Recente reportagem sobre a tão esperada aprovação do plano de manejo do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros foi uma das mais lidas na edição agustina de O Eco. Não é para menos. Afinal, o parque, que tem quase meio século de existência, é uma referência em termos de conservação do Cerrado. Segundo o artigo, o documento contemplará, entre outras coisas, maior cuidado com as atividades de fiscalização, novas áreas para turismo e uma política diferente da atual para a utilização das trilhas.
Não li a proposta do plano, mas acho bem vindas as notícias sobre as modificações nas regras impostas ao turismo de caminhadas dentro da área protegida. Veadeiros, com seu relevo acidentado, suas cachoeiras monumentais, suas flores multi-coloridas e fauna variada, é um paraíso para os amantes da natureza. Nesse sentido, a exploração consciente e regulada do eco-turismo pode ser um fator de geração de emprego e renda para as comunidades do entorno, bem como pode estimular a criação de um grupo de usuários formadores de opinião dispostos a defender a conservação do Cerrado.
De certa forma, as trilhas dos Saltos do Rio Preto e a dos Cânions-Cachoeira das Carioquinhas têm exercido essa função nos últimos vinte anos. É fato facilmente observável que o ordenamento da visitação do parque, feito na virada da década de 1980 para 1990, criou uma economia dependente do eco-turismo. A Vila de São Jorge, para citar o exemplo mais patente, cresceu e prosperou. Grande parte de seus habitantes passou a trabalhar como condutores de visitantes, a indústria hoteleira multiplicou a oferta de leitos e restaurantes abriram em cada uma das ruas do vilarejo. No entorno da área administrada pelo governo federal, fazendas e sítios criaram trilhas e franquearam seus atrativos à visitação, como é o caso do Vale da Lua.
Em 1994, quando visitei o parque pela primeira vez, fiquei impressionado com Antenário, meu guia local, que levava consigo uma bolsinha de plástico e catava cada pedacinho de lixo que encontrava pelo caminho: “esse Parque não é meu, nem seu, é de todo o povo brasileiro e precisa ser preservado”, justificava orgulhoso.
Infelizmente, contudo, o que mais me encheu de admiração também foi o que mais me incomodou quando estive ali naquele ano e em todas as dezenas de visitas que fiz subseqüentemente. Fui criado caminhando pelas trilhas da Bocaina, Serra dos Órgãos e Tijuca. Sei andar no mato e sou da opinião que essa é uma atividade lúdica que gosto de fazer sozinho ou na companhia de pouquíssimos amigos com quem compartilho o amor pela natureza. Sempre achei uma violência ser obrigado a contratar um guia de quem não necessito, seja por que não vou me perder, seja porque não preciso de ninguém a me fiscalizar, pois respeito os regulamentos ambientais.
Assim, foi com imensa alegria que li as declarações do biólogo Daniel Borges. Chefe do Parque da Chapada no que toca ao manejo das trilhas. Daniel planeja implantar um percurso de caminhada em que seja possível pernoitar. Já não era sem tempo! Os 65,5 mil hectares de Veadeiros comportam até trilhas com mais de um pernoite sem que isso afete áreas justificadamente intangíveis.
Por outro lado, a sua declaração de que “Manteremos vários trechos com características rústicas, mas aventureiros não são mais importantes que idosos ou deficientes físicos. Dizem que quero urbanizar o parque, mas quero humanizá-lo, trazendo mais conforto e segurança. No Brasil ainda somos muito amadores em turismo” também é auspiciosa. Cada parque tem a obrigação de atender, minimamente que seja, todos os cidadãos que desejam visitá-lo.
De volta ao tema dos guias, o plano poderá prever o término da obrigatoriedade de sua contratação. O fim dessa prática forçada para se caminhar no parque é uma medida que considero das mais importantes. Isso não quer dizer que os cerca de 300 condutores de visitantes cadastrados em seis agremiações profissionais da região precisem ficar desempregados. O presidente da Associação dos Condutores de Visitantes da Chapada dos Veadeiros, teme pelo futuro da economia da região. Segundo declarou na citada reportagem: “Tudo que tenho veio do ecoturismo. A ‘guiagem’ tirou muita gente do garimpo. Nossa maior preocupação é que se acabe o serviço e não haja alternativa”. Aí é que está a solução do problema.
O fim do sistema atual precisa se fazer acompanhar de uma mudança ocupacional planejada para o contingente de guias que perderá de uma hora para outra sua reserva de mercado. Para isso, é fundamental que se mantenha a mesma taxa e mecanismo de cobrança aos visitantes, atualmente existentes. Ao invés do montante ser revertido para serviços de guiagem, contudo, poderia ser aplicado na contratação da mão-de-obra local para a execução de serviços de interesse do parque. Assim, o dinheiro arrecadado continuaria gerando emprego e renda ao entorno, bem como seria empregado em atividades braçais importantes para a conservação ambiental.
Trilhas são estradas rústicas. Necessitam de manutenção frequente. Seus atalhos têm que ser fechados, seus canais de drenagem devem estar desobstruídos, suas pontes em condições transitáveis, seus leitos monitorados, sua sinalização bem visível. Isso é por si só tarefa para muitos homens/hora. Se bem planejada, os mesmos guias que hoje dão declarações ameaçando quebrar a nova sinalização das trilhas que o parque quer implantar, talvez tenham orgulho em trabalhar na sua implantação e manutenção.
Mas não é só. Trabalhos como remoção manual de espécies exóticas, construção e manutenção de infra-estruturas tais como centro de visitantes, prédios administrativos, cercas e aceiros também podem ser feitos por esses mesmos guias que hoje temem o desemprego.
Para encerrar, faço um círculo e volto à trilha com pernoite. Segundo os responsáveis do Instituto Chico Mendes (ICMBio), o local escolhido para o acampamento terá sanitários, energia solar e infra-estrutura mínima. A manutenção dessa área é mais uma oportunidade de trabalho para a população local. Outra opção de emprego corriqueira em vários países onde há trilhas com pernoite é o serviço de transporte de bagagens.
Na África do Sul, na Malásia, no Nepal, no Quênia, em Uganda, na Etiópia, em Comores, para citar apenas alguns lugares, essa tarefa é desempenhada com alegria e desembaraço por gente da terra que, em geral, cobra por quilo carregado, até um limite de 14 quilos por carregador. É verdade, há pessoas como eu que gostam mesmo é de caminhar levando a casa nas costas e de se sentir completamente auto-suficientes. Mas não somos a maioria. Em muitos casos, as trilhas de pernoite são degustadas como se fossem passeios curtos e descompromissados. Os turistas partem de manhã com sua mochilinha pronta para um dia de caminhada, guiando-se despreocupadamente por uma trilha devidamente sinalizada (e mantida em bom estado pela comunidade local contratada). Param no caminho para tomar banho de cachoeira, descansar, admirar a vista, ouvir o canto dos pássaros. Ao chegar ao acampamento, com o pôr-do-Sol se avizinhando, encontram sua barraca já montada e o carregador preparando o jantar dos clientes.
A idéia de liberar a utilização de uma trilha com pernoite é boa, mas melhor ainda é fazer ela poder ser de dois, três ou quatro dias, com ramais que permitam a saída após cada pernoite. Nesse sentido, a passagem por fazendas particulares, com a anuência dos proprietários, pode fazer deles aliados do parque, na mesma medida em que lhes faculta uma geração suplementar de renda, seja com um barzinho, ou como uma pousada no final do percurso. Trilha com pernoite planejada para ter um percurso circular é de bom tom pois facilita a vida de todos mas, se o parque está preocupado em gerar emprego e renda, bom mesmo é que ela seja uma travessia.
Na maioria das vezes, os excursionistas terão que voltar ao local onde principiaram a caminhada para recuperar seus carros. Alguém terá que buscá-los de automóvel. Esse é um serviço que muitos parques terceirizam para uma cooperativa local.
Por fim, ter unidades de conservação gerando emprego e renda é uma ótima idéia. Melhor ainda é que este emprego renda algum benefício de volta para o parque.
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