Não foram poucos os que apontaram a irônica identidade de sufixo entre os dois polos de uma das mais emblemáticas clivagens políticas do mundo contemporâneo: economia versus ecologia. Penso, assim como vários outros analistas, que a chave para uma integração harmoniosa entre os dois polos encontra-se na própria etimologia de ambas as palavras (derivada do grego). A administração ou organização da “casa” (eco-nomia) deveria basear-se no conhecimento da “casa” (eco-logia). Ou seja, a economia deveria subordinar-se à ecologia. Em primeiro lugar devemos conhecer o planeta em que vivemos para depois, com base neste conhecimento, estabelecer de maneira inteligente e sustentável os nossos padrões de produção e consumo no interior do mesmo. Parece muito racional. Mas, em torno deste debate, explodem os mais diversos conflitos e contradições envolvendo diferentes heranças históricas, interesses de curto, médio e longo prazo, valores e visões de mundo etc. O fato é que já se passaram mais de três décadas desde o início dos anos setenta, quando o debate ambiental começou a adquirir forte presença na opinião pública global, e a clivagem insiste em permanecer, oscilando entre avanços e retrocessos.
No Brasil do segundo governo Lula, quando a oposição formal parece ter perdido qualquer indício sério de possuir algum rumo, uma das poucas fontes de emoção no debate político refere-se justamente a mais uma encarnação da velha clivagem. Com presença marcante no interior do próprio governo, que reflete o conflito entre diferentes setores da sociedade, manifestado inclusive no jogo pesado dos diferentes grupos de interesse e seus mecanismos de pressão política, o território brasileiro está se transformando em um verdadeiro campo de batalha entre argumentos ecológicos e econômicos (biocombustíveis, transgênicos, transposição do São Francisco, hidrelétricas do Madeira e por aí vai…).
Diante desta situação conflituosa, quero compartilhar com os leitores de O Eco algumas reflexões sobre o que pude observar durante a Nona Conferência Bianual da International Society for Ecological Economics (ISEE), que reuniu em Nova Délhi, no final do ano passado, cerca de 800 pesquisadores envolvidos no esforço (talvez inglório) de unificar, ou pelo menos aproximar, as racionalidades específicas da ecologia e da economia.
Um ponto de partida interessante encontra-se na descoberta de que tal esforço não é tão novo quanto parece. Foi o que demonstrou o atual presidente da ISEE, Joan Martinez Alier, em um livro tão surpreendente quanto erudito, que possui o título aparentemente singelo de “La Economia y la Ecologia” (Fondo de Cultura Económica, 1991)*. Com base em uma pesquisa inovadora e minuciosa, Alier revelou que no final do século XIX e início do XX, momento mesmo da formalização e institucionalização da economia como disciplina científica, alguns analistas buscaram aproximá-la das novas tendências que então se desenvolviam nas ciências da natureza – como a termodinâmica e a biologia evolucionista – esboçando uma leitura mais material e realista das condições da produção humana no contexto dos fluxos e ciclos bio-geo-químicos que constituem e renovam constantemente o planeta Terra.
O próprio Rudolf Clausius, pai da famosa segunda lei da termodinâmica, que define o princípio da entropia, preocupou-se, em um texto de 1885, com a dissipação do que chamou de “estoques de energia na natureza”, alertando, com base na questão do uso do carvão, para o fato de que a humanidade não deveria comportar-se como um jovem inconsequente que desperdiça a sua herança. Vários outros pensadores da época, como Serhii Podolinsky, Eduard Sacher, Patrick Geddes, Leopold Pfaudler, Henry Adams, Bernard Brunhes, Frederic Soddy, Wilhelm Ostwald e Josef Popper, preocuparam-se em medir as bases energéticas do trabalho humano e da produção econômica, tomando em sério também o tema da oferta limitada de recursos energéticos e materiais do planeta.
Do ponto de vista teórico, a crítica essencial, que ainda hoje se mantém viva, pode ser encontrada em uma carta escrita em 1883 pelo biólogo, urbanista e economista Patrick Geddes para Leon Walras, um dos pais da teoria neoclássica e da formalização matemática dos sistemas econômicos. Segunda Geddes, a economia matemática estava iludida ao imaginar que poderia se desenvolver “sem a assistência da física aplicada nos estudos de produção material e sem a assistência da biologia nos estudos sobre os organismos que formam a sociedade”. Defendia também que a economia dialogasse com a psicologia, a história e a antropologia.
É claro que todos esses esforços foram frustrados e, na verdade, quase submetidos ao completo esquecimento teórico, devido à crescente hegemonia histórica da teoria neoclássica e de sua visão subjetivista, desencarnada e monetarista do processo econômico. Uma visão que pode ser classificada como “flutuante”, na medida em que vê a humanidade como algo flutuando acima do planeta.
Alier discute, por exemplo, o debate na London School of Economics dos anos 1940 entre Lancelot Hogben, que defendia a necessidade de produzir “estatísticas vitais” sobre populações, recursos, padrões de nutrição etc., e o futuro prêmio Nobel da economia Friedrich Hayek, para quem os aspectos físicos das mercadorias, inclusive dos alimentos, não tinham qualquer importância teórica. Para o economista interessava apenas conhecer as preferências subjetivas dos consumidores.
É claro que os autores pioneiros analisados por Alier, cujo trabalho teórico poderia ter estimulado a formação de uma ciência econômica mais próxima da ecologia, algo que agora se está tentando construir com tanta urgência, viviam em um mundo bastante diferente do nosso. Mas, pensando bem, talvez não tão diferente. Se substituirmos o carvão pelo petróleo, por exemplo, na dramática formulação de Henry Adams, feita em 1903, talvez estejamos escutando, infelizmente, um alerta extremamente atual: “somos escravos do carvão e acabaremos morrendo com o nosso Senhor”.
De toda forma, foram necessárias muitas décadas para que uma nova onda de esforço concentrado na busca por uma economia ecológica pudesse aparecer. No início da década de 1970, já no contexto da emergência de um ambientalismo com forte perfil na opinião pública, alguns nomes como Nicholas Georgescu-Roegen, Herman Daly e Ignacy Sachs começaram a constituir o campo propriamente dito da “economia ecológica”, que desde então não parou de crescer em quantidade e qualidade.
Georgescu-Roegen, no livro de 1971 sobre The Entropy Law and the Economic Process, retomou o diálogo perdido com a termodinâmica, afirmando que a economia não poderia ignorar a lei segundo a qual em qualquer movimento material, que sempre utiliza energia, uma parte da mesma se dissipa em formas não (re)utilizáveis. Ou seja, simplificando um assunto extremamente complexo, os sistemas materiais caminham sempre na direção de um aumento da desagregação e da desordem. As formas complexas da natureza, portanto, se constroem através de uma luta coletiva contra esta tendência, que pode ser chamada de “neguentropia” (ou negação da entropia). O principal instrumento da neguentropia é a redistribuição e reciclagem permanente dos fluxos de matéria e energia disponíveis. É através da reciclagem e da redistribuição – manifestada, por exemplo, nas cadeias alimentares – que os seres vivos e ecossistemas conseguem sobreviver e se renovar.
A preocupação básica de Georgescu-Roegen se referia ao fato de que o sistema econômico humano, especialmente o moderno sistema industrial, na medida em que aumenta a escala e a velocidade dos fluxos de produção e consumo, ao mesmo tempo em que dificulta a reciclagem, estaria agindo na direção contrária à dos ciclos naturais. Em outras palavras, a dissipação de energia e matéria produzida pela ação humana estaria apressando a chegada de uma situação de desordem e de caos na natureza do planeta do qual dependemos para nossa sobrevivência.
Herman Daly, por outro lado, também partiu da recuperação de um diálogo com o século XIX, basicamente com John Stuart Mill, o único dos pais da economia política que chegou a considerar positivo o fim do crescimento da população e da produção humana no planeta. Na própria reflexão clássica sobre a dinâmica do sistema econômico, independentemente da sua relação com a natureza, estava prevista teoricamente a possibilidade de que as taxas decrescentes de lucro levariam em certo momento a uma situação em que os estoques de riquezas físicas e de pessoas permaneceriam constantes. Tal perspectiva, segundo Mill, que em geral angustiava os economistas, poderia ser vista como historicamente positiva. Segundo ele, um mundo superpovoado e super-cultivado, sem espaço para o silêncio, a solidão e a presença da vida selvagem, seria uma realidade medíocre e desagradável.
Por outro lado, como afirmou em uma famosa passagem, “a condição estacionária do capital e da população não implica em uma condição estacionária do avanço humano. Haverá tanto espaço como sempre para todos os tipos de cultura mental e para o progresso moral e social. Haverá muito mais espaço para a arte de viver, e seu avanço será plausivelmente muito maior, quando as mentes deixarem de ser obcecadas pela arte de adquirir”. A visão de Mill foi renovada por Daly dentro de uma perspectiva ecológica, já que os limites do planeta tornavam absurda a ideia de um crescimento ilimitado da humanidade. Era necessário, portanto, fazer uma transição global ordenada para uma economia de estado estacionário, definida como sendo uma economia de equilíbrio biofísico e desenvolvimento moral.
É interessante observar que dois dos principais economistas ecológicos da atualidade possuem forte ligação com o Brasil e falam perfeitamente o português. Daly viveu muitos anos no Ceará, no início da sua carreira, quando começou a questionar os modelos tradicionais de desenvolvimento. Já Ignacy Sachs, que formulou a proposta do ecodesenvolvimento, migrou ainda jovem com sua família para o Brasil, onde viveu por 14 anos antes de retornar à Polônia e tornar-se discípulo do famoso economista Michal Kalecki. Mais tarde, após trabalhar intensamente com projetos de desenvolvimento na Índia e no Brasil, além de estabelecer-se academicamente em Paris, participou ativamente das discussões sobre meio ambiente e desenvolvimento no início dos anos 1970. Nesta ocasião formulou a tese de que o mais importante não era discutir se o crescimento era desejável ou não, mas sim examinar a qualidade humana e ecológica do processo econômico. Ou seja, era preciso que a dinâmica do desenvolvimento econômico como um todo fosse repensada à luz da questão ecológica, dando origem a uma proposta de “ecodesenvolvimento” fundada nos seguintes princípios: a satisfação das necessidades básicas; a solidariedade com as gerações futuras; a participação da população envolvida; a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente; a elaboração de um sistema social que garanta emprego, segurança social e respeito cultural; e programas de educação.
Foi com base na renovação teórica apresentada por estes autores, assim como por vários outros, que a busca por uma economia ecológica ganhou maior dinamismo, até chegar à variedade temática, analítica e propositiva que hoje podemos observar. É o que procurarei discutir na próxima coluna, tomando por base o programa do encontro de Délhi.
*A primeira edição foi publicada em catalão no ano de 1984.
**Editado às 02h14, do dia 25/03/2019, para melhoria da diagramação e recorte de fotografias. O texto não foi alterado.
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