É impressionante o número de pessoas, de várias gerações, que se manifestou nos últimos dias sobre a morte de Arthur C. Clarke. Desde os seus contemporâneos vivos, a bloggers recém-saídos da adolescência, passando por todas as faixas no entremeio, todos tinham razões fortes para celebrar a existência do escritor, que ficou famoso por seu “2001: Uma Odisséia no Espaço”. Sua obra vai muito além, uma contribuição à ciência, à tecnologia e ao pensamento aberto, prospectivo, que se equipara à de poucas figuras do século XX.
Eu devo a Arthur C. Clarke dois momentos marcantes em minha formação intelectual e vida profissional. O primeiro, foi ler seus livros, com eles, perdi o medo da ciência. A ciência, em Clarke exercia tal fascínio, que atraía, mesmo aqueles que, como eu, a rejeitavam como caminho profissional. Quando li os livros de Clarke, eu preferia a “hard science fiction”, baseada em alta especulação científica e tecnológica, que desafiava minha formação predominantemente humanista. Ainda não havia escolhido a ciência social como caminho. A ficção de Arthur C. Clarke me ensinou a importância da ciência e a possibilidade de dominar seus conceitos, além de me proporcionar horas de prazer, suspense e reflexão.
Recentemente li em um blog de jovens aficionados por livros de divulgação científica, um post sobre Clarke, em que o rapaz dizia que nunca havia sido capaz de entender os fins de seus livros. É que seus finais, ao contrário de seus enredos, não eram científicos, eram metafísicos, abertos, nunca pontos finais. Eram finalizações para se pensar além e essa era a característica que mais me atraía em sua literatura e o colocava alguns pontos acima de Isaac Asimov, outra de minhas paixões literárias no campo da ficção científica daquela fase da juventude.
O filme “2001: Uma Odisséia no Espaço”, dirigido por Stanley Kubrick, foi um marco, um choque e uma revelação. O enredo, baseado em um conto de Clarke, foi criado de forma cooperativa pelos dois. Uma experiência tão significativa para o escritor, que ele escreveu um saborosíssimo diário da cooperação o diretor em busca do enredo. Foi a primeira vez que a “história de longo prazo” era apresentada ao grande público. E, esta, ia além da história e até mesmo além do futuro. O filme, como todos devem se lembrar, começa na pré-história, ao som de “Assim Falava Zaratrusta”, de Richard Strauss. Ele se passa no futuro próximo, 33 anos adiante – é de 1968 – mas, ao final, nos lança no futuro indeterminado. “2001” expressa visualmente o visionarismo de Clarke, presente em quase todos os seus livros. Toda a idéia da viagem espacial, da inteligência artificial desorientada, eram sonho, temor e desafio. Por causa do filme e dos livros de Clarke, milhares de jovens se dedicaram, no mundo todo, ao estudo da ciência, em particular das ciências espaciais, e da informática.
Nessa época, eu estagiava no Estado de São Paulo, em Brasília, escrevi uma resenha do filme, mas não foi aceita para publicação. Não devia ser boa. Durante meses transformei a resenha em um ensaio, que se perdeu numa enchente que inundou a sala onde eu mantinha meu material de trabalho, no subsolo do Instituto Central de Ciências da UnB, o Minhocão, poucos anos depois. Também não devia ser grande coisa. Eram flagrantes do impacto do filme e do humanismo cientificista, visionário e futurista de Clarke na minha mente incendiada pelo mergulho do Brasil na ditadura, pelas mudanças no mundo e na própria trajetória de um jovem entrando na vida acadêmica.
Por causa desse gosto pela leitura de ficção científica, que se misturava às leituras de ficção, poesia, história, política, economia e filosofia, cheguei à Universidade de Cornell para fazer meu doutorado. Era ainda leitor voraz de ficção científica. Continuava fascinado pela “hard science fiction” e era fiel leitor de Arthur C. Clarke. A causa principal dessa fidelidade era o próprio Clarke, que surpreendia e desafiava fascinado a cada nova leitura, ou a cada vez que relia alguma de suas histórias. Por causa do interesse que despertou em mim pela ciência, aceitei com entusiasmo o convite de Gláucio Soares, meu orientador no mestrado na UnB, então em Cornell, e outro aficionado pela hard science fiction, para conhecer pessoalmente Carl Sagan. Devo a Clarke – e a Gláucio – esse encontro com o astrônomo, também humanista, também visionário, propagador da ciência – sua série para TV, Cosmos, foi um grande sucesso e influenciou muitos jovens a adotarem a carreira científica. Foi, certamente, um dos momentos marcantes de minha estada em Cornell, embora sendo um doutorando em Ciência Política. Do contato, passei a leitor de seus livros, e Carl Sagan se tornou uma referência importante de minha vida profissional. Juntou-se a Clarke, no escaninho de minhas referências científicas.
Os dois, Sagan e Clarke, tinham muito em comum, a mais óbvia comunalidade era a paixão pelo espaço e pelas viagens a Marte, mas, na minha avaliação, a mais importante foi o fato de que ambos levaram legiões de jovens para o estudo da ciência.
Sagan morreu em 1996, de pneumonia, após mais um transplante de medula, para enfrentar a mielodisplasia, também conhecida como síndrome de pré-leucemia. Durante o longo tratamento, ele se incomodava com o fato de estar tendo tratamento sofisticado, de ponta, com elevado conteúdo científico, só porque era famoso. Várias vezes lamentou o fato desse tipo de tratamento não poder ser dispensado a todos, especialmente a milhares de crianças que precisavam dele. Usualmente, quando dizia isso para os médicos e cientistas que o tratavam, muitos bem mais jovens que ele, eles comentavam que estavam ali porque Sagan os havia inspirado a entrar na carreira científica.
Sagan e Clarke acreditavam em vida extra-terrestre inteligente e a única coisa que não se pode dizer deles é que fossem dois idiotas. Pouco antes de morrer, Sagan, um dos patronos do programa SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence) disse que o “significado da evidência de que outros seres dividem conosco o universo seria absolutamente fenomenal e um evento transformador na história humana”. Clarke, pouco antes de morrer, em dezembro do ano passado, ao fazer 90 anos, gravou um vídeo, no qual deixou registrado seus três desejos naquele momento da vida que, visivelmente, ele considerava como seus últimos momentos na terra. O primeiro deles, era ver alguma evidência de vida extra-terrestre, na existência da qual sempre acreditou.
Essa é uma questão controversa, que se interpõe entre a ciência e a fé. Mas aqueles que realmente acreditam na existência de inteligência ET e baseiam essa convicção em princípios científicos, exercitam uma forma de pensar rara, em declínio, e essencial para a humanidade, que terá que enfrentar, nas próximas poucas décadas, o desafio da mudança climática: o pensar muito longo, sem limites de tempo ou espaço, sem preconceitos, para que se possa ter uma visão estratégica de tão longo prazo quanto é esse desafio.
Arthur C. Clarke criou três leis famosas, em um ensaio sobre “Os Riscos da Profecia: O Fracasso da Imaginação”. A “Segunda Lei” é a seguinte: “a única maneira de descobrir os limites do possível é se aventurar um pouco além deles, rumo ao impossível”.
A “Primeira Lei” de Clarke se aplica como uma luva aos – poucos – cientistas notáveis de mais idade que negam a mudança climática resultante da ação humana e dá razão aos – muitos – cientistas notáveis, da mesma idade, que nos alertam sobre os perigos dela. Diz assim: “quando um notável cientista idoso diz que alguma coisa é possível, é quase certo que ele esteja correto. Quando um notável cientista idoso diz que algo é impossível, é muito provável que esteja errado”.
As vidas de Clarke e Sagan se cruzaram mais de uma vez e em muitos mais modos do que se poderia supor. Um livro de Clarke, “Interplanetary Flight” foi, segundo o próprio Sagan, “a turning point in my scientific development and I would like to take this opportunity to thank Arthur publicly for this splendid book”. Um “livro modesto, brilhantemente escrito” pode ser um marco determinante em nossas vidas. Quem lê, sabe disso. Para Sagan, esse livro de explicação científica foi um ponto de ruptura, de decisão, que o levou a uma brilhante carreira científica na astronomia. Sagan faria com muitos outros o que Clarke fez com ele e tantos outros. Para ele, vivemos um paradoxo que pode levar ao desastre: criamos uma sociedade baseada na ciência e na tecnologia, mas não cuidamos de criar as condições para que as pessoas entendam a ciência e a tecnologia.
Quem melhor para avaliar o legado de Arthur C. Clarke, do que Carl Sagan? No artigo, “In Praise of Arthur C. Clarke”, onde conta seu primeiro encontro com o escritor, por meio de um livro, publicado no “Planetary Report”, da Planetary Society, em maio/junho de 1983, republicado aqui, ele diz o seguinte: “eu posso ter ajudado um pouco ao Arthur, ao longo dos anos, por exemplo, com o final do filme “2001”; e com idéias para estórias como “Um Encontro com a Medusa”. Mas o que Arthur fez por mim é imensamente maior. Por meio de seus livros de não-ficção, e de seus contos e romances de ficção científica, sua invenção do satélite de comunicação, sua defesa da razão contra os clamores da superstição, seu trabalho de aprimoramento da Sociedade Interplanetária Britânica, e de seu filme clássico, Arthur prestou um enorme serviço global, preparando o clima para uma séria presença além da Terra”.
Em seu “Adeus de Colombo”, Arthur C. Clarke diz muitas coisas importantes, em pouco tempo. Ele não tinha muito tempo e sabia disso. Era dezembro, fazia 90 anos, ou “90 órbitas”, e estava “lutando para sobreviver a 15 horas de sono por dia”, como diz no vídeo. Ele fala dos avanços espetaculares por que o mundo passou no período de sua vida, “umas poucas décadas”, e fala dos avanços pelos quais a humanidade ainda passará. “Eu agora passo uma boa parte do meu dia sonhando sobre os tempos passados, presentes e futuros” diz. “Eu fui muito feliz em ver vários sonhos se realizarem”. E ainda se deu ao luxo de três desejos. De um deles já falei. Os outros dois revelam bem o humanismo, o otimismo e a atualidade de Clarke. Seu segundo desejo era que gostaria de ver a humanidade abandonando o vício dos combustíveis fósseis e adotando energias limpas; o terceiro, paz em Sri Lanka, onde escolheu viver os seus últimos 50 anos.
Quem estiver ainda em dúvida sobre o que isso tudo tem a ver com meio ambiente, direi apenas que sem ciência, tecnologia, humanismo, otimismo, e visão de muito longo prazo, sem visionários, não haverá muito o que possamos fazer para evitar os maiores males que se apresentam à nossa frente nesse Século XXI. Nossos desafios serão todos físicos, sua compreensão e equação dependem da ciência e da tecnologia e as soluções dependerão de escolhas políticas bem informadas e baseadas e valores que Clarke e Sagan defendiam.
Sagan, que acreditava ser válida a “Equação de Drake”, que demonstrava a enorme probabilidade de vida inteligente extra-terrestre, explicava o “Paradoxo de Fermi”, sobre a falta de evidência de algo tão provável, com a hipótese de que as civilizações de alta tecnologia se destroem muito rapidamente. Dedicou-se a descobrir explicações para essa tendência à autodestruição, que permitissem evitar que o mesmo ocorra com a humanidade. Clarke, em seu vídeo-testamento, diz que “espera que tenhamos aprendido alguma coisa sobre o século mais bárbaro de nossa história – o 20. Eu gostaria de nos ver superando nossas divisões tribais e começar a pensar claramente como se fôssemos uma família. Essa seria a verdadeira globalização…”
Clarke optou pela poesia para terminar seu vídeo-testamento, da maneira como terminava seus livros e terminou 2001. Para responder à pergunta sobre como gostaria de ser lembrado, disse que teve uma carreira variada, mas gostaria mesmo de ser lembrado como escritor. E para mostrar como, recorreu a um poema de Rudyard Kipling desejando que:
“(…) pelo pequeno, mínimo tempo
durante o qual os mortos são lembrados,
não procure razão outra
que os livros que deixei para trás”.
Sua frase derradeira para seu público foi: “Eu sou Arthur Clarke, dizendo obrigado e adeus de Colombo”. Nós é que temos que agradecer.
Eu acredito em magia. Na magia dos livros, da poesia. Na magia dos grandes seres humanos que nos ensinam a ver o que está diante de nossos olhos e que nos ensinam a ver muito além de onde nossa vista alcança. A “Terceira Lei” de Arthur C. Clarke é: “qualquer tecnologia realmente avançada se confunde com a magia”. Guimarães Rosa sabia que os grandes seres humanos são mágicos, por isso não morrem, ficam encantados. Nem todos os seres humanos ficam encantados. Só os muitos especiais se encantam na história e na memória coletiva. Arthur C. Clarke, encantou. Como antes encantara Sagan. Ambos sem ar nos pulmões, mas com o coração cheio de sonhos.
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