Os mísseis que atingiram o Líbano serviram de álibi para uma morte há muito anunciada. A prioridade para o enfrentamento da mudança climática, a garantia de energia limpa e o desenvolvimento sustentável virou fumaça. Definida em 2005, na reunião do G8 em Gleneagles, aprazível localidade na Escócia, e deveria ser objeto de avaliação e aprofundamento em São Petersburgo. Mas dela pouco se falou na cúpula do G8, que contou, também, com a presença de China, Índia, Brasil, México e África do Sul, como convidados.
Com certeza não será pequena a contribuição ao efeito estufa da fumaceira que consumiu a prioridade ambiental. Ela foi vitimada por uma aliança estratégica entre o EUA, que nega a mudança climática, e a Rússia, que vive de petróleo e gás. A fumaça de São Petersburgo foi rápida como a queimada de um canavial, mas seus efeitos podem ser duradouros e trágicos. Afinal, sem o comprometimento dos maiores emissores de gases estufa – aí incluídos os convidados presentes, além do G8, Brasil, China e Índia, também grandes emissores – só dá para apostar que as emissões continuarão descontroladas.
O motivo principal do assassinato conjunto dos compromissos com a prevenção do aquecimento global foi dado pela crise do mercado de energia e pelos riscos crescentes de disrupção do suprimento com o aumento das tensões no Oriente Médio. Antes mesmo do ataque de Israel ao Líbano, as tensões crescentes entre o EUA e o Irã já haviam elevado o risco político no mercado de óleo. Também não é desprezível o risco provocado pelo aumento das tensões internas na Arábia Saudita, onde a família Saud vive em palpos de aranha com a maioria islâmica fundamentalista.
O ataque israelense foi só o ponto final. Não bastasse a obsessão de Bush pela jihad, a reinserção do Líbano no teatro de conflitos do Oriente Médio altera, também, a geopolítica dos países europeus do G8, principalmente França e Inglaterra. A reunião virou predominantemente uma discussão de segurança nacional e segurança global. De quebra, Bush e Putin conseguiram descartar a prioridade ambiental e substituí-la pelo moto do presidente estadunidense da segurança energética. O cara só pensa em segurança, como todos sabemos.
Palavra de presidente
No “Sumário do presidente”, no caso Vladimir Putin, o anfitrião, diz que “discutimos os desafios da segurança global de energia e estabelecemos os objetivos comuns de assegurar suprimentos de energia suficientes, confiáveis e ambientalmente responsáveis a preços que reflitam os fundamentos do mercado”. Uma referência simbólica à responsabilidade ambiental, na verdade. Em seguida, afirma o sumário presidencial, “concordamos que o desenvolvimento dinâmico e sustentável de nossa civilização depende do acesso confiável à energia”.
A maior parte da síntese do comunicado feita pela assessoria de Putin se refere à redução de barreiras nos mercados de energia. Em duas frases, ele encerra as relações entre São Petersburgo e Gleneagles. A primeira diz que “energia economizada é energia produzida. Portanto, adotamos uma abordagem abrangente para a economia e a eficiência energéticas”. Não é diretamente um compromisso com a redução das emissões de gases estufa, mas pelo menos é uma preocupação com o consumo excessivo ou perdulário de energia. Ajuda. A segunda diz “reafirmamos nosso compromisso de alcançar as metas para redução dos gases estufa e lidar com a mudança climática, incluindo a promoção de um diálogo inclusivo sobre ação adicional no futuro”. Pobre planeta.
O relato do Departamento de Estado do governo do Estados Unidos, enfatizou o fato de “os líderes dos países mais industrializados mais Rússia” (sic) terem endossado a tese de “mercados de energia transparentes, eficientes e competitivos como a melhor via para aumentar a segurança energética global”. Deu destaque, também, ao fato de essas lideranças terem “reconhecido que às vezes adotam diferentes perspectivas para enfrentar o desafio da energia sem causar danos ao meio ambiente”.
Palavra oficial
No comunicado oficial, os líderes do G8 apóiam o Tratado de Energia, a Convenção do Clima e o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática(IPCC), mas não fazem referência ao Protocolo de Kyoto, a não ser para isentar o EUA por recusar-se a assiná-lo, dizendo que “aqueles de nós comprometidos com o sucesso do Protocolo de Kyoto enfatizamos a importância que lhe conferimos, vemos o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo e o Mecanismo de Implementação Conjunta, como seus elementos centrais e desejamos desenvolvê-los mais”. Os signatários do Protocolo dizem, também, no comunicado conjunto, que “reconhecem o papel de seus mecanismos de flexibilidade na promoção da eficiência energética. É importante engajar o setor privado e outros diretamente envolvidos na busca dessas metas”.
Em outro ponto, o comunicado se refere ao manejo florestal, dizendo que “promoveremos cooperação internacional na área de gestão florestal, primeiramente com o foco no desflorestamento, na degradação das florestas, no comércio ilegal de madeiras e nas queimadas ilegais. Notamos que o desmatamento tem um impacto significativo na mudança climática, (resultando, de fato, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentos (FAO), em um incremento anual de 25% nas emissões de gases estufa). Nós reafirmamos a importância de enfrentar o corte ilegal de árvores e concordamos em adotar medidas adicionais, com cada país adotando as medidas com as quais possam contribuir mais efetivamente. Isso deve incluir a promoção do manejo sustentável de florestas e a introdução nas políticas nacionais relevantes de medidas apropriadas para lidar com o corte ilegal madeira de países tanto produtores, quanto consumidores”. Quer dizer, quem quiser pode tornar ilegal a compra de madeira não certificada em seus países.
O comunicado não chega a romper com Gleneagles, ao contrário diz que os líderes reafirmam a “intenção de concretizar os compromissos assumidos em Gleneagles para alcançar nossos objetivos múltiplos e compartilhados de reduzir as emissões de gases estufa, melhorando o ambiente global, aumentando a segurança energética e reduzindo a poluição do ar em conjunto com nosso esforço vigoroso para reduzir a pobreza. Nós também reafirmamos nosso compromisso com o objetivo final da Convenção do Clima de estabilizar as concentrações de gases estufa na atmosfera em um nível que evite a interferência antropogênica perigosa com o sistema climático. Nós continuaremos a trabalhar para reduzir os gases estufa e lidar efetivamente com o desafio da mudança climática”.
Noves fora nada
Quer dizer, para quem conhece linguagem diplomática, nada. Um ano depois de Gleneagles, reafirmam as mesmas intenções, no mesmo patamar de impasse. Não anunciaram uma única nova medida. Não avançaram um milímetro em direção a um sistema de governança global que funcione, seja efetivo e signifique a aceitação real das metas de redução dos gases estufa. Se aconteceu alguma coisa em São Petersburgo, foi um retrocesso. Tipo, nos reunimos aqui, para dizer que não esquecemos o que havíamos combinado ano passado, nada fizemos, mas juramos que um dia faremos. Achamos o máximo tudo que se anda fazendo, escrevendo e dizendo, em todos os fóruns internacionais sobre mudança climática, efeito estufa, sustentabilidade global, continuem assim, ano que vem a gente se fala de novo.
Avanço, mesmo, só houve nas conversas bilaterais, o xodó diplomático de Bush, a maioria sobre questões de segurança. Inglaterra e Alemanha discutiram energia nuclear. A Alemanha está deixando seu programa nuclear, que espera estar desativado até 2020. A Inglaterra, que enfrenta a exaustão do petróleo e do gás do mar do Norte e de suas minas de carvão, as fontes mais sujas de energia, aposta na energia nuclear como uma das principais alternativas que não emitem gases estufa. No comunicado, entrou a afirmação, defendida pela Inglaterra, de que “aqueles entre nós que têm planos de adotar ou estão considerando a hipótese se desenvolver no futuro energia nuclear segura acreditam que seu desenvolvimento contribuirá para a segurança energética global, ao mesmo tempo reduzindo a poluição danosa do ar e enfrentando o desafio da mudança climática”. A Alemanha fez questão de que entrasse no comunicado oficial uma frase adicional de precaução no uso da energia nuclear. Ganhou. O comunicado diz que: “nós assumimos o compromisso de reduzir ainda mais os riscos associados ao uso seguro da energia nuclear”.
Vitória de Bush, derrota de Blair
Foi, novamente, uma vitória para Bush. O som dos bombardeios abafou as poucas e veladas pressões para que aderisse, se não ao Protocolo de Kyoto, pelo menos ao compromisso de desenhar um mecanismo mais eficiente e permanente para o pós-Kyoto, que está logo ali, em 2012.
Foi uma clara derrota para Tony Blair, que queria fazer da reunião de São Petersburgo ponto de virada no jogo contra o aquecimento global. Ele havia planejado convencer os demais países a admitir que a busca da segurança energética deveria estar subordinada à segurança ambiental e à redução das emissões de gases estufa. Imaginava um encontro bilateral com Bush para tentar persuadí-lo a cooperar por um acordo pós-Kyoto. De quebra, queria propor a entrada para o G-8 de Brasil, China, Índia, México e África do Sul, o que, segundo ele, facilitaria um acordo na rodada de Doha da OMC e na política do clima. Deu tudo errado. No comunicado, a segurança energética subordina a segurança ambiental. No encontro com Bush, só discutiram Oriente Médio. Sua proposta de ampliação do G8 para o G13, nem chegou a ser mencionada.
Pior, no documento final, os líderes, Blair incluso, dizem que “apesar do papel das fontes alternativas na matriz energética, a expectativa é de que os hidrocarbonetos continuem a ter um papel no consumo total de energia por boa parte deste século. Portanto, trabalharemos com o setor privado para acelerar a utilização de tecnologias inovadoras que aumentem mais a eficiência da produção de hidrocarbonetos e reduzam o impacto ambiental de sua produção e uso. Isso inclui tecnologias para exploração de petróleo e gás em mares profundos, produção de óleo de xisto, tecnologias de carvão limpo, incluindo a captura e a estocagem de carbono”. Putin e a Gazprom, Lula e a Petrobrás agradecem penhorados.
Allons, enfants
O único consolo de Blair foi a atitude afirmativa do presidente francês, Jacques Chirac, que saiu em socorro do primeiro-ministro inglês contra a aliança russo-americana. O presidente francês saiu para São Petersburgo com o dever de casa feito e antecipando o que diria na reunião de cúpula. Ele tinha quatro objetivos a apresentar para a parceria dos grandes, dos quais o primeiro era “refocalizar os países ricos e os emergentes no imperativo de enfrentar o aquecimento global”. Os outros tinham a ver com combate à pobreza e às pandemias, recuperação da África e luta contra o terrorismo e a proliferação de armas de destruição em massa.
Chirac disse e repetiu que a “energia não podia se transformar numa arma política, não pode se transformar em um instrumento político”. “Nesta fase de rápido desenvolvimento econômico”, alertou, “devemos lidar com ela em um marco de parceria global pelo desenvolvimento sustentável. Se continuarmos no curso presente, o consumo crescente de combustíveis fósseis será desastroso para o ambiente e o clima”. Chirac ensinou, também, que “não resolveremos o problema do aquecimento global, cada um por sí, ou aumentando o número de soluções unilaterais ou parciais. Estou preocupado com o enfraquecimento do regime internacional para a mudança climática. Precisamos reverter essa tendência. Desafios globais requerem respostas globais”. E concluiu dizendo que “a crise ecológica atual demanda respostas globais efetivas e coordenadas. Convoco minhas contrapartes do G8 a se comprometerem com o rápido estabelecimento de uma Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente”.
O presidente francês tocou em um ponto de grande importância. A Convenção do Clima não criou um marco para a governança global do clima. Nem, há, hoje, um marco para a governança global do meio ambiente. Na verdade, estamos mergulhados numa grande desordem global, com uma multiplicidade de convenções, tratados, acordos, protocolos, parciais e temáticos, que geram uma grande quantidade de estudos, comunicados, viagens internacionais e falação, mas não levam a ações concretas. Servem como álibis para o fracasso e alimentam o cenário “mais do mesmo”, que já sabemos antevê uma tragédia climática. A reunião de São Petersburgo contratou mais do mesmo, nem mais, nem menos.
O que o clima está precisando é de um mecanismo efetivo de resolução de conflitos e de governança. O problema é que governança se estabelece por meio de um contrato entre as partes. Governança global requer um acordo global ou, pelo menos, um acordo entre as partes mais fortes. Nesse sentido, Blair tem razão. Qualquer mecanismo de governança do clima tem que incluir China, Índia e Brasil, que fingem que não é com eles, mas é. Sem eles, nenhum acordo sobre o clima terá resultados suficientes. Com eles, somados ao G8, estamos falando da maior parte do problema. O desafio é fazê-los se entender. Para isso, só há um caminho: a pressão ativa dos eleitores de cada um deles. Na China, onde não há eleitores, o problema é virar a cabeça do Comitê Central. A tragédia chinesa, que já é visível, talvez faça isso. Na Rússia, onde os eleitores nunca contaram muito, o jeito é negociar com o Czar.
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