Nesta hora em que o país tem se esforçado tanto para transformar o noticiário político num ramo experimental da primatologia, é um prazer informar que está saindo finalmente em português um grande livro sobre os legítimos macacos brasileiros. Chama-se Faces na Floresta. É resultado das andanças da primatóloga Karen Strier por Caratinga, em Minas Gerais. Trata de muriquis entrincheirados, à beira da extinção, em mil hectares de uma floresta que se salvou do machado e do fogo pela teimosia de um cafeicultor chamado Feliciano Miguel Abdalla. Estava reservado há mais de quinze anos para quem pusesse as mãos num exemplar em inglês da Harvard University Press.
Depois de tanto atraso, a edição brasileira está saindo agora porque, aos herdeiros de Abdalla, somaram-se a sua torcida o patrocínio de empresas, o atrativo fiscal da Lei Rouanet, a chancela de grandes ONGs,a fotografia suntuosa de Luciano Candisane e a veia missionária da jornalista Miriam Leitão que, como os muriquis da fazenda Montes Claros e o humorista Ziraldo, é de Caratinga.
Espanto no Matão
O livro de Strier merece tudo isso. Mas só a indiferença nacional pela nossa natureza explica que precisasse de tantos padrinhos um texto com argumentos de sobra, em qualquer idioma , para se vender sozinho, só com os parágrafos onde a pesquisadora conta seus espantos de debutante no Matão.
A começar pelo nome, tudo no Matão lhe pareceu à primeira vista maior do que a realidade. As árvores altas como naves de catedral. As sombras que elas projetavam no chão. Os rumores produzidos lá em cima pelo coro de papagaios, pica-paus, micos e bugios. O medo genérico das cobras, levando-a a estrear seu caderno de campo com a palavra “botas”. A vegetação desgrenhada, que lhe dava a impressão de cair como cortina sobre a carreira que mal começava da observadora de muriquis.
Ela estava aqui para estudar o maior macaco brasileiro. O muriqui pode medir um metro e meio de altura. Pesa até quinze quilos. Tem barriga redonda, como convém a um gigante vegetariano que precisa digerir, à custa de muita fermentação, as folhas que lhe couberem durante as entressafras de frutas na floresta. Vive em comunidades pacíficas e igualitárias, onde as fêmeas mantêm os machos literalmente na linha, sobretudo quando se trata de fazer fila para copular. Balança nos galhos com a coreografia imponderável de um trapezista no Cirque du Soleil. Tem rostos marcados por pigmentos que conferem fisionomias inconfundíveis a cada indivíduo. Daí, as tais “faces na floresta”.
No livro de Strier, os muriquis podem se chamar Pedro ou Priscilla, sem com isso abdicar às prerrogativas da vida selvagem. Como os insetos do entomólogo Jean Henri Fabre, as abelhas de Karl von Frisch, os besouros de Thomas Eisner , as plantas de David Attenborough ou todas as criaturas cobertas de pena, pelo, escama ou quitina que pasou pela frente de Gerald Durrell, os macacos descritos por ela são um atestado de que “animal irracional” é uma condição típica dos bichos que ainda estão à procura de um autor.
Em Brasília, passariam com garbo pelas mais ciosas comissões de decoro as duas fêmeas que, depois de defender a primatóloga do discurso maleducado de um muriqui do baixo clero, estenderam-lhe os braços “num gesto que, entre eles, é um modo de oferecer um afago tranqüilizador”. Ela admite que lhe custou “todo treinamento científico e força de vontade resistir à tentação” de aceitar o convite.
Mas o ponto alto de sua narrativa fica na clareira, a 700 metros de altitude, de onde ela enxergou pela primeira vez as fronteiras da selva que parecia engolfá-la. A seu redor, a pequena distância, um mar de colinas se estendia até o horizonte, em ondas encrespadas por cristas de voçorocas. A “paisagem nua, erodida” lhe deu, de estalo, a real dimensão de quanto vale uma floresta como a de Abdalla.
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