Que economista é esse?
Nesse contexto, quando o meu amigo Adrian Monjeau me deu o livro “Economía para un planeta abarrotado”, de um economista chamado Jeffrey Sachs, confesso que minha expectativa não era muito grande. Mas à medida que eu fui lendo o livro, meu queixo caiu, e comecei a perceber quanta razão Adrian tinha ao me recomendar aquela leitura com entusiasmo. Que diabo de economista era aquele?
Logo no início do segundo capítulo, Sachs argumenta com absoluta lucidez que não é possível discutir economia no mundo atual sem falar de superpopulação – um ponto óbvio mas que muitos economistas costumam varrer para baixo do tapete. Segue-se um capítulo (“o antropoceno”) sobre a expansão do domínio humano no planeta e o estrago que temos feito aos seus processos ecológicos. O quarto capítulo é sobre as mudanças climáticas globais e o que podemos fazer para mitigá-las. O quinto – minha surpresa só aumentava – é sobre usos e abusos de um daqueles recursos básicos que os economistas consideram que vai estar sempre lá: a água.
Imagine, então, meu absoluto pasmo com o sexto capítulo: “Um lar para todas as espécies”. Sachs escreve sobre “o muitíssimo que há em jogo com a biodiversidade”, e fala de perda não só de espécies como de interações ecológicas, com absoluta lucidez e naturalidade. Você esperaria ouvir a seguinte frase de um economista: “estamos devorando os sistemas que sustentam nossa própria vida, e enquanto o fazemos, buscamos desculpas para negar-lhes importância”? Acho que não, pelo menos de um economista como você e eu estamos acostumados a pensar.
A essa altura, eu mal conseguia parar de ler. Minhas surpresas, porém, estavam só começando.
Você esperaria ouvir a seguinte frase de um economista: “estamos devorando os sistemas que sustentam nossa própria vida, e enquanto o fazemos, buscamos desculpas para negar-lhes importância?
Uma solução boa para todos
Na parte seguinte, Sachs discute como estabilizar a população humana, especialmente nos países mais pobres da África e do Oriente Médio, o que ele considera uma pré-condição para a sustentabilidade. Abordando com o devido cuidado um problema complexo, ele propõe várias medidas distintas e complementares. Uma das suas idéias, porém, se destaca como uma das soluções mais desconcertantes, mais simples, e mais felizes que já li em anos de discussões sobre a questão populacional.
Com base em abundantes dados, Sachs chama a atenção para o fato de que existe uma fortíssima correlação negativa entre a mortalidade infantil e as taxas de fecundidade das mulheres. A mortalidade infantil – os dados que ele usa são de número de crianças que morrem antes de cinco anos de idade, de cada mil nascidas vivas – é sistematicamente maior nos países, todos eles no terceiro mundo, que têm maiores taxas de fecundidade, ou seja, o maior número de filhos por mulher.
É interessante pensar em porque isso acontece. Nos casos extremos, alguns dos países mais pobres do mundo tem mortalidades infantis estarrecedoras de até uns 300/1000, ou seja, uma criança recém-nascida tem quase um terço de probabilidade de morrer em seus primeiros cinco anos. Num país assim, uma mulher que tenha um ou dois filhos tem muita chance de não ter filho nenhum em pouco tempo. Ela não fez as contas, mas sabe muito bem disso. Ainda por cima, são países que geralmente não têm sistemas de previdência, e os pais dependem dos filhos para cuidar deles na velhice. Numa situação assim, é de se esperar que as pessoas queiram ter muitos filhos. As culturas locais reforçam isso com sistemas de valores que estimulam as pessoas, por uma série de maneiras, a esse comportamento.
resultado interessantíssimo – os países nos quais a mortalidade infantil cai muito alcançam naturalmente, sem qualquer controle do estado, reduções significativas nas suas taxas de fecundidade
Mas se a mortalidade infantil cai… muda tudo. Se a mortalidade infantil diminui drasticamente, as mulheres passam a preferir um número menor de filhos, e se adaptam muito rápido à nova situação. A própria cultura também se adapta rápido, especialmente porque discutir a sexualidade está deixando rapidamente de ser um tabu, até mesmo na África. Com isso, chegamos a um resultado interessantíssimo – os países nos quais a mortalidade infantil cai muito alcançam naturalmente, sem qualquer controle do estado, reduções significativas nas suas taxas de fecundidade. Sachs então argumenta que a melhor maneira de diminuir o crecimento populacional, nos países onde ainda é alto, é diminuir a mortalidade infantil. É um argumento completamente contra-intuitivo, e por isso mesmo brilhante.
Mais, essa solução é boa para todo mundo. É boa para as pessoas – evitando o imenso sofrimento causado pela mortalidade infantil. É bom para a economia, porque a estabilização populacional conduz os países à situação de bônus demográfico que explica muito do bom momento econômico atual dos países emergentes, inclusive o Brasil. Finalmente, é bom para os problemas ambientais, porque é claro que a superpopulação é uma das causas mais importantes, embora não a única, desses problemas. É uma das poucas soluções que eu conheço, neste tipo de discussão, em que todo mundo ganha.
Trazendo a economia de volta para o que sempre deveria ter sido
Acho que muita gente confunde Jeffrey Sachs com o “outro” Sachs, Ignacy, um economista polonês que já viveu e trabalhou no Brasil, e cuja visão de economia, por coincidência (não são parentes que eu saiba), tem também um forte viés ambiental. Mas na verdade, a importância do pensamento de Jeffrey Sachs no mundo moderno está longe de ser novidade. Ele sempre foi um economista brilhante; aos 28 anos, era um dos catedráticos mais jovens da história da Universidade de Harvard. Depois, foi conselheiro especial de dois Secretários Gerais da ONU, Kofi Annan e o atual, Ban Ki-Moon. Foi escolhido duas vezes pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Acho que a maior parte dos economistas diria que o atual eixo principal do trabalho de Sachs é sobre políticas para redução da pobreza no mundo. É verdade, mas como eu descobri ao lê-lo, para ele as questões sociais e ambientais estão indissociavelmente ligadas. No que Sachs escreve, ao contrário de muitos economistas e políticos, os cuidados ambientais não aparecem como algo postiço – como aquele mero discurso superficial acrescentado para aplacar as críticas dos ambientalistas. Não. Ele ousa pensar e dizer que um mundo melhor para a biodiversidade será também um mundo melhor para as pessoas. Como as pessoas mais pobres são geralmente as primeiras a ser afetadas pelos problemas ambientais, ele propõe que cuidar da natureza é imprescindível para que se possa erradicar a pobreza. Com esta visão, Sachs restitui a economia àquilo que sempre deveria ter sido – cuidar da casa, para o benefício de todos os seus moradores.
Uma esperança para a Rio+20
Jeffrey Sachs estará entre nós em breve, na Rio+20. Acho que ele não vai ter uma semana fácil. A presidente Dilma já disse que na Rio+20 “não há espaço para fantasias”, e se referiu explicitamente à energia eólica como uma das tais fantasias. Ao fazer isso, ela deixou claro o que espera da Rio+20: que falem o que quiserem desde que não mudem nada, que não venham propor nada de muito diferente, nada de muito audacioso.
É uma pena. Mas o que ela chama de fantasia, eu chamo de esperança.
Precisamos não ter medo de ousar. Acredito que Dilma seja séria e bem-intencionada, mas ela está presa àquela ótica estreita dos economistas tradicionais, para quem as questões ambientais são um mero entrave. Para ela o bom momento econômico – que não é causado pelos nossos governantes, que vão nele de passageiros (ver Nunca é por causa da demografia, aqui em O Eco) – justifica o medo de fazer mudanças importantes.
Mas o mundo mudou, o clima está mudando e rápido, a maior crise ambiental da história humana do planeta já está aí, e já afeta a cada dia a qualidade de vida de todos nós, por qualquer maneira ampla de medir qualidade de vida. Nesse novo mundo, os países que dominarem tecnologias “verdes” – inclusive a tal da energia eólica – vão estar investindo no mercado que mais cresce no mundo e vão gerar muitos milhões de empregos na próxima década, enquanto os que ficarem para trás vão ter que pagar por essas coisas a preço de ouro. Cuidar da casa, então, é agora essencial para a economia por qualquer maneira que você a veja. A Rio+20 é mais uma valiosa oportunidade – já desperdiçamos várias – de colocar a humanidade num caminho melhor. Espero, embora infelizmente sem acreditar muito, que desta vez a esperança possa vencer o medo.
Espero, então, que Jeffrey Sachs nos traga um muito da tal da “fantasia”. Precisamos estar abertos para repensar com profundidade – e se preciso for virar de cabeça para baixo – aquilo que hoje chamamos de economia. Tenho esperança que na Rio+20 ele, assim como outros com coragem para ousar, contribua para trazer a economia de volta às raízes do seu próprio nome. É hora de as irmãs se entenderem melhor. As duas precisam cuidar juntas da casa; afinal, é a nossa casa, a única casa que podemos ter.
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