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De bois e boiadas

Os Estados Unidos ameaçam atrapalhar a importação do aço brasileiro porque o processo envolve trabalho forçado. Mas o fato de se obter o produto com carvão ilegal, tudo bem.

1 de dezembro de 2006 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Deputados democratas dos Estados Unidos se comprometem a lutar contra as importações de aço do Brasil. Usam uma lei da década de 30, que proíbe a compra de produtos obtidos por trabalho forçado. Dizem que há evidência na cadeia produtiva da siderurgia brasileira de que se explora o trabalho escravo na produção de carvão, que é ilegal, também, porque é produzido com desmatamento. Protecionismo puro, muitos começam a dizer. E tem, mesmo, jeito de protecionismo, embora usando como artifício más práticas realmente existentes no meio empresarial brasileiro.

A OIT (Organização Internacional do Trabalho) afirma que a siderurgia brasileira está fazendo um esforço sério para erradicar o trabalho escravo na sua cadeia de valor. Acredito. Mas fatos concretos nas regiões do cerrado mineiro, que abastecem as usinas de ferro gusa de Sete Lagoas e outras paragens gerais e de Carajás, no Pará, que abastece as siderúrgicas objeto da ação no EUA, mostram que ainda estão longe desse objetivo.

Nem a OIT, nem a ONG Carvão Cidadão, olham para o crime conexo, mencionado pelos deputados, de desmatamento ilegal na produção do carvão vegetal, como contou Míriam Leitão em coluna recente em O Globo. Com relação à OIT até entendo, por se tratar de uma agência internacional com missão específica na área trabalhista. Mas não consigo entender que uma ONG chamada Carvão Cidadão, tenha definição estreita desse atributo, a cidadania, tão abusado em nosso país. Um carvão produzido sem trabalho escravo, ou infantil, mas que usa madeira de desmatamento ilegal, seja do cerrado, seja da Mata Atlântica, seja da Amazônia, não pode ser considerado “cidadão”. Não pode haver esse tipo de complacência com a ilegalidade. Nenhum produto obtido com qualquer tipo de ilegalidade pode ser chamado “cidadão”.

Além disso, me reservo o direito a certo ceticismo no tema. Os fornos clandestinos de carvão vegetal, como se sabe, têm boca estreita e é por isso que usam jovens e crianças neles, causando danos irreparáveis à sua saúde e emasculando seus direitos civis. Acho a conexão entre formas inaceitáveis de trabalho e produção clandestina de carvão vegetal, por desmatamento ilegal, dificilmente erradicável. Sociologicamente eu diria que essa clandestinidade quase obriga a um tipo de exploração do trabalho que será sempre aviltante ou danosa.

Anteriormente, por iniciativa do Greenpeace, a MacDonald’s patrocinou um acordo pelo qual não comprará soja que se origine de fazendas que desmataram recentemente ou usam trabalho escravo. Tem pouca abrangência, mas serve como sinal de

que provavelmente esse tipo de sanção do mercado se ampliará, por força da pressão de consumidores. Aliança entre protecionistas e forças interessadas em internacionalizar a Amazônia, reclamaram alguns. Nesse caso, o protecionismo entra de carona, porque para a MacDonald’s, não comprar soja brasileira, significa pagar um sobrepreço que afeta suas vendas ao consumidor final. Ela prefere que a soja brasileira se limpe, a retirá-la de sua cesta de consumo. A suspeita de internacionalização da Amazônia não tem sido mais que álibi para sua destruição doméstica.

A conexão entre desmatamento e trabalho escravo salta aos olhos. Segundo a OIT, a maioria dos flagrantes de trabalho degradante, no Brasil, ocorre na pecuária. A pecuária, como se sabe é uma das forças destrutivas mais atuantes na Amazônia brasileira. Outras atividades autuadas são a produção de soja, algodão e álcool. Na soja, há várias fazendas na lista suja do Ministério do Trabalho.

No caso do álcool, a conexão não é com desmatamento, ele tem se expandido predominantemente em áreas ocupadas por outras culturas no passado. O problema ambiental conexo ao trabalho degradante é a queimada. Tanto no álcool, quanto no carvão, a exposição à fumaça, às cinzas, ao material particulado é muito danoso à saúde. Na produção de álcool, já há evidência científica da presença de elementos cancerígenos na urina de trabalhadores que fazem a colheita de cana preparada com queimadas. Tem havido flagrantes de trabalho escravo na cadeia produtiva do álcool não apenas nas regiões de fronteira, onde o poder público é ausente, omisso ou conivente, mas em São Paulo, onde a civilização presumivelmente teria chegado há bastante tempo.

Houve avanço importante no front da guerra contra o trabalho escravo. Há forças do bem empenhadas nessa luta, como a OIT, a ONG Repórter Brasil, o Instituto Ethos, que integram as ações em torno do pacto contra o trabalho escravo. Agora mesmo, houve mais progresso, desta vez no Judiciário, com a decisão pelo Supremo Tribunal Federal de considerar crimes relacionados ao trabalho escravo de alçada da Justiça Federal.

Mas não tem havido avanço comparável no front contra o desmatamento. Ele continua prática sistemática na produção de carvão vegetal ilegal e no avanço da soja e da pecuária pela via da grilagem de matas. Apesar dos esforços de ONGs como o IMAZON, o Greenpeace, o ISA e do empenho sincero do Ministério do Meio Ambiente, os maiores ganhos recentes tendem a ser efêmeros, provavelmente associados à retração da soja e do mercado de carne. O câmbio valorizado e a queda de preços de commodities têm sido mais eficazes do que a repressão pelas autoridades ambientais e policiais, estaduais e federais.

O Instituto Ethos está definindo a sustentabilidade como o foco de sua ação em busca de responsabilidade corporativa. É um bom sinal. Estamos precisando de lideranças no campo empresarial que saiam do conforto do “eu estou fazendo a minha parte na minha empresa” e se unam numa ação de pressão e constrangimento a seus pares que não estão fazendo a parte deles. Mas, mais importante, é que se caminhe na direção de um pacto contra o desmatamento, associado ao pacto contra o trabalho escravo, e outras iniciativas que levem não ao diálogo complacente e amigável com a ilegalidade, mas ao rompimento de relações na cadeia produtiva, isolando as empresas e os empresários social e ambientalmente criminosos, do convívio com as boas empresas.

Porque não dá para enganar: empresa legal que compra matéria-prima, insumos, embalagens, materiais ou qualquer outro produto obtido com trabalho escravo, desmatamento ou outras práticas ilegais de igual gravidade está “lavando” essa ilegalidade, legalizando o ilegal, tolerando o intolerável. Isso é mais do que complacência, é conivência. Uma conivência nascida da convivência corporativa, na relação comercial entre empresas, e empresarial, nas associações, sindicatos, federações e outras entidades do empresariado. Já que estamos falando, entre outras coisas, em pecuária, é preciso dar o nome aos bois e às boiadas.

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