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Gente e barragens

Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) é radical mas sua causa é mais que justa. Chama atenção para o grave problema social causado pelas hidrelétricas.

7 de dezembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Com monótona regularidade a imprensa informa de invasões nas instalações das usinas hidrelétricas ou de plantões nas suas portas e imediações. Os perturbadores da ordem são sempre membros do MAB. O MAB, neste caso, não é o internacionalmente famoso Man and Biosphere Program da Unesco, embora também vincule temas sociais com os ambientais. Trata-se do Movimento de Atingidos por Barragens, uma iniciativa bem brasileira, mas que começa a ter ecos internacionais.

O MAB Nacional nasceu em 1991 e dispõe já de um impressionante recorde de ações contra as empresas do setor energético que, segundo eles, não cumprem as leis nacionais, nem as normas dos organismos financiadores das usinas no que se refere às medidas decorrentes dos seus impactos sociais e ambientais.

A ação mais recente, em novembro, foi o acampamento de 600 pessoas por mais de duas semanas em frente à usina hidrelétrica de Manso, na Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso. A origem do conflito remonta há mais de 6 anos, quando Furnas, a empresa energética, admitiu a existência de umas 400 famílias afetadas pelas águas do lago artificial, enquanto o MAB insiste que, na verdade, os afetados eram cerca de mil famílias. O problema se complica porque, segundo o MAB, as terras outorgadas às famílias beneficiadas eram de qualidade inferior às originais, o que, sempre segundo eles, teria provocado evasão de mais de uma centena delas. Na verdade os números precisos não interessam. Esta oportunidade apenas serve para ilustrar um problema já clássico, que se repete em maior ou menor grau e com mais ou menos truculências, em todos os casos em que o MAB realiza as suas manifestações.

As empresas geradoras de energia, e pior ainda as que são privadas, procuram o lucro a todo custo. Contratam estudos sociais e ambientais, pois não têm alternativas, mas instruem os executores a poupar a empresa de custos elevados de qualquer maneira que pareça legal. Assim, por exemplo, é clássico que os estudos sociais só reconheçam direitos sobre a terra aos que dispõem de títulos ou equivalentes claramente compatíveis com as normas legais. Mas não reconhecem, por exemplo, posseiros, caseiros, peões e outros trabalhadores que com as suas famílias moram e comem da terra sem ser os donos dela. Tampouco reconhecem os coletores de madeira e outros produtos, os pescadores ou garimpeiros.

Deve-se lembrar que muitas barragens são construídas em regiões de extrema pobreza rural e de analfabetismo quase total. Assim, somando as contas dos empresários e as da população local, com ajuda do MAB, elas nunca coincidem. De outra parte, as empresas pagam indenização correspondente ou providenciam, como no caso, terra para as famílias deslocadas. No primeiro caso é freqüente que os assistentes sociais, escoltados pelos advogados, cheguem até a família e digam mais ou menos: “Aqui você tem vários milhares de reais para pagar sua terra e suas benfeitorias; se assina este documento você recebe o dinheiro e fica bem; se não assinar terá que ir a um processo jurídico e você receberá a mesma soma muito tempo depois, descontando os honorários de seu advogado”. O coitado, que jamais na sua vida teve tanto dinheiro, aceita de imediato. O problema é quando, estando na periferia da cidade próxima e sem emprego, o dinheiro acaba ou quando constata que com esse montante não dá para comprar nada como o que perdeu. Assim é que o MAB recruta a sua gente.

Luta justa

O MAB não está constituído só por santos. É evidente que também exagera e que inventa problemas que não existem na prática. Sem dúvida, incrementa as listas dos realmente danificados e usa, na sua luta, argumentos e táticas nem sempre éticos. De outra parte, a preocupação ambiental do MAB é puramente retórica. Trata-se de um movimento eminentemente social e, por isso, se dá tão bem com o MST, que muitas vezes o acompanha nas marchas de invasões e com intelectuais da esquerda radical. Mas, nada disso lhe tira o fato de que a essência da sua luta é muito justa. Quem, se não o MAB, diferentemente do MST que invade terras alheias, defende os pobres rurais desalojados das suas terras? Por isso tem sucesso e por isso tem quem o escute em muitas partes do mundo.

A primeira vez que eu pessoalmente entrei em contato com o MAB e seus dirigentes, foi na primeira das três ocupações relativamente violentas que fizeram ao escritório do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em Brasília. Esse Banco, através de uma de suas janelas para o setor privado, tinha aportado um financiamento importante a uma empresa belga, para uma hidrelétrica em Goiás. Tinha feito isso com um estudo expeditivo e meio secreto, por se tratar do setor privado. No processo, não levou em conta que comprou um enorme passivo ambiental que, na verdade, violentava as próprias regras da instituição. Os problemas eram essencialmente os mesmos mencionados para o caso recente do Manso.

Apesar de que a minha primeira reação foi muito negativa, tive, pouco a pouco, que me render ante as evidências de que a turma do MAB tinha razão nos seus protestos quiçá excessivamente veementes. Os funcionários locais do Banco, nos meses e anos seguintes, constaram envergonhados que as queixas eram essencialmente válidas e até desenvolveram simpatia pela causa do MAB. Mas a sede “washingtoniana”, muito longe da realidade, nunca aceitou completamente os fatos e até premiou os responsáveis pelo empréstimo por sua “eficiência e qualidade do trabalho”. Logo, claro, o Banco se arrependeu, mas já era tarde. Não sei qual é a situação daquele ou de outros empréstimos no setor privado para hidrelétricas no Brasil, embora seja pouco provável que tenha mudado muito.

Acontece que o problema das hidrelétricas já é mais que muito sério. São centenas de milhares os já afetados pelas barragens no Brasil e outras centenas de milhares serão afetados em futuro próximo, totalizando milhões de cidadãos na sua maioria muito pobres. O MAB, apesar das suas simpatias petistas, deveria se manifestar contra o programa energético ventilado pela ex-ministra de Minas e Energia, que só vai agravar a situação. Ao fato de que as audiências públicas geralmente servem para pouco, ou que sejam uma farsa, somam-se os estudos de impacto sócio-ambiental malfeitos, o processo de licenciamento lento e, de qualquer modo, a evidência de que suas recomendações não são cumpridas.

Em suma, a falta de revisão da política energética nacional leva diretamente a um desastre que, ainda que nesta ocasião se fale apenas de seus aspectos sociais, também é ambiental e, por isso mesmo, duplamente social. Assim, quando o MAB convocou uma primeira reunião internacional em 1997, teve a audiência de 20 países de todos os continentes e é possível que também por isso as Nações Unidas estabeleceram, no mesmo ano, a Comissão Mundial de Barragens.

O MAB e sua luta merecem ser reconhecidos e também merecem o respeito dos brasileiros. Eles mostram uma faceta pouco debatida das grandes obras que muitos consideram prioritárias, não obstante todo custo social ou ambiental.

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