Esses dias, li que o Plano de Manejo do Parque Nacional da Bocaina, passados mais de 30 anos da sua criação, finalmente ficou pronto. Apesar da demora, a notícia é auspiciosa. De pouco valerá, entretanto, se o plano não virar manejo efetivo.
Datam da década de 60 as primeiras discussões acerca do estabelecimento de um Parque Nacional na Serra da Bocaina. O primeiro órgão a aventar isso foi o INCRA, através de uma comissão criada em 1968 para monitorar a situação fundiária caótica às margens do atual santuário ecológico.
A proposta do Instituto de Reforma Agrária, depois de muito discutida, acabou por convencer o IBDF (atual IBAMA) da necessidade da criação de uma área de proteção ambiental na região. Assim, em 1971, foi baixado o Decreto 68.172, pelo qual passava a existir o Parque Nacional da Serra da Bocaina, com 1.340 km2, englobando desde campos de altitude, florestas de Mata Atlântica, áreas de manguezal e até uma pequena ilha.
Logo, os termos do Decreto mostraram-se demasiado ambiciosos. Grandes frações do Parque pertenciam a particulares, sendo os custos de desapropriação proibitivos. Além disso, a Bocaina legalmente protegida era habitada por 10 mil pessoas. A solução foi diminuir a área originalmente separada para proteção. Em 1972, novo Decreto reduziu o Parque para 1.140 km2, excluindo dos seus limites 9 mil pessoas que anteriormente viviam dentro da recém-criada unidade de proteção ecológica. Mais tarde, nova redução, desta vez para cerca de 110.000 hectares.
Tais medidas, contudo, não resultaram em muito. Em 1977, havia 422 ocupações ilegais dentro do Parque; sua administração controlava apenas 4,5% da área total. Onze anos depois, em 1988, algum progresso foi feito, pois já eram pertencentes à União cerca de 26% do Parque legal — um aumento significativo, porém, muito aquém do desejável. Por essa época, segundo Warren Dean (ver a coluna “Uma floresta e duas invasões” de José Augusto de Pádua aqui em O Eco), a Bocaina era “um paraíso para carvoeiros e contrabandistas de lenha”, onde, em fins da década de 80, havia ainda 3 mil proprietários particulares, todos com escrituras de terras. Em 1997, a EMATER voltou a pintar um quadro deplorável ao estimar que, só na região de Paraty (RJ), havia 950 posseiros residindo dentro do Parque.
Hoje, plano de manejo e tudo, a situação continua pouco animadora. Apenas 13 funcionários trabalham na Bocaina. Qualquer observador atento poderá verificar a devastação crescente de suas florestas, onde centenas de posseiros, sitiantes e outros intrusos caçam, desmatam, fazem queimadas para plantar e constroem casas com pedras da Estrada Cesárea — tão penosamente construída pelo braço escravo — que liga São José do Barreiro a Mambucaba. Outro problema é o dos exploradores de palmito, os chamados palmiteiros, que, aproveitando-se da fiscalização deficiente, estão fazendo a árvore desaparecer da região (em 1982, segundo Dean, o Parque tinha apenas um guarda florestal, hoje, não chega a ter dez). Em sua maioria, esses vetores da devastação não são bandidos, apenas sertanejos que agem naturalmente, repetindo costumes que seus ancestrais passaram gerações aperfeiçoando. Um dilema, portanto, de muito difícil solução, mas que precisa ser encarado de frente e com urgência pois, inocentemente ou não, suas práticas são inaceitáveis em um Parque Nacional, uma vez que têm efeitos extremamente nocivos à preservação.
A fauna do Parque inclui a onça-parda, a jaguatirica, o mono carvoeiro, o bugio, a anta e o caititu. Até o momento, foram catalogadas nos quatro tipos de vegetação da Bocaina (várzeas pantanosas, matas ciliares, capões e campos de altitude) 215 espécies vegetais, sendo 30 endêmicas aos campos de altitude em geral e seis cuja existência restringe-se somente ao Parque Nacional da Bocaina. Em sua parte alta, podemos observar o pinheiro-do-paraná, o pinheiro-bravo e coníferas. Um pouco mais abaixo, é possível admirar o cedro, o xaxim, a embaúba e incontáveis bromélias.
O cidadão comum tem diversas maneiras de visitar esse espetáculo da natureza. Existem confortáveis pousadas na Bocaina de Bananal – nos limites da Unidade de Conservação – um excelente hotel no Vale do Veado e outro mais simples próximos ao portão de entrada do Parque. Muitos visitantes, contudo, não estão atrás de pouso fixo. Ao visitarem o Parque, atravessam-no de ponta a ponta, palmilhando um caminho colonial todo calçado em pé-de-moleque cuja história confunde-se com a história do Brasil. Trata-se da trilha que liga a sede do Parque à Mambucaba, na baía da Ilha Grande, conhecida desde o século XIX como Estrada Cesárea. Começando na parte alta e terminando junto ao mar, o trajeto percorre quase todos os ecossistemas da Bocaina. Apesar de ser a trilha mais importante do Parque, seu estado de manutenção e a qualidade de preservação das matas que a margeiam estão em estado deplorável. São um pequeno termômetro do grau de manejo efetivo a que o Parque está sendo submetido. Ao longo das próximas quatro colunas, vamos percorrer a Estrada Cesárea, contanto sua história e torcendo pelo seu manejo ideal (aquele que, embora ainda esteja no papel, esperamos logo ver efetivado).
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