As férias de verão tinham acabado havia pouco, quando meu estagiário Gabriel Voto veio falar comigo com uma expressão constrangida, me pedindo mil desculpas.
“Que foi, Gabriel? O que aconteceu?”
“Sabe aquele livro que você me emprestou? O ‘Colapso’, do Diamond?”
“Sim, o que tem?”
“Eu estava lendo ele na praia, me distraí, e aí a maré subiu e… bom, molhou bastante… Foi mal, professor, foi mal. Eu compro outro pra você!”
Gabriel me olhou esperando a bronca, mas ela não veio.
“Gabriel, vem cá. Você estava nas suas férias, na praia, lendo um livro desses, maravilhoso, de ciência, de conservação. Acha que vou ficar p… com você? Relaxa. Acidentes acontecem, e se um livro estiver perfeito, imaculado, provavelmente quer dizer que ninguém leu. Livros não são pra ficar bonitinhos, são pra ser lidos. Não precisa me dar livro nenhum. E parabéns, quisera eu que todos meus orientados tivessem a mesma fome de ler essas coisas.”
Não só meus orientados. O mundo seria um lugar melhor se mais pessoas tivessem lido “Colapso” (de preferência em lugares mais seguros), e apreendido sua desconcertante mensagem. O colapso de muitas grandes civilizações do passado não foi causado pelos reis, guerras e tratados, argumenta Diamond; foi causado principalmente pela incapacidade dessas civilizações de lidar com seus problemas ambientais. É uma verdadeira pancada, uma mensagem revolucionária, que muda para sempre nossa maneira de ver a história humana.
Como classificar Jared Diamond?
Colapso foi escrito por essa figura fascinante e difícil de definir que é o Jared Diamond. A Wikipédia lista seus campos de atuação como “fisiologia, biofísica, ornitologia, ciência ambiental, história, ecologia, geografia, biologia evolutiva e antropologia”, o que não ajuda muito… Filho de imigrantes da Moldávia, Diamond nasceu em Boston, fez doutorado em fisiologia e foi contratado como professor desta área, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Desde jovem, porém, tinha grande interesse por aves, especialmente da Nova Guiné e adjacências, o que o levou a uma segunda carreira paralela – tolerada por sua Universidade – como ecólogo de comunidades de aves. Sei pouco do que Diamond fez em fisiologia, mas ele se tornou um dos ecólogos mais influentes do mundo por várias décadas. Gradualmente, porém, seus interesses foram pendendo para a história ecológica, a geografia e a conservação, e hoje ele é Professor de Geografia na própria UCLA.
Ao longo do tempo, Diamond foi também pendendo cada vez mais para a divulgação científica, através de vários livros, dos quais o mais conhecido é “Armas, Germes e Aço”. É justamente a impressionante diversidade de campos de pesquisa de Diamond que lhe permite escrever livros tão interessantes, nos quais questões complexas são apresentadas e discutidas com base em evidências de diversos campos complementares do conhecimento, tudo isso como um ótimo contador de histórias. Estes livros venderam milhões de exemplares e renderam a Diamond dezenas de prêmios e uma indicação como um dos cem intelectuais mais influentes do planeta.
Um sucesso estrondoso
“Colapso” (no título completo original, Collapse – How Societies Choose to Fail or Suceed) veio logo depois de “Armas, Germes e Aço”, em 2005. Foi um sucesso estrondoso nos EUA e no mundo. No Brasil, Colapso foi lançado no mesmo ano, um livro de seiscentas páginas, quase sem figuras, falando de história ecológica, com um preço de 70 reais (pelo menos o dobro em valores atuais). Que chance um livro assim teria no mercado editorial brasileiro? Nenhuma, né? Pois na época Colapso chegou ao primeiro lugar na lista de livros de não-ficção mais vendidos no país da revista VEJA! Um sucesso estrondoso por aqui também, batendo a usual lista de livros de auto-ajuda e dando à divulgação científica de qualidade uma visibilidade que raramente teve antes ou depois.
“Colapso” merece este sucesso: é um livro espetacular. A ideia central é que os problemas ambientais são importantes atores subestimados da história. Diamond alega que várias daquelas civilizações antigas que desapareceram de forma aparentemente misteriosa, sem que saibamos bem porque, colapsaram por não ter conseguido manter a base de recursos naturais dos quais dependiam, e não ter conseguido lidar com os problemas ambientais criados pelo seu próprio crescimento. Entre outras civilizações antigas discutidas em “Colapso” estão a ilha da Páscoa, os anasazi do sudoeste dos EUA, os maias da América Central, e as colônias vikings na Groenlândia e na América do Norte. O monumental complexo de Angkor Wat, no Cambodja, onde também há alguns indícios do papel do ambiente no colapso, só é mencionado de passagem.
“Colapso” não é só um livro revolucionário e rico em informações: é também muito gostoso de ler! As histórias das civilizações antigas são interessantíssimas, fascinantes. É o tipo do livro que você não consegue mais largar, depois que começa a ler. Só fui ficando triste quando foi chegando o final e vi que o livro ia acabar. Por que só seiscentas páginas?
Estátuas testemunhas, colossos no deserto e intrigas vikings
Dentre as histórias de Colapso, a Ilha da Páscoa é um dos candidatos mais conhecidos a colapso ambiental: um microcosmo do planeta, um lugar isolado onde a superpopulação sem válvula de escape e a superexploração de uma base pequena de recursos transformaram uma ilha florestada em uma paisagem desolada sem uma única árvore. Páscoa sofreu um brutal colapso populacional e civilizatório. Quando os europeus a “descobriram”, os poucos remanescentes do povo de Rapa Nui viviam precariamente, contemplados em silêncio pelas gigantescas estátuas abandonadas, os moais, misteriosas testemunhas de um apogeu perdido no tempo.
Meu caso favorito, porém, é o dos anasazi. Ao chegarem aos desertos do sudoeste dos EUA, os conquistadores espanhóis ficaram atônitos ao descobrir ruínas de prédios colossais, os “pueblos”. Os maiores mediam centenas de metros e teriam alojado milhares de pessoas. Não havia mais nenhum vestígio de seus construtores, os anasazi, exceto referências a eles na cultura dos atuais navajos. Por que teriam eles feito construções monumentais como aquelas, no meio de um imenso deserto, e depois as abandonado? Aos poucos, a arqueologia e a paleobotânica foram resolvendo o enigma dos pueblos, com a mais desconcertante das respostas: quando foram construídos, há pouco mais de mil anos, os pueblos eram cercados por uma floresta temperada de árvores decíduas e coníferas. A floresta foi sendo gradualmente derrubada para agricultura, e para fornecer lenha e madeira para construção. A civilização dos anazasi acabou desaparecendo, derrotada por um deserto criado por eles mesmos.
Os maias são outro exemplo em grande escala, e uma história muito interessante também, de ricas e poderosas cidades-estado que foram colapsando, uma a uma, à medida que não conseguiam mais manejar os recursos (solo, colheitas, caça etc) para atender às demandas crescentes. Hoje os descendentes dos maias se espalham por muito da América Central, séculos depois do colapso de sua admirável civilização clássica. Já a saga das colônias vikings da América do Norte pode ser lida como uma verdadeira história de aventuras, com generosas doses de paixões, intrigas e violência no cotidiano dos vikings – Diamond nos brinda com alguns casos, e como disse, sabe bem contar histórias. Mas essas histórias se passavam sob o pano de fundo do conflito mais amplo com o povo descobridor anterior, os inuit, e da insistência dos vikings em tentar reproduzir seu modelo de civilização escandinava em um ambiente que não o comportava, levando ao inevitável colapso.
Um livro cada vez mais atual
Nem só de civilizações desaparecidas trata Colapso. Diamond também discute, entre outros, os exemplos de algumas civilizações atuais que souberam (Japão, República Dominicana) e não souberam (Haiti) lidar com seus problemas ambientais; uma civilização próspera que tem todos os problemas da lista e pode ter seu futuro brevemente comprometido por eles (China); uma civilização por enquanto bem sucedida por ajustes delicados a um ambiente frágil (Austrália). Esses casos são oportunos lembretes de que as questões ambientais continuam sendo um dos principais atores da história, e de que os colapsos não estão só no passado, mas também no presente e muito possivelmente no futuro.
Cabe notar que Diamond, a meu ver, não merece ser acusado de reducionismo, como às vezes tem sido. É natural que uma revolução tão grande assim tenha provocado um movimento de reação. Vários antropólogos e historiadores, claro, não concordaram em ver a história contada desta forma diferente. Mas Diamond não defende, em lugar nenhum, a posição simplista de que os fatores ambientais sejam os únicos determinantes do curso da história. Ele apenas argumenta com brilhantismo que estão entre os principais determinantes, mas que são solenemente ignorados na maneira que costumamos estudar e ensinar história. Os fatores ambientais interagem com outros fatores, econômicos e políticos, em combinações específicas em cada lugar. Diamond discute amplamente essas interações, com a riqueza de abordagens e de informação que faz dele essa figura única por ser tão plural.
No momento em que escrevo, em 2024 – que no futuro talvez seja lembrado como o ano em que a emergência climática chegou – estamos, muito mais do que em 2005, percebendo a possibilidade real de um colapso civilizatório infinitamente maior que os descritos em Colapso. Precisamos, mais que nunca, saber lidar com as questões ambientais. Colapso é um alerta poderoso, e mais atual do que quando foi escrito. Se você quiser eu te empresto o meu; só não repare que tem umas páginas meio coladas umas nas outras.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
Leia também
10 Livros para Mergulhar em Conservação, parte 4: Primavera Silenciosa
“Silent Spring”, no original, foi lançado em 1962 pela bióloga marinha norte-americana Rachel Carson e é um daqueles livros que ajudaram a fazer o mundo melhor →
10 livros para mergulhar em conservação, parte 3: o canto do dodô
Dando sequência na série sobre grandes livros da conservação, apresento a obra-prima do jornalista David Quammen, um livro de um não-cientista que qualquer cientista teria orgulho de ter escrito →
Última chance para ler
Douglas Adams, autor de O guia do mochileiro das galáxias, também escreveu sobre biodiversidade e decifrou o canto de sedução do Kakapo. →