Quando queremos incentivar uma criança a ler, muitas vezes usamos um argumento genérico que diz que “os livros podem mudar o mundo”. Por outro lado, é comum que a gente esqueça o quanto alguns livros (e a mera existência de livros como um todo) já mudaram o mundo. O quarto da minha série de dez livros para se mergulhar em conservação é um exemplo clássico do imenso poder dos livros. Afinal, não há nenhuma dúvida que “Primavera silenciosa” é um daqueles livros que ajudaram a fazer o mundo melhor.
“Silent Spring”, no original, foi lançado em 1962 pela bióloga marinha norte-americana Rachel Carson. É um livro-manifesto, com um objetivo bem definido: denunciar os devastadores impactos sobre a biodiversidade do uso indiscriminado de agrotóxicos. Hoje isso pode parecer familiar, mas na época a argumentação de Carson era muito inovadora e necessária. Mais que isso, era corajosa também – afinal, ela estava atacando gigantes.
Os anos após a segunda guerra mundial foram um período de rápido progresso científico e tecnológico, num ambiente cultural onde as maravilhas da tecnologia eram vistas como a solução para todos os problemas. Nesse cenário, em plena “revolução verde”, a indústria química em rápida expansão criava novos e cada vez mais poderosos inseticidas que eram apresentados como a solução definitiva para todas as pragas agrícolas. O apoio popular a esse tipo de solução era muito forte. Mas havia outro lado, menos óbvio, da colossal destruição de biodiversidade que os agrotóxicos causavam, da poluição mortal que ficaria como sua herança, e até da percepção de que esses métodos eram, em muitos casos, contraproducentes para aumentar a produção agrícola. Denunciar esses três pontos era o objetivo de Rachel Carson naquele que ela sabia que seria seu último livro.
Colocando o movimento ambiental em um novo patamar
É muito comum que se diga que a publicação de “Primavera Silenciosa” em 1962 foi o marco inicial do movimento ambiental. Isso não é correto; o movimento ambiental já existia muito antes disso. Mesmo no século XIX, já havia vários pioneiros da conservação cujas ideias foram influentes na época, como Henry Thoreau, John Muir e Gifford Pinchot lá mesmo nos EUA, por exemplo. Aqui no Brasil, José Bonifácio foi por alguns anos Ministro Plenipotenciário – o governante máximo do país – e nesse curto tempo promoveu uma inovadora política ambiental, que incluía a restauração de florestas para garantir a qualidade dos mananciais de água das maiores cidades (dessas, apenas uma saiu do papel e hoje se chama Floresta da Tijuca). Como brilhantemente apontado pelo historiador ambiental José Augusto Pádua em “Um Sopro de Destruição”, houve dezenas de outros ativistas ambientais no Brasil nos séculos XVIII e XIX. Além disso tudo, claro, havia Aldo Leopold – autor do primeiro livro dessa minha série, A Sand County Almanac – que era um inspiradíssimo advogado da conservação já na primeira metade do século XX.
“Primavera Silenciosa”, então, não deu início ao movimento ambiental – mas, usando a expressão celebrizada por Bruno Henrique, atacante do Flamengo, colocou-o em um novo patamar. O livro foi um inesperado e espetacular sucesso de vendas, que trouxe às questões ambientais uma visibilidade que nunca tinham tido antes. Por exemplo, seu sucesso levou à redescoberta e à popularização da obra de Aldo Leopold, até então pouco conhecida.
Mas a influência de “Primavera Silenciosa” foi muito além disso. O livro colocou as questões ambientais pela primeira vez no centro do debate político nos Estados Unidos. Ele levou diretamente à proibição do DDT – um agente cancerígeno – e outros dos venenos mais perigosos no país, que foi seguido depois pela maioria dos outros países do mundo. Indo ainda mais longe, as discussões que ele iniciou levaram a nada menos que a criação da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos em 1970 e a histórica aprovação pelo Congresso norte-americano, em 1973, do Endangered Species Act. Este último foi a primeira base legal para conservar e proteger espécies ameaçadas, e a inspiração para dezenas de legislações similares ao redor de todo o mundo. História havia sido feita. O mundo nunca mais seria o mesmo, e o interesse por questões ambientais nunca mais estaria restrito a uma pequena minoria de iniciados.
Uma poderosa argumentação e um pouco de poesia
Uma coisa que impressiona em “Primavera Silenciosa” é a quantidade e variedade de conhecimentos que Carson traz para substanciar sua argumentação. O livro, que demorou mais de quatro anos para ser escrito, é um verdadeiro tratado sobre o assunto, reunindo uma infinidade de exemplos de contaminação de seres vivos e ecossistemas por pesticidas, e descrevendo vividamente seus trágicos efeitos não só sobre animais e plantas como também sobre a própria saúde humana. Os capítulos são organizados por tipos de venenos (na época, o DDT era a grande estrela deles, mas já havia vários outros), tipos de organismos, tipos de ambientes (incluindo ambientes aquáticos) e métodos de aplicação das substâncias químicas. O foco central é nos EUA, com outros lugares do mundo sendo mencionados apenas raramente. Nos capítulos finais, Carson desmantela o argumento de que a alta produtividade justificaria tolerar os estragos. Primeiro ela mostra com lucidez que as espécies de pragas tendem a desenvolver rapidamente resistência aos pesticidas, forçando o uso de doses cada vez maiores, que causam cada vez mais estrago à biodiversidade e à saúde humana, num círculo vicioso trágico. Finalmente, mostra vários exemplos de que controle biológico seria mais eficiente para controlar as pragas, com um custo muito menor, e seria então uma opção preferível mesmo por critérios meramente econômicos.
Embora Rachel Carson escrevesse com elegância e precisão, “Primavera Silenciosa”, com sua estrutura de uma longa e metódica substanciação do argumento, não é tão gostoso de ler quanto outros livros dessa lista como A Sand County Almanac e The Song of the Dodo. O lado ativista da autora acaba aparecendo mais do que o lado artista. Mas isso não quer dizer que ela não fosse capaz de escrever com graça e poesia quando o tema lhe permitia isso. É o caso do capítulo que dá nome ao livro, “E nenhum pássaro canta”. Nele, Carson fala do choque e da tristeza das pessoas de cidades americanas do interior com o silêncio na primavera, mais violento que qualquer barulho que pudesse existir. A imagem das primaveras emudecidas pela mortandade em massa dos pássaros, incluindo o lado humano dessa imensa tragédia, nos é passada em uma escrita sensível e emocionante. Nas palavras de uma angustiada dona de casa, recolhidas por Carson:
“É difícil explicar às crianças que os pássaros foram mortos… ‘Eles vão voltar algum dia?’, perguntam elas, e eu não sei o que responder. Os olmos ainda estão morrendo, assim como os pássaros. Alguma coisa está sendo feita? É possível fazer alguma coisa? Será que eu posso ajudar?”
A serenidade da missão cumprida
Rachel Carson trabalhava num órgão público, o US Fish and Wildlife Service, e quando “Primavera Silenciosa” foi publicado já era bem conhecida do público norte-americano, por dois bons livros anteriores, The Sea Around Us e The Edge of the Sea – o primeiro deles, ganhador do prestigioso prêmio National Book Award. Mas “Primavera Silenciosa” a colocou infinitamente mais em evidência do que antes, no coração de um furioso debate nacional. As mudanças que o livro causou não foram alcançadas sem muita luta. As grandes indústrias químicas não iriam abrir mão facilmente de suas fontes de imensos lucros, e ela foi retratada como qualquer coisa entre alarmista, incompetente e histérica. Nada disso foi de graça: calcula-se que as indústrias químicas gastaram por volta de um quarto de milhão de dólares, em valores da época, em campanhas de difamação contra Rachel. Porém ela lidou com as agressões com muita serenidade. Seus detratores mal imaginavam que ela lutava contra um inimigo mais terrível que eles: um câncer de mama, se espalhando em metástase. Ela estava mais preocupada em lutar pela vida, e sua serenidade com os adversários também vinha da sensação de que sua missão estava cumprida. Ao contrário de Aldo Leopold com “A Sand County Almanac”, ela tinha vivido o suficiente para ver sua maior obra publicada. Rachel Carson faleceu em abril de 1964, aos 56 anos, apenas um ano e meio depois de “Silent Spring” ter sido publicado, com a felicidade de ver que as ideias do livro já caminhavam por si mesmas, e a revolução que ela sonhara já estava em pleno curso.
Não há dúvida que “Primavera Silenciosa” fez do mundo um lugar melhor do que seria se o livro nunca tivesse sido publicado. Nos últimos anos, especialmente no Brasil, temos assistido a alguns retrocessos nesse caminho. No momento que escrevo, o desastroso governo Bolsonaro tem enfraquecido a legislação sobre agrotóxicos de forma a permitir que vários compostos muito perigosos voltem a ser usados sem o devido teste e fiscalização. Mas isso é um recuo local e temporário; na maior parte do mundo isso não é assim, e quando esse pesadelo passar, também não vai mais ser aqui. A mentalidade mudou, e não há volta. Nunca mais pesticidas serão utilizados da forma ingênua, indiscriminada e inconsequente como eram em seus primeiros anos. Muitos dos compostos mais perigosos foram banidos para sempre, e os demais são testados, fiscalizados e por vezes banidos também. Qualquer ilusão de que se podia jogar qualquer tipo de veneno na natureza sem consequências tinha sido destruída para sempre.
Muito há por se fazer em conservação, e sempre haverá. Mas o legado de “Primavera Silenciosa” é duradouro; o movimento ambiental nunca mais desceu daquele novo patamar aonde havia sido alçado pela obra-prima daquela mulher corajosa e tranquila.
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