional. Em alguns estados, como Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro, as RPPNs são incluídas nas políticas de promoção e reconhecimento dos serviços ecossistêmicos, por meio do ICMS Ecológico. Em São Paulo, uma iniciativa inovadora do governo do estado tem permitido que proprietários de RPPNs sejam recompensados com pagamentos pelos serviços ambientais prestados em suas reservas. Atualmente, 16 estados contam com legislação própria para RPPNs, reforçando o papel da responsabilidade concorrente para a criação e reconhecimento de áreas protegidas, previstos na Constituição Federal. No entanto, cabe notar que apenas nove destes 16 estados aplicaram efetivamente, até o momento, esta legislação. Nos demais, os órgãos estaduais ainda não se estruturaram para esta função.
Do ponto de vista da mobilização dos proprietários de RPPNs, a principal bandeira não é mais comprovar a relevância das RPPNs para os esforços de proteção do patrimônio natural brasileiro. Os desafios agora são outros. Após um período de grande mobilização e articulação entre os proprietários – entre a segunda metade dos anos 1990 e primeira metade dos anos 2000 – que resultou na criação de 18 associações regionais e na fundação da Confederação Nacional de RPPNs (CNRPPN), seguido de um período de refluxo, com várias associações desarticuladas, o ‘movimento RPPNista’ vive no presente um processo de rearticulação e resgate. Renovar e reforçar o marco legal das RPPNs, por meio da aprovação do Projeto de Lei 1.548/2015, que trará segurança jurídica e benefícios para as reservas, e influenciar políticas públicas de fomento à sustentabilidade nas iniciativas de conservação em terras privadas no país são as metas a perseguir.
RPPN em números
A Mata Atlântica é o bioma com o maior número de RPPNs, reunindo 73% das reservas existentes. Há pelo menos quatro fatores que podem explicar esta concentração de reservas na Mata Atlântica. O primeiro deles é o perfil socioeconômico dos proprietários rurais da região, em especial nos estados da Região Sudeste, que abrigam quase a metade das RPPNs do bioma.A combinação de cidadãos com mais acesso a informações e menos dependentes economicamente de suas terras – a maioria tem sua renda oriunda de outras atividades – pode explicar uma maior predisposição para a proteção da natureza. Um segundo fator seria a malha fundiária da região, caracterizada por muitos imóveis rurais. A existência de mais imóveis e, consequentemente, mais proprietários, pode estar influenciando também um número maior de RPPNs, ainda que o interesse pela criação de reservas privadas fosse proporcionalmente equivalente ao dos outros biomas.A terceira razão que ajuda a explicar a predominância de RPPNs na Mata Atlântica está relacionada a políticas públicas e programas governamentais, os quais foram decisivos para o crescimento do número de reservas. Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Espírito Santo, por exemplo, contam com iniciativas que oferecem informação, incentivos e suporte técnico aos proprietários interessados em criar reservas em suas terras, tornando mais fácil o processo.Por último, é inegável o impacto do Programa de Incentivo às RPPN da Mata Atlântica, iniciativa pioneira que durante mais de 12 anos doou recursos e ofereceu assistência técnica e jurídica para a criação e implementação de RPPNs no bioma. Capitaneado pela Conservação Internacional e pela Fundação SOS Mata Atlântica, este programa viabilizou a criação de mais de 300 RPPNs, cerca de um terço do total de reservas existentes no bioma.
As RPPNs na Mata Atlântica são muitas, mas são na sua maioria pequenas. Com área média de menos de 200 hectares, as RPPNs da Mata Atlântica representam 25% da área total protegida pela categoria no país, sendo maiores apenas que as RPPNs do Pampa e dos Ecossistemas Costeiros.O Cerrado é o segundo bioma em número de RPPNs, com 16% do total, seguido da Caatinga, com quase 5%. O Pantanal, com apenas 20 RPPNs, é o bioma com a maior área em RPPNs. Com 1,5% das reservas, contabiliza quase35% da área protegida em reservas desta categoria. O perfil fundiário deste bioma, caracterizado por propriedades rurais na sua maioria de grande extensão, é a principal explicação para estes números. As RPPNs pantaneiras têm uma área média de mais de 12 mil hectares – dez vezes maior que a área média das reservas da Caatinga, que têm o segundo lugar neste quesito – e abriga sete das dez maiores RPPNs do país.
Já a Amazônia abriga apenas pouco mais de 4% das RPPNs do país. Este resultado evidencia que, no caso da maior e mais famosa floresta tropical do planeta, as áreas protegidas privadas não constituem uma alternativa relevante. A oferta abundante de natureza, o elevado percentual de território protegido pelo Estado e as restrições legais de uso da terra – como uma reserva legal de pelo menos 80% do imóvel – induzem nos proprietários a percepção de quenão é necessário proteger mais. Sob tais condições, é natural que poucos se interessem por ampliar ainda mais, de maneira voluntária e em caráter perpétuo, a área protegida ou as restrições de uso dos recursos naturais em suas terras.
Heróis da natureza
Indivíduos e seus familiares são a maioria entre os proprietários de RPPNs. Cerca de 73% das reservas foram criadas e são administradas por pessoas físicas, sendo as demais geridas por diferentes tipos de pessoas jurídicas, tais como empresas, organizações da sociedade civil, instituições religiosas e de ensino. Mas quando comparamos a área protegida entre estes dois grupos a situação se inverte. As RPPNs de pessoas jurídicas somam 58% da área, contra 42% das reservas de pessoas físicas.
Dentre as organizações dedicadas à proteção da natureza que optaram por criar suas próprias reservas destacam-se a fundação do Grupo Boticário – dona de duas RPPNs que somam quase 11 mil hectares, sendo uma na Mata Atlântica (Paraná) e outra no Cerrado (Goiás) – e a Fundação Ecotrópica, que cuida de duas reservas que protegem mais de 14 mil hectares nos arredores do Parque Nacional do Pantanal, no Mato Grosso do Sul. Outros destaques dentre as organizações da sociedade civil é a Associação Caatinga, responsável por mais de 6 mil hectares no Ceará, que servem de refúgio para dezenas de espécies típicas deste bioma, muitas ameaçadas de extinção, e a SPVS, responsável por uma rede de sete reservas nos municípios de Antonina e Guaraqueçaba, litoral do Paraná, cujos mais de 11 mil hectares foram protegidos visando a manutenção do estoque de carbono presente em suas florestas.
No caso das empresas, ações de responsabilidade ambiental misturam-se com princípios corporativos e medidas compensatórias, resultando numa rede de RPPNs de extrema relevância. O setor florestal é o que mais se destaca, totalizando mais de duas dezenas de reservas sob sua gestão, seguido das empresas do ramo sucroalcooleiro. Não chega a ser uma surpresa, considerando que estes setores são os que apresentam os melhores desempenhos no que se refere ao cumprimento da legislação ambiental, em especial do ‘Código Florestal’, quando comparados com outros segmentos do agronegócio. Muitas RPPNs de empresas cumprem funções ecológicas fundamentais nas paisagens onde estão inseridas, com destaque para a Mata Atlântica, ambiente extremamente fragmentado, onde grandes áreas remanescentes são cruciais para ampliar as chances de restauração da conectividade e resiliência. Seis das dez maiores RPPNs neste bioma são de propriedade de empresas do ramo de papel e celulose, com destaque para a Estação Veracel, entre Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, na Bahia, que tem seus mais de seis mil hectares reconhecidos pela UNESCO como Sítio do Patrimônio Mundial Natural.
Mas são as pessoas, sozinhas ou contando com o apoio da família, que reúnem as histórias mais emocionantes e heroicas na proteção do patrimônio natural brasileiro! Personagens como Alcir do Vale Dourado, que há mais de vinte anos cuida da RPPN de seu irmão, Renato, nas barrancas do rio São Francisco, em Ibotirama, oeste da Bahia. ‘Seu’ Alcir é a síntese do sertanejo que, segundo Euclides da Cunha, “é antes de tudo um forte”. Gente como os saudosos Eunice Braz (RPPN Fazenda Santa Clara, em São João do Cariri, PB), Henrique Berbert (Reserva Natural Serra do Teimoso, em Jussari, BA) e Ronaldo Sant’Anna (RPPN Mãe da Mata, em Ilhéus, BA), que partiram cedo demais, mas não sem antes deixarem um legado indelével de amor e cuidado com a natureza. Famílias pra lá de especiais, como os Bacca, os Nishimura Woehl e os Pimentel Teixeira de Santa Catarina, os Becker e os Laranjeira Moura da Bahia, os Silva Borges do Amazonas, os Abdala e os Monteiro de Minas Gerais, os Ayer e os Luzardo de Goiás, e tantas e tantas outras, que têm dedicado recursos financeiros e tempo para assegurar a proteção de lugares especiais deste planeta.
Há muitas celebridades entre os donos de RPPNs. A escritora Rachel de Queiroz garantiu a preservação perpétua do Sítio Não Me Deixes, em Quixadá (CE), inspiração para muitas de suas obras, transformando-o em RPPN sete anos antes de sua morte, em 2003. O cantor Ney Matogrosso se surpreendeu com a ‘coincidência’ do nome da colina coberta de florestas que havia lhe encantado anos atrás, quando buscava um sítio para servir de refúgio. A proteção da Serra do Mato Grosso, em Saquarema (RJ), conta hoje com o reforço das duas RPPNs criadas e mantidas por Ney. O empresário José Roberto Marinho ‘coleciona’ diversas RPPNs no Cerrado e na Mata Atlântica da Bahia, nas quais além de assegurar a proteção ambiental apoia pesquisas e ações de educação e desenvolvimento regional. O compositor Ronaldo Bastos, juntamente com seus irmãos Vicente e Roberto, é responsável pela proteção de florestas e diversas nascentes em Nova Friburgo (RJ), que abastecem o alambique da Fazenda Soledade, uma das estrelas da cachaçaria brasileira. O casal de jornalistas Míriam Leitão e Sérgio Abranches vez por outra compartilham com seus leitores suas experiências na RPPN que criaram em Santos Dumont (MG). Esse pedacinho especial da Mata Atlântica inspirou o livro infantil “A perigosa vida dos passarinhos pequenos”, no qual Míriam relata uma parte do processo de recuperação da flora e da fauna da região a partir das ações de proteção desencadeadas. Sebastião Salgado, um dos mais premiados fotógrafos do mundo, vem trabalhando há anos, ao lado de sua esposa Lélia e da equipe do Instituto Terra – especialmente criado para esta missão – na restauração florestal da fazenda que pertenceu a seu pai, em Aimorés (MG). Mais de 17 anos depois, a recuperação de nascentes e pequenos córregos realizada na Fazenda Bulcão pode servir de modelo a ser implementado em outras micro-bacias do rio Doce, castigado por um intenso desmatamento nos últimos 50 anos e assolado, há quase três meses atrás, por uma das maiores tragédias ambientais do país.
Mas, muito mais do que celebridades e personagens de destaque, o movimento RPPNista é resultado do trabalho e compromisso diários de muitos Josés, Eunices, Ronaldos, Deises, Henriques, Mírians, Laércios, Kelmas, Sérgios, Anas, Flávios, Cristinas,Nelsons, Marilenes, Rodrigos, Marias… Estas reservas são o exemplo e o legado de pessoas conscientes, com senso de missão. Pessoas generosas, que não hesitaram em disponibilizar parte dos seus bens para proteger o bem comum. Porque sabem que a natureza é nosso maior patrimônio. Para vocês, um feliz 31 de Janeiro!
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Gosto muito de viajar, a minha próxima viagem agora é para Bonito MS. Desta vez vou realizar um passeio https://www.agenciasucuri.com.br/Passeios-Bonito
Realmente a ideia está consolidada, mas falta agora fortalecê-la através projetos que possam premiar e incentivar àqueles que se dispuseram a criar suas RPPNs.
Excelente coluna. Admiro muito os heróis que trouxeram o movimento até aqui, mas espero que o avanço nos pagamentos por serviços ambientais proporcione uma base econômica sólida para o crescimento das reservas particulares.
Muito boa reportagem.