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Ecologia à brasileira

Gilberto Freyre foi um precursor da investigação histórica sobre o meio ambiente. Na sua visão, a civilização do Brasil passa pela proteção da sua natureza.

17 de julho de 2005 · 19 anos atrás

Há mais de sete décadas, a inteligência brasileira vem buscando na obra de Gilberto Freyre um conjunto de intuições e reflexões que permitam compreender um pouco melhor essa sociedade complexa e contraditória que a história nos legou. Uma busca cujos resultados sempre são compensadores. A obra de Freyre, cujas repercussões na cultura brasileira foram muito além do plano acadêmico, nos fornece uma fonte perene de criatividade intelectual, sempre obcecada em entender o país.

Não se trata, como às vezes acontece, de assumir uma posição sectária, pró ou contra Freyre. Mas sim de reconhecer, com toda liberdade e espírito critico, o seu brilho literário e analítico. É preciso saber, no entanto, o que buscar nessa obra. Vários sociólogos insípidos e circunspetos chamaram atenção para as suas incoerências, indisciplinas e inexatidões. Muito bem. Mas talvez valesse mais a pena, nesse caso, lembrar o que Max Weber afirmou da obra de Marx: que até os seus erros eram geniais, ensinando bem mais do que a correção obtusa dos autores medíocres. Mais do que informações precisas, o que devemos buscar em Freyre são intuições profundas.

De toda forma, a revalorização dos seus escritos, no contexto do ambiente intelectual pós-moderno, oferece constatações inusitadas. Sua força explicativa, por ironia, pode estar exatamente na incoerência e na contradição. Freyre captou, de maneira sutilmente consciente, a complexidade contraditória da civilização brasileira, que não poderia ser entendida através de esquemas simplistas e maniqueístas. A mesma visão que inspirou, décadas mais tarde, o dito seminal do sábio Tom Jobim – “o Brasil não é para principiantes”. Hibridismo, flexibilidade, mobilidade, miscibilidade, aclimatabilidade, plasticidade, meias verdades, antagonismos em equilíbrio, são os conceitos que vão marcar a imagem do Brasil nas obras clássicas de Freyre, segundo Ricardo Benzaquen de Araújo, seu melhor analista contemporâneo.

Todos conhecem o “Casa Grande & Senzala”, que desde sua primeira edição, em 1933, marcou profundamente o pensamento social do país. Bem menos conhecido é o livro extraordinário que quero comentar brevemente nessa coluna. Em 1937, apenas quatro anos depois de dar luz ao seu trabalho de maior fôlego, Freyre publicou uma espécie de versão ecológica do mesmo projeto analítico – entender os primórdios da formação social brasileira. Sob o titulo de “Nordeste – Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil”, ele focalizou e explicitou a visão ecológica que aparecia de maneira algo indireta na sua obra mais famosa.

É importante refletir, no entanto, sobre a natureza da proposta que abre o trabalho – realizar uma “tentativa de estudo ecológico do Nordeste do Brasil”. Em meados da década de 1930, Freyre estava bem familiarizado, através de seus anos de estudo nos Estados Unidos, com os passos iniciais da ecologia acadêmica, seja na sua vertente naturalista, seja nos primeiros movimentos no sentido de construir uma ecologia social (como no caso da “Ecologia Humana” cultivada na famosa escola sociológica de Chicago, ou da idéia de “morfologia da paisagem” formulada pelo geógrafo Carl Sauer). Mas a proposta do autor nunca foi a de reproduzir mecanicamente os conceitos da ecologia no entendimento da realidade brasileira. Sua visão, como sempre, foi mais ampla e ousada – desenvolver uma reflexão ecológica à brasileira, criativa, aberta e indisciplinada. O “critério ecológico” a ser adotado, segundo ele, deveria ser “não só científico, como filosófico e até estético e poético, de estudo e interpretação de uma região, e não um rígido ecologismo geométrico”. Um projeto de pesquisa que obrigou o autor a um “longo tempo de contato – que poderia talvez chamar de fransciscano – com a paisagem, a natureza e a gente mais típica da região, embora sem desprezar as investigações de arquivo”.

O resultado desse esforço, a meu ver, foi um dos mais belos e instigantes livros produzidos no Brasil do século XX, um ensaio precursor e brilhante do que hoje chamaríamos de “história ambiental”. Para embasar essa afirmação, mesmo que de maneira indicativa, considerando os limites de uma coluna, chamo atenção para apenas uma das intuições essenciais desenvolvidas por Freyre ao longo do texto (deixando um par de outras para futuras colunas): A construção da civilização brasileira, com suas grandezas e misérias, sempre esteve calcada no solo frágil da devastação ambiental, que inibe o seu pleno desenvolvimento e pode vir a provocar sua ruína.

No contexto dos “antagonismos em equilíbrio”, Freyre nunca deixou de chamar atenção para os aspectos fascinantes, belos e originais da construção civilizatória brasileira, sempre frisando o fato dos portugueses terem sido os primeiros a organizar, de maneira ousada e pioneira, uma ocupação européia permanente e produtiva nos trópicos. O contrapeso deste processo construtivo, no entanto, tem sido uma história de enorme destruição social e ambiental: Nos engenhos que inauguraram a plena colonização do litoral brasileiro, “o canavial desvirginou todo esse mato grosso do modo mais cru: pela queimada. A ferro e fogo é que foram se abrindo nos mato virgem os claros por onde se estendeu o canavial civilizador, mas ao mesmo tempo devastador”.

Em duas passagens, especialmente, o livro elabora diferentes aspectos desse paradoxo:

“A monocultura, a escravidão, o latifúndio, mas principalmente a monocultura – abriram na vida, na paisagem e no caráter da gente as feridas mais fundas. O perfil da região é o perfil de uma paisagem enobrecida pela capela, pelo cruzeiro, pela casa grande, pelo cavalo de raça, pelo barco à vela, pela palmeira-imperial, mas deformada, ao mesmo tempo, pela monocultura latifundiária e aristocrática; esterilizada por ela em algumas de suas fontes de vida e alimentação mais valiosas e puras; devastada nas suas matas; degradada nas suas águas”.

“Por baixo dessa civilização aristocrática e voluptuosa de seda, de rubis, de azulejo, de latim, de versos, de cama de jacarandá, de cadeira de balanço, de mulher bonita, de cavalo de raça, de licor de caju, de doce fino, deixou-se secar tanta fonte de vida que era natural que a exploração da cana-de-açúcar fosse o que foi neste trecho do Brasil: uma fase, em certo sentido, criadora e sob vários aspectos brilhantíssima; mas tão separada de certos elementos da natureza regional e tão artificial em algumas de suas condições de vida, que apodreceu ainda verde: sem amadurecer direito”.

A segunda passagem, em particular, parece indicar um balanço negativo da experiência sócio-econômica brasileira, que sempre será artificial e incompleta, com forte viés para a decadência, enquanto não lograr estabelecer relações saudáveis de vida social e ambiental.

Em muitos trechos do livro, nesse sentido, Freyre indica a necessidade de sociedades equilibradas manterem o “estado de variedade” onde “tudo se concilia e se compensa”. A economia pode romper este equilíbrio ao negar a diversidade da natureza e fazer com que “uma planta única e no momento mais valorizada do que as outras cresça sobre uma região inteira”. O problema não está, necessariamente, na introdução de uma espécie exótica, apesar do autor apontar alguns exemplos onde os resultados de invasões biológicas foram desastrosos. O grande risco está no “exclusivismo brutal”, que “por ganância de lucro” acaba criando sociedades “pervertidas pela monocultura furiosa”. Quem dera que os gestores do poder publico nas atuais fronteiras de expansão da soja no Cerrado e na Amazônia, para não falar dos empresários, pudessem entender o sentido dessas palavras!

Apesar de reconhecer, com o necessário realismo de historiador, que “sem o sistema latifundiário e escravocrata, teria sido talvez impossível a fundação da lavoura à européia nos trópicos”, Freyre nunca deixa de apontar, em vários momentos de sua obra, as mazelas e perversidades de nossa formação, indicando a necessidade de equilibrar a trajetória do desenvolvimento brasileiro. Até porque o problema tornava-se mais grave e desesperador na medida em que o progresso tecnológico, no rumo da produção industrial, intensificava ainda mais a devastação.

A antiga civilização patriarcal do Nordeste, apesar do “drama da monocultura”, apresentava alguns aspectos de grande proximidade na relação com o meio natural, especialmente com as águas dos rios. Um tema que, na ecologia à brasileira do autor, deveria ser considerado central, pois, em palavras de encantadora beleza, “nada é mais importante no estudo do homem do que as suas relações com a água: com a água do mar, com a água dos rios, com a água condensada das nuvens, com a água de chuva e de degelo, com a água subterrânea, com a água que corre na seiva das plantas ou que circula nas arteriais e nas veias dos animais. Por conseguinte o próprio sangue e a própria vida dos homens”.

As casas do Nordeste antigo davam a frente para as águas, que serviam de espaço relativamente democrático para a limpeza, o lazer e as interações sociais. As águas dos rios eram usadas para lavar louças, roupas e animais. Elas eram admitidas na intimidade dos homens, que lhes contavam suas “mágoas de namorados” e “saudades de velhos”. Nas suas margens, eles faziam “das pontes e dos cais seus recantos preferidos de conversa, noite de lua no recife”. Os barcos serviam também como meio de fuga para moças apaixonadas. Na linguagem espontânea do autor, que tanto chocou o moralismo da época, era nos rios que elas “se entregavam ao rapaz de fraque”, onde “abria-lhe os braços e às vezes as pernas morenas”.

Apesar desses parágrafos evidenciarem a notória nostalgia de Freyre em relação ao Brasil pré-industrial – que efetivamente é um dos aspectos, junto com vários outros, muitas vezes contraditórios, de sua visão do país – não é difícil compreende-lo se levarmos em conta o estado dos rios após a transformação dos engenhos em usinas de açúcar.

Na paisagem do Nordeste industrial, segundo Freyre, quase não há rio “que alguma usina de ricaço não tenha degradado em mictório. As casas já não dão a frente para as águas dos rios: dão-lhe as costas com nojo. Dão-lhe o traseiro com desdém”. Os rios foram transformados em “mictórios das caldas fedorentas de suas usinas. E as caldas fedorentas matam os peixes. Envenenam as pescadas. Emporcalham as margens”. Os rios “correm sujos”, “sem dignidade”, “prostituídos”, com águas “amarelentas ou pardas como se o mundo inteiro mijasse ou defecasse nelas”. Duvido que algum ambientalista atual, por mais radical que seja, fosse capaz de usar publicamente uma linguagem mais dura contra a poluição, que hoje por certo é muito pior, do que nesse texto de 1937!

Voltarei, em colunas futuras, ao tema da ecologia à brasileira de Gilberto Freyre. Mas espero que a pequena amostra aqui apresentada seja suficiente para avaliar a paixão e o destemor com que o este nome seminal da moderna inteligência brasileira foi capaz de perceber o que deveríamos continuar percebendo: que a defesa da civilização brasileira, em seu sentido mais elevado e profundo, em seus aspectos mais belos e humanos, passa pela defesa intransigente das matas e das águas que, entre outros elementos primordiais, apesar da contrariedade de alguns, estão na linha de frente dos traços essenciais que, parafraseando Roberto Da Matta, “fazem do Brasil, Brasil”.

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Comentários 2

  1. william diz:

    e bem interessante para meu estudo e não e muito a forma de como a sociedade evoluiu poluindo a camada de osonio e rios e mares e margens


    1. william diz:

      erro de portugue era nao e muito legal