O Ibama, em seu endereço eletrônico, disponibiliza a lista das unidades de conservação federais do Brasil. É bastante interessante verificar que nenhuma unidade de Proteção Integral foi criada no Cerrado em 2008. Nem em 2007, tão pouco em 2006. Na verdade, a última novidade apresentada pelo Governo Federal como uma medida concreta visando à conservação de parcela representativa do bioma do Cerrado, data de 2005. Mais especificamente de dezembro de 2005, quando foi assinado o Decreto de criação do Parque Nacional da Chapada das Mesas, nos Cerrados do Maranhão, ao lado da charmosa cidade de Carolina, localizada às margens do combalido rio Tocantins.
O potencial para a criação de um Parque Nacional na região de Carolina já havia sido identificado há muito tempo. A primeira proposta para a região foi um dos resultados dos estudos desenvolvidos pelo Projeto Radam Brasil, em 1973. Os atributos biológicos e cênicos da área já convenciam os pesquisadores envolvidos no projeto de que a região apresentava todas as condições relevantes para a criação de um novo Parque Nacional. A proposta do Radam Brasil trazia uma proposta preliminar de limites, com mais de 300 mil hectares, abrangendo os municípios de Carolina, Riachão, Estreito e Fortaleza dos Nogueiras.
Uma outra publicação, datada de 1977 e editada pelo extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), denominada de “Planejamento do Sistema Nacional de Unidades de Conservação”, incorporava a proposta de criação de um certo Parque Nacional das Mesas de Carolina. Esta publicação apresentava uma outra proposta preliminar de limites (semelhante aos estudos do Radam Brasil) e de uma minuta de Decreto Federal, contendo o memorial descritivo da proposta.
Apesar disso, se passaram quase 30 anos para que a proposta de um Parque Nacional na região se tornasse real. Esta proposta foi retomada graças ao empenho da comunidade da região de Carolina, que se uniu contra a proposta de instalação de duas pequenas centrais hidroelétricas (PCH) nas duas maiores cachoeiras do rio Farinha. Em fevereiro de 2003, a comunidade do Município de Carolina, preocupada com a conservação dos atributos naturais do município, encaminhou um longo documento à então Ministra do Meio Ambiente Marina Silva, solicitando a criação de uma unidade de proteção integral na região. No documento constava um abaixo-assinado com mais de 1200 assinaturas e uma comovida carta, onde estava manifesto o repúdio à construção das PCH nas cachoeiras do rio Farinha.
A proteção destas cachoeiras, que atraem centenas de turistas ao Município anualmente, passou a ser encarada como uma necessidade vital para a população. E isso não é apenas discurso. Qualquer pessoa interessada pode digitar as palavras-chave corretas em algum buscador da internet, que irá encontrar diversos sites de hotéis, pousadas, agências de turismo, excursões, todos recheados de fotos de belíssimas cachoeiras e paisagens espetaculares (confira o slideshow acima). Além do Farinha, existe na região outros rios, como o Itapecuru, o Urupuchete, o Corrente e o Lajinha, além de diversos córregos menores, todos repletos de cachoeiras irresistíveis.
O ecoturismo que existe ao redor dos atrativos naturais da região movimenta Carolina, que já foi considerada a segunda cidade do Maranhão, mas teve sua economia fortemente afetada pela construção da rodovia Belém-Brasília. Hoje a cidade depende bastante do seu patrimônio natural, e a criação de um Parque Nacional no município o insere indelevelmente no rol dos mais importantes destinos do turismo ambiental no Brasil. E vale a pena conhecer Carolina!
A demanda da comunidade de Carolina foi encaminhada pelo Ministério do Meio Ambiente à Diretoria de Ecossistemas do Ibama, que elaborou todos os estudos básicos para a nova proposta em 2005. A nova proposta foi conduzida com urgência e atenção proporcionais à importância da área. Além da relevância apontada para a região nos documentos já balzaquianos, a região estava inserida nos polígonos considerados de prioridade extremamente alta para a conservação dos Biomas Cerrado e Floresta Amazônica, de acordo com os estudos do Programa de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente (Probio/MMA).
Na época, havia grande comoção causada pelo fato dos Polígonos Prioritários do Probio terem sido ratificados, de forma estabanada, pelo Decreto Presidencial 5.092/04, gerando mais confusão que solução para o desafio da ocupação racional do território brasileiro e para a dinâmica de identificação de áreas relevantes para a conservação no Brasil. Em todo caso, havia uma dívida real do governo brasileiro com a conservação da biodiversidade e das paisagens naturais da Chapada das Mesas. Essa dívida tinha que ser paga, da melhor forma possível.
No entanto, a região já havia mudado bastante desde que os estudos do Radam Brasil foram conduzidos. A ocupação humana tornou-se mais densa e mais dispersa. Novas estradas foram abertas. Diversas áreas haviam sido desmatadas ou descaracterizadas. Era evidente a necessidade de novos estudos. Desta forma, com o apoio de técnicos do Ibama de Imperatriz e de moradores locais, foram realizados dois levantamentos de campo, em junho e julho de 2007. Toda a região de interesse foi percorrida e sobrevoada. As bases cartográficas digitais foram disponibilizadas para a Secretaria de Planejamento do Maranhão, pelo Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam) e usadas no trabalho. Imagens CBERS de agosto de 2005 foram usadas para localizar os pontos de observações obtidos em campo. O apoio da Conservação Internacional viabilizou o sobrevôo e parte dos gastos dos trabalhos de campo.
Com a integração dos dados e com os mapas na mão, era hora de marcar a consulta pública, que foi realizada em 22 de agosto de 2005, na Assembléia Legislativa de Carolina. Muita atenção e preparo para atender aos questionamentos da platéia, enfrentar o ataque dos desinteressados e agir diante de qualquer imprevisto. A surpresa foi que, além de apoiar a proposta quase por unanimidade, grande parte da platéia sugeriu a ampliação do Parque Nacional, pois achavam que a proposta apresentada, com 140 mil hectares, ainda era pouco diante da importância da área.
De volta a Brasília, mais coisas a pensar e ponderar. Depois de uma semana diante do computador e com os olhos nos dados levantados em campo e nas imagens, a proposta final foi concebida, com pouco mais de 160 mil hectares.
Na época, a criação do Parque Nacional da Chapada das Mesas foi anunciada como a mais nova contribuição do Governo Federal no relevante e urgente esforço de conservação do bioma Cerrado.
A minuta do Decreto de criação do Parque Nacional da Chapada das Mesas foi encaminhada ao Ministério do Meio Ambiente em setembro de 2005, mas lá, no corta e cola da edição de textos, a redação do seu primeiro artigo, justamente aquele que fala dos objetivos da categoria da unidade de conservação, foi trocada pelo texto típico de uma Reserva Extrativista. Desta forma, o primeiro Parque Nacional nos cerrados do Maranhão foi finalmente criado em 12 de dezembro de 2005, mas pelo estranho erro do primeiro artigo do seu Decreto, sua redação teve que ser alterada pelo Decreto de 31 de dezembro de 2006.
Na época, a criação do Parque Nacional da Chapada das Mesas foi anunciada como a mais nova contribuição do Governo Federal no relevante e urgente esforço de conservação do bioma Cerrado. Essa novidade já tem quase quatro anos. E desde então nenhuma nova ação foi tomada frente à urgência de ampliar o número e a área de Cerrado integralmente protegida.
Neste ínterim, um novo Ministro assumiu a pasta do Mistério do Meio Ambiente, com um guarda-roupa peculiar, onde coletes, alguns de gosto discutível, ocupam lugar de destaque. Estes coletes, que parecem ser uma espécie de marca pessoal do Ministro, possuem padronagens compostas por mosaicos de cor e textura, formando desenhos complexos. Como bom carioca, o Sr. Ministro é um eficiente porta-voz da conservação da Mata Atlântica, um dos biomas mais ameaçados do Planeta. Mas talvez o Cerrado tenha mais semelhança com o Ministro do que ele suspeita. Assim como nos seus coletes, a complexidade estrutural do Cerrado é promovida pela intrincada trama de ecossistemas distribuídos em mosaico na paisagem. Esse aspecto amplia a heterogeneidade espacial do bioma e torna a sua biodiversidade tão especial. Talvez fosse hora do Sr. Ministro prestar mais atenção à sua cadeira que ao seu guarda-roupa, sem esquecer a complexidade biológica do País.
Considerado uma das áreas prioritárias de conservação no Planeta, o Cerrado é um paciente em estado grave. Menos de 3% da sua superfície estão protegidas de maneira adequada (ou seja, na forma de unidades de conservação de Proteção Integral). As taxas de desmatamento do Cerrado são preocupantes. Quatro anos de espera para um paciente nesta situação é um tempo demasiadamente longo. De acordo com estimativas de desmatamento publicadas pela Conservação Internacional, neste tempo de espera foram desmatados entre 8 e 12 milhões de hectares em todo o Bioma. Essa proporção de área desmatada faz os 160 mil hectares da Chapada das Mesas parecerem ridículos. É essa a preocupação do Governo Federal com a conservação do Cerrado? Certamente a desastrosa criação do Instituto Chico Mendes (quem?) de Biodiversidade teve sua parcela de culpa. Setores governamentais foram desmantelados e descerebrados. Recursos foram reduzidos e subdivididos. Arquivos foram perdidos, documentos desviados, técnicos capacitados foram desvalorizados e desmotivados. Muito tempo foi perdido e ainda está sendo.
Na época de criação do Parque Nacional da Chapada das Mesas já era difícil localizar remanescentes contínuos de Cerrado com mais de 100 mil hectares. Hoje, apenas quatro anos depois, fragmentos naturais deste tamanho já são uma raridade. Estamos perdendo a luta pela conservação do Cerrado. E isso não é novidade nenhuma. As novidades fúnebres são as novas normas de andamento dos processos de criação, que representam o aborto precoce de novas unidades de conservação. Quais são as desculpas? Falta de apoio das bases? Conflito com o desenvolvimento? Nada disso é relevante para esta questão. O que explica esta falta de boas notícias para o Cerrado é apenas desinteresse político e descaso governamental com o desafio de proteger com responsabilidade a nossa megadiversidade.
O caso específico de Chapada das Mesas nos ensina muitas coisas. Primeira lição: Não é verdade que ninguém quer a criação de novas unidades de conservação de proteção integral; em muitos casos, ela é a condição essencial para a implementação de modelos de desenvolvimento menos desastrosos. Segunda lição: O empenho real de diferentes setores faz a diferença; sem construir uma boa base de apoio, sem a vontade dos interessados, sem a comoção dos gestores, as coisas ficam complicadas. Terceira lição: o tempo está se esgotando.
Onde estão as novas unidades de proteção integral do Cerrado? Fica a sensação de que estamos perdendo a diversidade biológica do bioma por total incapacidade do Governo Federal.
*Esse texto foi editado em 25/03/2024 para repaginação
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
Leia também
Cerrado, da nostalgia à conservação
Ao estrear uma coluna sobre o Cerrado quando ele parece estar condenado a desaparecer, Verônica Theulen conta por que tem saudade do que ainda não perdeu. →
Índia, país do sagrado ao profano
País auto-intitulado mais espiritualizado do globo é palco de impressionante destruição da natureza. Raro encontro com tigre é experiência única, marco na vida de qualquer pessoa. →
Reservas extrativistas no Cerrado, para quê?
Com as reservas extrativistas no Cerrado, governo vai gastar dinheiro público para dar proteção ineficiente a áreas que deviam ter grau máximo de conservação. →