Às vezes tem-se a impressão de que a população atual da América Latina prefere a natureza virtual à natureza real. E abundam os indícios que reforçam essa impressão. Desde a obsessão da meninada pelas telas dos computadores, das quais dificilmente se separam para brincar na rua ou no parque, até o comportamento cada vez mais ridículo de inúmeras famílias em relação ao mundo rural e natural. Ao mesmo tempo, essas constatações são contraditórias ao fato, bem demonstrado, de que a população está hoje mais bem informada sobre a problemática ambiental que nunca antes na história, graças aos meios massivos de comunicação, em especial a televisão e aos programas de educação ambiental que proliferam em todos os países.
[…] para validar a informação ambiental proporcionada pela televisão é preciso complementá-la com educação ambiental formal de boa qualidade e, em especial, com o contato direto com a natureza, começando pela natureza local […].
Será possível que, ademais do fato de, na atualidade, a população ser eminentemente urbana, os muitos excelentes programas de televisão sobre a natureza e os bem intencionados programas de educação ambiental estejam afastando o povo da natureza no lugar de aproximá-lo dela? A pergunta é pertinente, pois esses meios em geral mostram uma natureza que, de fato, não é natureza já que vem enlatada numa tela de televisor e que só reflete as vivências de outras pessoas.
Com relação aos programas de televisão, deve-se começar por assinalar que todos exibem apenas uma fração da realidade. Faltam os cheiros, as intermináveis horas de viajem, as demoras, a poeira, o calor ou o frio insuportáveis, as picadas dos insetos, a chuva imprevista, o refrigerante quente, o suor, muito suor. A natureza que se exibe é sempre uma versão idealizada, quase perfeita, sem inconvenientes. De outra parte, se vê e se escuta o que o programa quer mostrar. E isso, por mais imparcial que o diretor da obra seja, sempre é o ponto de vista dele e da sua equipe. Finalmente, numa hora ou menos de apresentação, são exibidos densos conjuntos de informações quer seja muito geral, que inclui paisagens, plantas e animais, comportamento destes e outros fenômenos que requereriam anos e uma pequena fortuna para serem vistos por uma pessoa normal na natureza ou, pelo contrário, brindam-nos com informação muito aprofundada e detalhada sobre uma espécie só ou sobre um tema particular. Em qualquer dos casos e das suas versões intermediárias, a pessoa deve poder encaixar a informação num contexto oferecido pela educação ambiental que lhe foi proporcionada em aulas dos colégios ou da universidade e pelo contato direto com a natureza. Caso contrário, o encontro com a realidade pode se converter numa enorme frustração.
Mas, como conciliar horas de programas de televisão sobre a natureza e o fato de observar, dia a dia, famílias completas espantadas pela presença de morcegos ou sapos? Como ver o alarme desproporcionado das mães quando os filhos, ainda inadvertidos dos perigos do mundo, exibem com orgulho a captura de uma aranha ou um escorpião? Ou ver estradas desertas num domingo porque algum jornal local propalou que existe um “foco” de antavirose? São inúmeros os que nunca põem um pé no mato, preocupados por cobras inermes e por outros perigos imaginários, apesar de que residem em cidades onde o crime e os acidentes de trânsito matam sem piedade a toda hora. Na atualidade é difícil encontrar alguém que tenha dormido numa barraca ou sob as estrelas e menos ainda que esteja disposto a fazê-lo, inclusive onde nenhum risco de origem humana existe. Quando a família chega à porteira da Transpantaneira, no Pantanal, cheia de ilusões tele-transmitidas, e enfrenta a dura realidade, nem o machismo do pai consegue impedir o rápido refúgio numa pousada, onde a esposa e os meninos não saem mais até voltar para a casa. O grupo ficou frustrado, pois foi, sem sabê-lo, vítima de uma propaganda enganosa feita com boa fé. O Pantanal, apesar dos problemas mencionados, é tão prolífico em vida animal fácil de ser avistada que em geral os visitantes saem satisfeitos. Mas, na selva amazônica, onde apenas observadores muito espertos conseguem perceber a fauna, o problema é sério. Os programas na televisão omitem o fato de que para filmar um determinado bichinho passaram dias e dias à sua procura, apoiados pelos melhores conhecedores locais.
Assim, nem os melhores programas do Canal Discovery, da National Geographic Society e da BBC ou da Rede Globo podem substituir o contato direto com a natureza. Para compreender a natureza é necessário estar nela, para amá-la é preciso conhecê-la e sofrer nela, se necessário. Conhecer a natureza ao vivo é o que faz a diferença entre o impacto destes programas na América Latina e nos países desenvolvidos. Nestes últimos, os programas televisados que tratam da natureza apenas exemplificam ou ampliam conhecimentos que os jovens já receberam desde a sua educação inicial, no lar e na escola e que, especialmente em América do Norte, sempre foi complementada pelo contato direto com a natureza, objeto básico da atividade recreativa de seus cidadãos. Qualquer família americana, urbana ou rural, considera normal passar uma semana remando em canoas por rios e lagos; pescando ou caçando se gostam de isso; dormindo cada noite na beira do rio, em barracas e esquentado sua comida num fogão portátil. Eles não se sentem heróis por ter feito isso e apenas desejam recomeçar, em outro canto, nas próximas férias. Não sofrem um choque com a realidade em conseqüência de comparar a natureza virtual com a real, pois sempre conheceram a diferença.
É óbvio que a televisão não pode resolver essa falta de contato com a realidade. Então, para validar a informação ambiental proporcionada pela televisão é preciso complementá-la com educação ambiental formal de boa qualidade e, em especial, com o contato direto com a natureza, começando pela natureza local, essa que está frequentemente muito perto da escola ou no bairro e, se possível, pela visita a verdadeiras áreas naturais, como as unidades de conservação. Até a enorme cidade de São Paulo dispõe de unidades de conservação praticamente dentro do perímetro urbano. Porém, contrariamente, a educação ambiental está excessivamente baseada em exercícios teóricos e nos tão populares vídeos, no lugar de ser feita através de caminhadas na floresta ou de visitas de campo. Nenhum programa de educação ambiental deveria deixar de começar por explicar os princípios elementares da ecologia, em especial os que em termos simples se conhecem como a “luta pela vida”. Qualquer passeio na mata revela dezenas de exemplos da luta pela sobrevivência, entre as plantas e o solo, entre plantas, entre plantas e animais e, claro, entre animais. Um mestre avisado pode transformar um passeio de poucas horas numa lição extraordinariamente dinâmica, apenas ensinando os jovens a observar a natureza, as correlações entre os seres vivos e seu entorno. Projetos de educação ambiental deveriam ter como custo principal, recursos para visitas de campo.
De outra parte, na América Latina, a educação pública ambiental, tanto na televisão nacional como nos projetos de educação pública ou privada, está abusivamente orientada ao aproveitamento sustentável dos recursos naturais ou aos problemas de contaminação e, pelo contrário, muito pouco ao que deve ser o eixo da mesma, ou seja, conhecer a natureza da natureza. Temas relativamente colaterais, como as virtudes da reciclagem ou os cultivos orgânicos, são absurdamente freqüentes. Assim, a educação se perde no periférico, dando por resultado que a população tem uma sensibilidade ambiental distorcida, que não consegue vislumbrar nem participar da solução dos verdadeiros problemas nacionais, como é a expansão irrestrita da agricultura sobre as últimas florestas, a perda do potencial pesqueiro no mar e nos rios, a erosão dos solos ou a erosão da diversidade biológica. A educação ambiental ao invés de falar tanto dos cultivos orgânicos, deveria mostrar a trágica correlação entre estradas novas propugnadas pelos governos na Amazônia e a eliminação radical da natureza e dos últimos índios. No lugar de fazer acreditar que os criadouros de camarões, ostras e outros mariscos é a solução para o meio ambiente, deveriam falar mais da pesca abusiva e da destruição dos ecossistemas onde elas existiam antes e, também, dos riscos que esses criadouros acarretam para as populações naturais.
Em conclusão, é efetivamente possível que a tendência crescente da população da América Latina de se afastar da natureza, embora esteja mais bem informada sobre ela do que antes, seja em parte ainda devida ao tipo de programas ambientais propalados pela televisão e pela educação ambiental mais formal. Se não são complementados por uma maior aproximação à realidade e, no caso dos programas nacionais, também por uma melhor orientação, distorcem tanto a visão da natureza que, sem se propor a fazê-lo, criam frustrações irreversíveis no momento em que, finalmente, a gente tenta se acercar dela.
*Esse texto foi editado em 18/06/2024 para repaginação
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