O vermelho, neste caso, não faz referência à cor da estrela do PT que lidera a política do Estado do Acre. O vermelho aludido é o do fogo que, em forma inédita, está destruindo enormes extensões de florestas na região de confluência de três países amazônicos: Bolívia, Brasil e Peru, especialmente no Acre. O que é inédito é que, nesta oportunidade, se fala realmente de fogo na floresta e não, como é costume, do fogo que consome a madeira de áreas previamente derrubadas ou que pretendem renovar pastagens.
O tema do fogo no Brasil é, sem dúvida, muito reiterativo nesta época de cada ano. No caso do Acre, foi tratado extensamente em duas reportagens, “Um incêndio perfeito” e “Tem boi na linha”, nestas mesmas páginas poucos dias atrás. Ainda assim, mesmo com o risco de aborrecer os leitores, vou falar um pouco mais do assunto.
O público, assim como muitas pessoas que acham que sabem da Amazônia, leva décadas confundindo incêndio florestal com queimadas de resíduos de desmatamento, resíduos agrícolas ou renovação de pastagens. Diferentemente do que acontece no Cerrado ou nas florestas temperadas ou frias da Europa ou da América do Norte, as selvas amazônicas, não sofriam incêndios florestais. Quem escreve esta nota tem 50 anos de experiências contínuas na Amazônia. Não obstante, foi apenas na semana passada quando, pela primeira vez, observou pessoalmente fogo na floresta amazônica. Claro que se sabe bem que as chamas lambem o mato ao redor das queimadas nas áreas sujeitas à atividade agropecuária e que, obviamente isso não é bom. Repetido ano após ano, isso contribui a degradar uma área maior que a que estava sendo desmatada. Mas, na verdade, o problema era o desmatamento, não a queimada.
O que acontece agora é muito diferente. Os fogos, sempre iniciados nas chácaras ou pastagens, se expandem dentro da floresta e conseguem avançar, confirmadamente, até por dezenas de quilômetros, multiplicando por cem ou até por mil a superfície queimada. A melhor ilustração do que agora se constata na Amazônia e que é uma réplica do que todo brasileiro sabe, acontece no Cerrado. Mas, o que é diferente é que o Cerrado está há milênios submetido às queimadas e que, em conseqüência, sua vegetação está mais ou menos acostumada com o fogo e que muitas das suas espécies conseguem sobreviver. O que vai sobreviver após os fogos na Amazônia é uma gigantesca incógnita científica, mas se antecipa que será muito pouco.
O que está acontecendo no Acre e que é igualmente notório nos departamentos de Pando (Bolívia) e Madre de Dios (Peru) não é totalmente novo. O fato já tinha sido registrado alguns anos atrás, perto de Manaus e foi muito melhor documentado no caso mais recente dos desastrosos fogos que consumiram Roraima. O que se sabe, até agora è que a propagação de fogos da atividade agropecuária na mata é conseqüência direta de períodos extremamente secos, com menos chuva que o usual e com períodos sem chuva mais prolongados, quando a evapotranspiração supera longamente o abastecimento de água da vegetação. O último período extremamente seco, como o atual, no caso do Acre ocorreu no começo da década de 1960. Nesses casos o lençol freático desce muito mais que o habitual, até centenas de metros e bem longe do alcance das raízes; o ar fica mais seco, a temperatura é alta e, claro, isso exagera a queda de folhas que se acumulam, completamente secas, sobre o solo da floresta. Basta uma chispa para provocar uma calamidade.
O problema se complica pelo fato de que após a passagem do fogo no solo da floresta, passagem cuja velocidade e impacto dependem da velocidade do vento, as folhas das árvores maiores secam e caem abundantemente sobre o solo, renovando as condições ideais para uma segunda passagem de fogo. Se isso acontecer é seguro que praticamente nada sobreviverá. Os animais grandes da floresta amazônica, inclusive as aves, não têm nenhuma estratégia para fugir do fogo, pois nem o conhecem. No Cerrado, a imagem de uma suçuarana abraçada ao tronco duma árvore de uma residência do Lago Sul de Brasília, após a queimada da reserva natural do Jardim Botânico, ilustra como alguns conseguem fugir do fogo. Mas na Amazônia nenhum sobrevive. Os outros seres que conformam essa biodiversidade, tão defendida no papel, são irremediavelmente calcinados. Ninguém pode predizer, neste momento, o que acontecerá com a regeneração natural dessas florestas que, em condições normais, depende da oportunidade de crescer que é providenciada pela morte de uma ou outra árvore, criando uma clareira. Após o fogo, o solo e a floresta tropical ficam estéreis, pois as suas sementes não resistem ao fogo.
Quando teve uma seca equivalente à atual, no Acre e nas áreas vizinhas da Bolívia e do Peru não se produziram desastres pelo simples fato de que nos anos 1960 essa era uma região quase sem habitantes. Apenas uns poucos ribeirinhos e índios moravam lá e cidades hoje grandes como Rio Branco (Acre), Puerto Maldonado (Peru), ou Cobija (Bolívia) eram vilas acessíveis só por barco ou por avião. A agricultura estava limitada a chácaras para consumo familiar. Sem embargo, se suspeita que os numerosos e extensos bambuzais que existem na região possam ter sido gerados, em tempos remotos, por incêndios florestais quiçá provocados por raios ou pelos índios em condições climáticas favoráveis como as atuais.
Na viagem entre Brasília e Rio Branco, por feliz coincidência, sentou-se a meu lado o engenheiro florestal Jorge Viana, Governador do Acre. Ele trazia nas mãos o livro “Colapso” de Jared Diamond e, pela posição do marcador, já tinha lido quase um terço das páginas. Obviamente, o tema das queimadas na selva veio normalmente e ele relatou sua tristeza ao ver a magnitude do problema que, para ele também, é uma novidade. Comentou as medidas que vem tomando, inclusive o estabelecimento de um comitê científico independente para documentar e monitorar o problema, para informar à opinião pública e para fazer recomendações específicas sobre alternativas de prevenção e combate. Será necessário estabelecer parcelas experimentais, no terreno, para ver a evolução do problema, as espécies florestais e a porcentagem delas que sobreviverá e o tempo preciso para certo grau de regeneração. Assim mesmo deverá se revisar toda a estratégia de prevenção e combate, pois a nova realidade difere drasticamente da anterior e as táticas não podem ser as mesmas. Ele, claro, reconhece que a expansão da pecuária e do minifúndio rural, inclusive nas reservas extrativistas, é um gravíssimo complicador e explicou diversas ações que estão sendo tomadas. Nossa conversa foi interrompida pelo penetrante cheiro a presunto defumado que adentrou no avião durante a descida ao aeroporto de Rio Branco.
É muito provável que a seca excepcional na região esteja associada, numa medida ou outra, ao processo de mudança climática global, como é o caso de tantos outros fenômenos “naturais” recentes e que, o Acre, seja uma vítima a mais de um problema mundial. Mas, como naqueles casos, o estilo de desenvolvimento é o responsável primário dos fogos na floresta amazônica. Na realidade, nem se trata de que o estilo de desenvolvimento seja inadequado, pois no Acre, a proposta do grupo de Viana foi quase a melhor imaginável e desejável para a Amazônia. Trata-se enfim de anarquia, ou seja, de belas políticas e planos que ficam totalmente ou parcialmente no papel avassalados pelas políticas nacionais e pelo descaso, de leis que são utópicas e que por isso viram letra morta ou que são violentadas pela corrupção, de uma oposição tacanha para o bem-estar dos concidadãos e o futuro e, no final das contas, do predomínio de interesses particulares nacionais e regionais sobre os da maioria.
O autor tem sido testemunha da seriedade e da coragem com que o Governo atual do Acre tem abordado a tarefa de por em prática uma opção sensata de desenvolvimento sustentável. Sem dúvida, o esforço obteve resultados excepcionalmente bons, como fica demonstrado para quem vê o Estado como é agora, sabendo como era antes. Não obstante, como era previsível, levando em conta a modéstia e o isolamento do Estado, Jorge Viana e seus companheiros não venceram todas as batalhas nem, muito menos, a guerra.
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