O tema não é exatamente ambiental, mas merece atenção. No último dia 4, o periódico eletrônico Diário Gaúcho publicou uma matéria contando o triste fim de Trovão, um cavalo que provavelmente passou a maior parte dos seus dias puxando uma carroça na capital gaúcha e sendo vítima de toda sorte de abusos e maus tratos. Naquela data, Trovão, provavelmente muito velho, fraco ou cansado para continuar prestando os serviços que lhe eram designados, ou sequer para ficar de pé, foi abandonado à própria sorte para morrer sem dar trabalho a quem quer que lhe tenha explorado até aquele ponto.
A notícia do Diário Gaúcho é breve, mas chocante:
“Esquálido a ponto de os ossos quase perfurarem o couro, lanhado nas ancas, esfolado nas costelas e no lombo devido ao atrito com arreios ordinários e um dos olhos fechado pelos relhaços que sofreu, o cavalo Trovão foi abandonado para morrer.
Na tarde de sábado, sem forças para se levantar, agonizava numa rua da Vila João Pessoa, Zona Leste de Porto Alegre. À noite, foi sacrificado pela Brigada Militar Ambiental.
Moradores tentaram salvar Trovão foi deixado ao relento na calada da noite de sexta-feira, quando o frio beirava os 6ºC e os moradores dormiam. Como havia caído na estrebaria, de fome e doente, o dono resolveu descartá-lo.
No sábado, moradores da Vila João Pessoa se empenharam para que Trovão fosse socorrido. O pedreiro Hélio Dutra, 37 anos, ligou tantas vezes, gastando do seu celular, que lhe bateram o fone sem maiores explicações.
– Desligaram na minha cara, e o animal aqui, sofrendo – protestou.
Animal foi sacrificado
A desculpa foi que nem a EPTC e a Brigada Militar Ambiental dispunham de veículo apropriado para resgatar Trovão naquele momento.
Enquanto isso, mulheres e crianças tentavam reanimar o bicho. Com a chegada da Brigada Militar Ambiental, por misericórdia, sem tratamento possível, Trovão foi sacrificado” .
Além da repulsa pessoal que causa — ou deveria causar — esse tipo de barbárie, a situação tem um viés jurídico que precisa ser explorado.
Problema antigo
O problema das carroças que circular por Porto Alegre não é recente. Há anos elas são responsáveis pela coleta da maior parte do lixo reciclável da cidade, muito embora o Código de Limpeza Urbana da cidade diga que a coleta, o transporte e a destinação final do lixo domiciliar ordinário são de competência exclusiva do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (Lei Complementar 234/90, art. 11).
E negar vigência à norma não é, nem de perto, o pior dos problemas causados pelas carroças. As associações de proteção aos animais do Rio Grande do Sul denunciam que nessa tarefa além de não obedecerem às leis de trânsito, serem conduzidas muitas vezes por menores de idade e não serem devidamente fiscalizadas, os animais que as puxam são rotineiramente maltratados, chegando muitas vezes a morrer de exaustão. A página da internet traz, para quem tem estômago forte, uma verdadeira galeria de horrores com fotografias de cavalos mortos ou mutilados pelos próprios carroceiros que sustentam.
As tentativas de remediar a situação, ao que tudo indica, não têm dado muito certo.
Em 21 de maio de 2003 foi promulgada a Lei 11.915, que estabelece o Código Estadual de Proteção aos Animais, que dispõe, entre outras coisas, que é vedado “II – utilizar animal cego, enfermo, extenuado ou desferrado em serviço, bem como castigá-lo; III – fazer viajar animal a pé por mais de 10 (dez) quilômetros sem lhe dar descanso; IV – fazer o animal trabalhar por mais de 6 (seis) horas seguidas sem lhe dar água e alimento”. Trovão, com certeza, nunca soube dessa lei. Nem da Constituição Federal, que há quase 20 anos veda qualquer tratamento cruel aos animais.
Ambas as normas, portanto, são muito bonitas na teoria. Na prática, entretanto, permanecem os mesmos problemas de sempre: a falta de fiscalização e jogo de empurra das responsabilidades.
O malfadado TAC
Talvez na tentativa de remediar esse problema específico, o Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul fez a Empresa Pública de Transporte e Circulação de Porto Alegre (EPTC) e o Batalhão de Polícia Ambiental do Estado se sentarem à mesa e assinarem um Termo de Ajustamento de Conduta que estabelece para ambas as seguintes obrigações:
“Cláusula Primeira: Compromete-se a 1ª Compromissária [EPTC], a partir da presente data, a efetuar como procedimento de rotina, a fiscalização dos veículos de Tração Animal – VTAs, nos limites do Município de Porto Alegre,utilizando para tal o mesmo efetivo de que dispõe para a fiscalização das demais espécies de veículos.
Cláusula Segunda: Ao deparar-se com a ocorrência de maus-tratos a eqüinos utilizados na tração dos VTAs, obriga-se, a 1ª compromissária, a realizar operação de abordagem do condutor, apreensão do veículo e acionamento imediato do Batalhão de Polícia Ambiental, para apreensão conjunta do animal e recolhimento deste a estabelecimento adequado.
Parágrafo único: Para cumprimento do contido o “caput” dessa cláusula, a 1ª compromissária obriga-se a manter, sob sua responsabilidade, ou de entidade conveniada, local em condições adequadas para abrigo e guarda dos animais apreendidos, pelo prazo e na forma preconizada e recolhimento dos animais.
Cláusula Terceira: O 2º compromissário [Batalhão de Polícia Ambiental] obriga-se, a partir da presente data, atender, via solicitação da Empresa Pública de Transporte e Circulação – EPTC, de terceiros, bem como, de ofício, todas as ocorrências em que houver denúncia de maus-tratos a animais utilizados na tração de VTAs, deslocando até o local da ocorrência médico-veterinário, pertencente a seus quadros que sob responsabilidade do próprio Batalhão Ambiental, possa atestar as condições do animal, procedendo, em caso de configuração do crime de maus-tratos, previsto no artigo 32 da Lei nº 96005/98, a apreensão do referido animal, sem prejuízo das demais providências da Lei.
Cláusula Quarta: Independentemente das operações de rotina de fiscalização de tráfego de VTAs, obrigam-se, solidariamente, a 1ª compromissária e o 2º compromissário a realizar, em conjunto, quinzenalmente, a contar de data da assinatura do presente ajuste, “blitz” em pontos estratégicos do Município, contando para tanto, cada qual com seu próprio efetivo, viaturas e equipamentos, em dias e horários variados, onde seja constatada maior concentração de VTAs, a fim de proceder à fiscalização das condições gerais dos animais utilizados nesta espécie de veículo, e impedir ação delituosa contra ditos animais, adotando as medidas previstas no presente ajuste.
Parágrafo único: A 1ª compromissária e o 2º compromissário encaminharão, em documento único, firmado por ambos, relatórios das operações realizadas na forma do “caput” da presente cláusula, à Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, em prazo não superior a cinco dias após sua realização.”
Se alguma dessas cláusulas chegou algum dia a ser cumprida, eu não sei, mas, se o caso do Trovão for parâmetro, algo saiu errado.
Em primeiro lugar, para chegar ao estado em que chegou, esse cavalo deveria estar sendo maltratado e abusado há um bom tempo, sem que os responsáveis pela fiscalização tenham feito nada, o que indica que as cláusulas primeira, segunda e quarta do TAC não deviam estar sendo cumpridas exatamente à risca. Em segundo lugar, quando finalmente essas mesmas pessoas não puderam mais fingir que nada estava acontecendo, não tinham como transportar ou abrigar o animal adequadamente e decidiram dar cabo da vida dele — e, provavelmente, do seu próprio embaraço. Mais uma vez, a cláusula segunda do TAC e o seu parágrafo único parecem ter virado letra morta.
Agora, só nos resta esperar que o Ministério Público aplique a multa de 1.500 reais prevista pelo TAC, que será paga, evidentemente, com dinheiro dos contribuintes. No fim das contas, é quanto valem a vida e a morte de Trovão.
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