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Tudo é pretérito: um colapso brasileiro

Documentário sobre Vale do Paraíba chama atenção para importância de conservar a natureza. Floresta foi derrubada em troca de meio século de luxo onde hoje impera a pobreza.

24 de julho de 2007 · 17 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Extraordinário descobrir-se que, mesmo antes da publicação do livro “Colapso”, do escritor Jared Diamond, onde ele reporta casos de regiões ricas e desenvolvidas que se degradaram a ponto de as suas culturas serem extintas ou terem de migrar, tenhamos tido a documentação magnífica de um caso em tudo semelhante no coração do Brasil. Além do paralelo com as evidências recolhidas por Diamond, o colapso brasileiro ainda resulta mais chocante pelo curtíssimo lapso de prosperidade que vivenciou, antes do seu decrépito fim. Trata-se de nada menos, nada mais do que o Vale do Paraíba. O documentário “O Vale (2ª História)” de argumento de Marcos Sá Correa, com consultoria de José Augusto Pádua e direção de João Moreira Salles e produção do mesmo Salles e de Sá Correa é, no mínimo, impactante. Merece ser mais divulgado e conhecido.

Não me perdôo por não tê-lo visto antes e é com a convicção que muitos brasileiros precisam vê-lo, principalmente os que labutam com meio ambiente, ou os que o destroem por ganância, que me atrevo a chamar a atenção para o documentário nestas linhas, depois de anos do seu lançamento. Todos nós vimos ou sabemos de um seu semelhante, o filme “Verdade inconveniente” apresentado pelo famoso Al Gore, sobre o aquecimento global, que venhamos e convenhamos também é extraordinariamente impactante e por isso sensibilizou o mundo. Compará-los é até uma covardia em termos de sofisticação, pois o filme de Gore teve um orçamento vultoso, se comparado com o nosso documentário, e contou com a assessoria de grandes técnicos e cientistas, bem como de profissionais de cinema do mais alto nível. Por isso mesmo é mais difícil de compreender. Porém, o que impressiona no documentário de Marcos Sá Correa e João Moreira Salles é exatamente a simplicidade.

Nesse filme, diferentemente do de Gore, as imagens falam por si. Não é necessário se saber de conservação da natureza. Desde os depoimentos de pequenos agricultores, ou pecuaristas e carvoeiros, que sofrem hoje a inconseqüência dos barões do café do Vale do Paraíba; até as imagens do que restou do vale sem a mata atlântica, derrubada ou queimada e transformada em carvão; as ruínas das imensas mansões dos barões do café, agora vazias, sem móveis e até mesmo sem gente, sendo comidas por cupins, derrubadas pelas intempéries e pela absoluta falta de manutenção; além das enormes e indomáveis voçorocas em morros já sem solos, que desafiam as técnicas e ciências agronômicas, tudo é muito pungente. E, mais que tudo, entristece a sua extrema pobreza demonstrada, por exemplo, quando um neto do barão de Três Ilhas, embora habitando em uma das antigas mansões com ainda alguns objetos de arte, como um ridículo guarda chuva francês e um carcomido piano, é capturado pelas câmaras vendendo ovos de porta em porta por míseros 4 reais por dia. Ou outro habitante mostrando o local onde sua casa natalícia foi devorada pelos cupins e afiançando que suas vacas dão somente 2 litros de leite por dia cada uma e que tem uma renda mensal, com a venda do leite de apenas 80 reais.

Essa região manteve uma riqueza e um luxo indescritível a expensas das matas, dos solos e das águas. Irritante é que, apesar das sábias advertências feitas na época, a prosperidade durou somente 50 anos. Tudo agora é miserável. Pobre em solos, pobre em matas, terras secas submetidas ao impacto impiedoso do sol, pobre em dinheiro, pobre em gente, gente que até virou pobre de espírito. Muitos luminares previram o que aconteceria no Vale do Paraíba. O que aconteceu não foi por falta de conhecimento ou de advertências. A frase para mim mais impressionante que o documentário reproduz é a do então Ministro da Agricultura Domiciano Ribeiro “ …o dia de sua maior prosperidade é a véspera de sua decadência”, ou a de André Rebouças, que foi justamente o primeiro a propor Parques Nacionais no Brasil “ a terra está cansada” e a de Monteiro Lobato, que roubei para o título desta coluna “ tudo é pretérito, não há presente nem futuro”. Também nosso eterno José Bonifácio já clamava por “enérgicas medidas” de proteção de florestas, solos e demais recursos naturais. Levados pela cobiça desenfreada queimaram suas naves junto com suas florestas e eles e os demais pagaram muito caro por isso. Seus descendentes são miseráveis ou migraram a outro lugar. Ou, falando de outra forma, a sociedade do vale colapsou.

O espetáculo é tão triste que, felizmente, em um determinado momento do documentário, se mostra o pouco que sobrou do Parque Nacional do Itatiaia, o primeiro a ser estabelecido no país, refrescando um pouco, apenas um pouco, as mentes de quem o vê.

Muitos cidadãos pobres que hoje lá vivem lamentam o que seus antepassados fizeram e a herança de destruição que lhes foi presenteada. O próprio senhor Maurício, o nobre vendedor de ovos, neto do barão de Três Ilhas fez, no seu depoimento, a seguinte assertiva: “eles não imaginaram essa destruição”, como que com um perdão implícito pela ignorância ou avidez de seus antepassados. E conclui: “ eu não sei mais o que fazer…” e dá uma longa pausa até finalizar “apenas posso vender ovos”.

Talvez o que mais revolte, além da falta de cuidados nos plantios de café, ou cana e no manejo da agropecuária, tenha sido a exploração até de jequitibás para se fazer carvão vegetal. Mata Atlântica para carvão vegetal! E tudo acabou. A tal ponto que hoje os colonos usam bambu para cozinhar ou assar um bolo, como menciona um deles. O senhor Antônio, que hoje vive feliz em um bairro de Resende chamado Jardim Alegria, favela muito triste e feia por sinal, diz que ele fazia 100 sacos de carvão por mês, mais ou menos 50 árvores e tirava, segundo ele mesmo, um salário mínimo por mês. Termina seu depoimento com um ar de melancolia “Eu acho que a paisagem da mata é mais bonita que tudo acabado.”

O filme também termina tristemente mostrando em Marabá, no estado do Pará o começo do fim da mata amazônica, exatamente no mesmo processo destrutivo, que acabou com os recursos naturais do Vale do Paraíba. E para não deixar a gente acreditar que tudo pode ser diferente, arremata que a filmagem foi feita nos morros desérticos, desmatados e erodidos do Vale do Paraíba, na época das chuvas, quando “tudo está mais verde”. Tentem senhores, ver o verde. Não existe mais. E tudo isso basicamente em troca de 50 anos de riqueza e luxo para viscondes, barões e alguns asseclas do nosso querido Brasil.

Quero, enfim, agradecer a quem fez tão belo quanto melancólico retrato da morte da vida natural, dos solos e dos rios da região inserida entre as duas maiores capitais do Brasil e que abrange três estados: Rio, São Paulo e Minas Gerais; do descuido de poucos que acarretou o prejuízo a muitos, mas principalmente da percepção de quem lá hoje tenta viver da produção da terra, de quão importante é se conservar a natureza.

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