Como o idioma português não é meu forte, desfruto da vantagem de não ter vergonha de visitar sistematicamente o “pai dos burros”. Assim descobri que a palavra oclocracia, que uma distinguida amiga letrada mencionou com relação à revolta dos bandidos em São Paulo, provinha do grego ochlokratía e significa “governo em que prepondera a plebe, a multidão ou em que o poder é por ela exercido”.
Ela recolheu uma definição ainda mais precisa: “o poder nas mãos dos assaltantes e assassinos”. Ante a dúvida de se existia confusão entre plebe ou multidão e criminosos, recorri à outra página do dicionário e fiquei perplexo, pois plebe, como eu supunha, faz referência não aos bandidos, mas simplesmente ao povo, por oposição ao patriciado ou aos nobres. Seria um erro da minha ilustrada amiga quem sabe dominada pelos seus preconceitos? Qual é, finalmente, a diferença entre oclocracia e democracia?
Por falta de mais dicionários em casa recorri a esse gigantesco dicionário virtual que chamam de internet e teclei a palavra “oclocracia” e em 0,4 segundos tive 11.200 referências à mesma. Descobri, então, que oclocracia é um termo muito usado e que, realmente, desde Aristóteles, se refere não ao governo do povo para o povo e sim ao governo imposto pela porção do povo, que o resto do povo considera à margem da sociedade e, por extensão, “ao abuso que se instala no poder”. A diferença, nem sempre evidente entre democracia e oclocracia é o significado de demo (povo, ou povo bom) e de ochlo ou oclo (povão, turba, multidão, gentalha, ou povo mau).
Vi então que meu caseiro, Diógenes, que apesar de seu helênico nome é um rústico baiano-goiano semi-analfabeto, tinha razão na sua interpretação dos violentos acontecimentos de São Paulo. Segundo ele, os bandidos comuns estão fartos de ficar nos presídios, serem humilhados e de ser continuamente transladados de um local para outro, quando os bandidos no governo, que roubam muito mais dinheiro e que matam direta e indiretamente muito mais que eles, continuam desfrutando de plena liberdade e de prebendas de toda classe, até depois de ser pública e inquestionavelmente demonstradas as suas culpas.
Mesmo bando
Diógenes dizia se tratar, sim, de uma revolta contra o governo corrupto e corruptor, ou seja, contra a oclocracia. Procurei explicar para ele que existe diferença entre os assassinos, estupradores, narcotraficantes e outros que estão presos e os bandidos de colarinho branco que estão soltos, mas ele foi inflexível e convincente. Lembrou-me dos mortos de Santo André e de outros casos e, finalmente, tive que concordar com ele que exceto na roupagem, todos são iguais. Todos são partes do mesmo bando que se apoderou do poder. Estamos em pleno regime oclocrático.
Foi após admitir o caráter oclocrático dominante que ficou mais clara a lógica dos ataques dos criminosos organizados contra a força armada de seus pares incrustados na cúpula oclocrática. Não foi um ato contra a sociedade em geral, mas uma luta entre facções rivais. Os sistemas judiciário e carcerário, que respectivamente só castigam e acolhem, até que muito bem, aos bandidos sem gravata, servem de fachada aos sempre engravatados oclócratas governantes que publicamente perseguem os que não fazem parte de seu próprio clã embora, em segredo, compartilhem informações, serviços e até utilidades.
No final, a diferença entre os oclócratas de acima e de abaixo é a gravata e o raramente merecido título de “doutor” e, às vezes, o de “professor”. Os telefones celulares que usam, como é bem conhecido, são de igual qualidade e de alcance mútuo. Os detalhes do traslado dos bandidos de São Paulo foram obtidos mediante telefone celular desde um dos centros do poder oclocrático do Estado e a trégua entre as facções foi obtida usando uma aeronave bem oclocrática, após diálogo construtivo entre as partes.
No meio está o povo, o verdadeiro povo, inclusive a maior parcela dos policias que estão perdidos, de uma parte entre os oclócratas de abaixo e os de acima e, de outra, com relação à população decente, sem saber a quem servir ou que fazer. A população, que até faz pouco tempo acreditou ter saído da ditadura para entrar numa democracia, começa a perceber que o sonho acabou antes de se iniciar, pois, entre ditadura militar e oclocracia, a escolha é infernalmente complexa.
A sociedade perdeu o controle do governo, que está essencialmente dominado por cúpulas de bandidos misturados a covardes que não enfrentam os seus colegas e que sob qualquer conceito ético, são cúmplices. Em resumo, a sociedade é a carne de canhão para os bandidos de colarinho branco que estão acima e para os bandidos de calção e camiseta que estão embaixo.
É evidente que essa situação vai ter que mudar, pois está já perto do limite do que é suportável, mas tudo indica que o povo terá que sofrer muito até sacudir a sua própria indolência. Com efeito, o próprio povo está confuso com as mensagens dos oclócratas e dos ativistas sociais que defendem a tese que a pobreza é a mãe da delinqüência.
Não se pode duvidar que a pobreza seja, por sua própria existência, prova de injustiça e que a falta de equidade e de oportunidade são geradoras de muitos problemas sociais graves, inclusive a delinqüência. Mesmo assim, não existe correlação clara entre pobreza e delinqüência. Basta lembrar que a grande maioria dos pobres não são bandidos e que os oclócratas de cima nem sequer foram pobres, ou não o são agora.
Também geram confusão os protetores dos direitos humanos que nunca perdem tempo em defender os privilégios dos bandidos argumentando que, se não são respeitados, toda a sociedade pode ser maltratada no futuro. O argumento é difícil de refutar porque é uma meia verdade. Não obstante, eles sistematicamente passam para trás os direitos humanos das vítimas que, para eles, não têm nenhum direito. As vítimas são culpadas por não estabelecer, com seus atos, a justiça social que falta. As mulheres, meninos e meninas que são diariamente estuprados e torturados são, para os defensores dos direitos humanos, culpáveis exclusivos dos danos que sofrem. A sociedade não precisa de defensores como eles!
Exemplo animal
O que acontece onde a oclocracia domina é bem conhecido da humanidade e também dos animais sociais. A oclocracia é o preâmbulo dos grandes câmbios, verdadeiramente catastróficos e revolucionários da história da humanidade, e também da história dos insetos sociais como as formigas e cupins. Nesses últimos, a oclocracia se instala também em grande medida pelo narcotráfico representado por espécies comensais que, após serem introduzidas no ninho, emitem odores narcotizantes que provocam o abandono do trabalho e o desrespeito à ordem estabelecida.
A oclocracia afeta os operários que devem fazer agricultura, as enfermeiras que devem cuidar da prole, os soldados que devem fazer a polícia e alcança até a rainha cuja função primordial é procriar. O caos se instala no ninho onde a maioria sofre dos desmandos dos de baixo, ex-operários e soldados, agora viciosos e corruptos, e dos de cima, neste caso a rainha e seu consorte, que deixam de fazer o que devem e fazem o que não devem.
Nesse momento acontece uma de duas possibilidades na forma da aparição de uma ou várias novas rainhas e reis dividindo a sociedade e provocando lutas fratricidas ou, deixando o ninho exposto aos inimigos externos que aproveitam da confusão para invadir o ninho e massacrar ou escravizar seus ocupantes. As grandes convulsões que precederam à queda dos impérios grego, romano, egípcio, inca ou do absolutismo europeu, entre tantas outras, podem igualmente se explicar com o prévio domínio da oclocracia, que é um sintoma do começo do fim. Fim que é igualmente um novo começo, embora seguramente muito doloroso.
É possível que o meu entendimento da oclocracia esteja influenciado pela minha visão entomológica e que a democracia possa voltar a conquistar seu lugar sem tanto sacrifício. Isso depende da profundidade da penetração da oclocracia no fundamento democrático que na aparência existe. O futuro dirá.
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