Antes de pôr as botas na terra, Pers Lars Larsson bota na cabeça o chapéu de aba larga, em couro de rena. E isso muda instantaneamente sua figura de engenheiro eletrônico, que trabalha com tecnologia de ponta em energias alternativas para institutos de pesquisa suecos. Parece um John Wayne, no faroeste da taiga.
“O chapéu era da minha avó, que não saía de casa sem ele”, diz Lars. Faz questão de usá-lo nas florestas que costeiam a estrada para o lago de Draggen, assim que fica para trás o vago centro urbano da aldeia de Granmor. Depois que nasceu seu primeiro neto, ele está empenhado em não ser o elo que romperá os laços da família com um estilo de vida enraizado em tradições rurais do século XVII.
Fazenda, aliás fäbod
Lars estava ali para mostrar uma fazenda de verão, a fäbod de Kal-Tövasen. Ou melhor, traduzi-la. São três casas de troncos, incluindo o estábulo, no meio do bosque. Entre os pinheiros altos, seus telhados baixos aparecem de repente, na última curva. Não há uma antena à vista, denunciando a presença indispensável das últimas palavras em telecomunicação. As galinhas ciscam embaixo das mesas ao ar-livre, mesmo durante o almoço coletivo. O banheiro é uma cabana rústica em fundo de terreno.
Em suma, Kal-Tövasen conserva um tipo de roça que o interior do Brasil está esquecendo. E Lars cresceu numa faböd como aquela, construída há pelo menos 350 anos. Em sua casa, cozinhava-se na sala, em fogo de chão. Nem se falava em rádio ou TV.
“Só comprávamos café e prego”, ele conta. Lars se dedica a pesquisas de energia alternativa em laboratórios avançados. E esse desvio que sua careira tomou na maturidade naturalmente o levou de volta à roça. Sua lembrança mais forte da infância é um nítido fragmento da manhã de primavera em que saiu de casa sozinho pela primeira vez. Estava nu em pelo. Corria a céu aberto, depois dos meses intermináveis meses de confinamento do inverno. Sentindo o frio da relva molhada nas pernas. E bafo morno das vacas que lhe lambiam a cara.
Essa existência ele deu por encerrada quando saiu de casa para a escola e, dali, para o curso superior. Aos 18 anos, voltando um dia de férias, explicou à avó que o mundo que ela conhecia tinha acabado. A velha ouviu uma a uma todas as novidades que o neto trazia de fora e concluiu: “Não vai dar certo”. Hoje, Lars está convencido de que muita coisa que lhe ensinaram como sendo o progresso inevitável de fato não não deu certo. E procura respostas em velhas tecnologias sustentáveis.
Leite e manteiga
A Kal-Tövasen produz diariamente 120 litros de leite, simplesmente deixando suas 20 vacas pastarem livremente em florestas públicas, onde não há cercas dividindo propriedades. Isso lhe garante a produção de três tipos de queijo e de manteiga fina, enquanto poupa os pastos que a família mantém na aldeia, para forrar de feno os estoques do longo inverno.
A estrada que passa em sua porteira é de terra. Raros automóveis passam por ali. E os que passam geralmente param, para comprar laticínios, geléias e outros produtos tipicamente rurais, cujas receitas jamais mudaram. Durante o dia – e o dia é longo no verão nórdico – pode-se sentar para comer nas mesas rústicas, de bancos corridos, espalhadas sem nenhuma ordem aparente entre a casa e o estábulo.
O convite para o almoço inclui a obrigação implícita de preparar a própria comida, em conchas de ferro com longos cabos de madeira, que a clientela põe sobre a grelha, no braseiro ao ar-livre. Primeiro, assando os pedaços de carne de porco gordurosa, bem à vista dos porcos que fuçam a cerca diante da floresta. “Vivem soltos”, Lars afirma. Quer dizer: estão ali para virar carne mais dia menos dia, mas até terão o direito a uma vida que deve corresponder a algum projeto suíno de felicidade.
O resto do prato exige várias idas e vindas entre o fogo e o balcão dos ingredientes. Os queijos da casa. A massa líquida que, sobre as brasas, grudará os nacos de carne numa espécie de panqueca. A geléia ácida de frutas do bosque. A manteiga doce que Lars considera “cinco vezes mais nutritiva e saudável do que a outra”, porque não vem de um organismos alimentados por rações, e sim de uma salada diária de folhas silvestres, que as vacas escolhem com aparente sabedoria.
Uma delas foi seguida por quilômetros, enquanto buscava um fungo específico e raro, que cresce sob a terra, junto a raízes de coníferas. E assim se tratava sozinha de uma infertilidade crônica, que os veterinários não sabiam curar. Examinado, o tal fungo se revelou uma fonte natural dos hormônios que lhe faltavam.
Ursos e fungos
Lars tornou-se um devoto fervoroso não só da dieta camponesa, como de seus ritos. Conservam-se na fäbod antigos costumes, como o de levar os filhos ao bosque assim que eles nascem e serrar em sua presença o topo de uma árvore. Duas ou três décadas depois, se eles precisarem de madeira para a casa própria, o tronco estará lá, maduro, de pé, à sua espera. Durará séculos em paredes de toras maciças. E a floresta terá todo o tempo necessário para repôr a árvore cortada.
O gado pasta num raio que se estende entre 20 e 40 quilômetros durante o dia. E retorna por sua própria conta à noite, acostumado que está à presença de ursos, sempre na ronda. Em suas andanças, as vacas encontram fungos e plantas que parecem resolver todos os seus problemas veterinários. Os animais mais velhos de algum modo transmitem aos mais novos o conhecimento da floresta, e isso os salva do matadouro, quando deixam de dar cria ou leite.
E está mais provado que o solo, nas fäbod, melhora de uma geração à outra, em vez de se empobrecer. Ou seja, ali se pratica sem maiores retóricos aquilo que de uns anos para cá as grandes empresas do mundo passaram a chamar de “sustentabilidade”. Lars está lá por isso. Não vai a Kal-Tövasen a passeio, mas em busca de saídas para os problemas que seu primeiro neto, nascido este ano, certamente terá pela frente.
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