Depois de 16 anos de montanhismo, confesso que nunca pensei muito no sentimento dos que ficariam caso algo acontecesse comigo. Sempre me fiz ligar para meus pais toda vez que descia de um cume gelado para dizer que tudo estava bem. Por sorte, talvez (não acredito que eu tenha sido tão competente assim a ponto de não me meter em um acidente grave), por boas companhias, quase sempre (na maioria das vezes, escolhi bem meus companheiros de cordada e tive pessoas muito mais competentes e experientes que eu na outra ponta da corda), sei que sempre voltei inteira das expedições.
Mas nem sempre é assim. A verdade é que muita gente boa já se foi… E para quem ficou? Maria Coffey escreveu um livro chamado Where the mountain casts its shadow – the dark side of extreme adventure, em que ela explora a relação entre escaladores de alto nível, suas exposições aos riscos, ética e razão, e os efeitos de seus desaparecimentos para quem fica. Maria fala com conhecimento de causa: namorava o escalador inglês Joe Tasker quando ele desapareceu na aresta nordeste do Everest, em 1982.
Para escrever o livro, entrevistou familiares de escaladores desaparecidos e de outros ainda vivos, mas que, como em toda expedição, passa ou passava longos e tensos períodos longe de casa. É interessante ver mulheres contando que precisavam de semanas para se reajustar à rotina da casa quando os maridos voltam (ou voltavam, em alguns casos) de expedições. A maioria está tão acostumada a ter uma rotina sem o marido que, quando estes voltam, meio que instalam um caos na casa e no relacionamento. Para os alpinistas, o retorno também é caótico e difícil, já que eles estão vindo de um mundo à parte, onde a vida existe numa forma muito simples e um ambiente de camaradagem entre os companheiros de equipe, que costuma deixar marcas profundas e muitas saudades. Eles saem desse mundo intenso para as pequenas coisas do dia-a-dia da família, deixando de lado o brilho nos olhos de quando estão nas montanhas.
‘Sem risco, diz montanhistas, não existiria o auto conhecimento que vem quando vivemos a vida ao extremo’, diz a orelha do livro, acrescentando que ‘para eles, talvez, o custo disso valha a pena’. Mas quando vem a tragédia, o que acontece com aqueles que ficaram? Por que alguém decide investir em um futuro com uma pessoa que corre este tipo de risco? Como é a vida na sombra da montanha? Apesar destas perguntas serem tabu no meio de montanha, Maria Coffey as desafiou e respondeu, quebrando o silêncio de anos de muitas famílias de escaladores internacionalmente conhecidos que perderam a vida escalando como Anatoli Boukreev e Alex Lowe e outros ainda vivos, mas que correram riscos a vida inteira como Jim Wickwire, Conrad Anker, Lynn Hill, Joe Simpson, Chris Bonnington e Ed Viesturs.
Tom Hornbein escreve o prefácio e conta que, em 1960, com 29 anos, era casado e tinha quatro filhos e meio, quando uma avalanche atravessou seu caminho, mas, por sorte, nada aconteceu. Três anos depois, um quase acidente no Everest. ‘Após estas quase perdas, foi fácil racionalizar e dizer que eu ainda estou aqui para contar estas histórias, então, qual o problema?’, escreve Hornbein. Conta também que a sua forma de lidar com a responsabilidade familiar foi comprando uma apólice de seguro de vida antes de sair de casa para uma expedição. Desta forma, se convencia de que não ia morrer, mas se isto viesse a acontecer, pelo menos não os deixarei na mão. ‘Eu nunca pensei na cratera que seria deixada em suas vidas’, confessa.
Para justificar, Hornbein argumenta que foi nas montanhas que ele realizou sonhos, ganhou confiança, aprendeu a sobreviver, ganhou um amor pelo selvagem, e dividiu momentos especiais com amigos. A união dele com as montanhas definiu a vida pessoal e profissional: ‘montanhas são minha casa espiritual, mais do que tudo, elas definiram quem eu sou e como eu me relaciono com o mundo e as pessoas que fazem parte dele e da minha vida. Estas racionalizações não são só minhas, mas a maioria dos escaladores e montanhistas falam e acreditam em coisas similares para justificar nosso passado’.
Não participo de uma expedição há algum tempo, mas o sentimento que sinto em relação a elas continua muito presente em mim – e sinto muitas saudades da vida nas montanhas. Li este livro me colocando no lugar dos alpinistas e não das mulheres que ficam em casa e, se hoje preciso argumentar com o meu marido, o faço por irmos pouco à montanha – sim, sou eu quem precisa ir com freqüência, sou eu quem sente falta… Cheguei a fazer mais de uma ou duas expedições por ano, em um período curto da minha vida, e o tempo que passava na cidade era gasto planejando a próxima. Aliás, já descia das montanhas com a próxima em mente e começava a desenhar a expedição ali mesmo, no caminho de volta. Lembro de um amigo, que me ensinou a escalar no gelo, dizendo que, quando ele começava a sonhar com o barulho do crampon (aquele solado de metal preso à bota para não escorregar no gelo) no gelo, era hora de voltar à montanha.
Ano passado estive no gelo, em uma escalada de poucas horas, mas que me trouxe tanto sentimento bom e saudoso das expedições que participei. O mordiscar do crampon no gelo me remeteu a todos os glaciares que já pisei. Lendo o livro, sinto pelas famílias, imagino o quanto sofrem quando os parceiros se vão, mas sei o quanto estas pessoas se sentem vivas quando colocam a mochila nas costas e vão subir uma montanha…
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