Carter Niemeyer é um ecochato de carteirinha. Mas não convém dizer isso a ele, porque os colegas o descrevem como “um grandalhão, capaz de nadar contra a corrente em rios encachoeirados”. Doze anos atrás, Niemeyer estava na linha de frente de uma batalha literalmente feroz. Tratava de devolver aos lobos o pedaço que lhes cabia no Parque Nacional do Yellowstone, antes que os programas oficiais de extermínio, para franquear o terreno aos turistas na primeira metade do século 20, terminassem de uma vez por todas a faxina biológica que os caçadores de peles haviam iniciado na segunda metade do século 19.
A reintrodução do Canis lupus é uma história e tanto para quem gosta de aventuras. Está contada como uma bela saga de bichos e homens pelo zoólogo Douglas Smith e o jornalista Garyy Fergunson no livro The Decade of the Wolf. Com um final tão feliz que a tal “década do lobo” acabou recuperando não só a fauna e a flora da região como até a economia de pequenas cidades do interior americano, antes sufocadas pelas restrições que a vizinhança do parque lhes impunha. Mas, no começo, os moradores desses lugarejos não podiam mesmo adivinhar-lhe o desfecho. E abriram contra a experiência o fogo cerrado do arsenal antropocêntrico, disparando processos nos tribunais e chumbo grosso nas alcatéias.
Sozinho na floresta
Eram animais que Niemeyer escolhera a dedo no Canadá, por falta de lobos nos Estados Unidos com sobras de vitalidade para repovoar o Yellowstone. E mesmo lá, nos territórios selvagens de Alberta, a má-vontade foi grande. Durante meses os biólogos ofereceram aos caçadores canadenses um bom dinheiro por lobos, pagando US$ 1.500 por exemplar, três vezes mais do que eles ganhariam vendendo o couro de animais abatidos. E, mesmo assim, nada de lobo, por meses a fio. Niemeyer foi a Alberta buscar explicações para o mistério. E, numa tarde de inverno, bateu sozinho na cabana de Wade Berry, o senhor das armadilhas espalhadas por coureiros profissionais na floresta. Encontrou-o cercado de amigos, todos encharcados de cerveja, contando casos de “fazer corar um velho estivador”.
Niemeyer não poderia se sentir menos bem-vindo na casa de Wade, cuja recepção foi levá-lo aos fundos da casa, onde meia dúzia de peles secava ao relento. “Isso é o que fazemos com lobos aqui”, disse-lhe Wade, em tom de quem espera liquidar o assunto ali mesmo. Mas Niemeyer não arredou o pé do rancho, engolindo conselhos explícitos para juntar suas coisas e voltar aos Estados Unidos pelo mesmo caminho que o trouxera. “Foi barra pesada”, ele confessaria mais tarde.
Ao anoitecer, já sem cerveja, mas com um estoque aparentemente inexaurível de vinho fermentado em casa com cerejas silvestres, o grupo de bêbados reanimou-se de repente, quando a porta abriu e por ela entrou, junto com o vento gelado, um caçador saído da nevasca. Era Brad. Trazia dois lobos. Mortos, evidentemente. E Wade aproveitou para submeter o hóspede à suprema prova de testosterona: “Você já esfolou alguma coisa?” Sim, respondeu o forasteiro, “muitas”. Curtido pela rotina do controle da fauna, Niemeyer era um tarimbado taxidermista. “Então, vamos fazer uma competição”, Wade grunhiu.
Concurso de esfolamento
Brad era o campeão local de esfolamento. Niemeyer ainda quis tirar o corpo fora. Alegou que o concurso, disputado na sala, sujaria tudo de sangue. Wade fechou questão: “Que se dane. Se precisar, trocamos o carpete”. E Niemeyer teve que mostrar o que sabia fazer com uma faca na mão e um lobo de quase 60 quilos nos joelhos. Venceu a corrida. Aprovado, ganhou na mesma hora um convite para se aboletar no sofá, em vez de ir dormir no hotel, como estava previsto. E na manhã seguinte começava a livrar os lobos das armadilhas de Wade.
Sem ser um profissional da bravata, Niemeyer impressionaria os caçadores nessa tarefa mais do que eles podiam supor pela exibição da véspera. Carregou nos ombros lobos sedados, mas vivos, que poderiam acordar a qualquer momento. Deitou no banco traseiro da picape, para reanimá-los com o ar quente da cabine, animais levados à beira da crise fatal de hipotermia pela briga, noite adentro, contra o abraço do fio metálico. Fez-se pendurar pelas pernas de cabeça para baixo em barrancos sombrios, para içar feras caídas. Com essas e outras, daí para frente Niemeyer conseguiu no Canadá todos os lobos que quis. Mas nem por isso deixou de ser ecochato. A má fama é o osso do ofício.
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