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A quem pertence o Matopiba?

A não inclusão de diversas instituições essenciais para o alcance dos objetivos previstos no Programa de Desenvolvimento do Matopiba afeta sua legitimidade perante diferentes setores da sociedade

11 de setembro de 2018 · 6 anos atrás
  • Reuber Brandão

    Professor de Manejo de Fauna e de Áreas Silvestres na Universidade de Brasília. Membro da Rede de Especialistas em Conservaçã...

Matopiba é uma região de intensa expansão do desmatamento no Cerrado. Foto: Ibama.

Precisamos da união de toda a sociedade em prol da conservação do Cerrado. No entanto, os diferentes setores da sociedade precisam aprender a conversar, a entender como lidar com diferentes interesses e a trabalharem visando garantir benefícios duradouros para a biodiversidade e para o desenvolvimento econômico. Infelizmente, muitas vezes é necessário lidar com a ironia, o desprezo e a agressividade com a qual alguns representantes desses setores demonstram com a Conservação. O pior é que muitas vezes, esse comportamento vem justamente daqueles que dependem de serviços ecossistêmicos de provimento e que irão, em última análise, serem profundamente prejudicados pela ausência desses serviços. É lamentável que, mesmo dentro da agricultura, existam setores que tentam reduzir ideologicamente o conceito de “Agricultura” a meramente “Agro”, limitando as possibilidades de desenvolvimento de outros modelos de produção que não sejam baseados na concentração de terra, no uso exacerbado de insumos (incluindo venenos) e na forte dependência de bancos rurais. O uso de termos como “moderna”, “tecnificada”, “de última geração” acaba denotando que as outras formas de fazer agricultura são “antiquadas”, “rudimentares” e “atrasadas”. Tal percepção é uma ofensa à própria essência da atividade agrícola e do aprendizado que cada uma possui e transmite.

Essa tendência  de ver a agricultura apenas sob a ótica do agrobusiness foi presenteada com o Decreto 8.447, de 6 de maio de 2015, que dispõe sobre o Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba e a criação de seu Comitê Gestor. Esse decreto que visa “promover e coordenar políticas públicas voltadas ao desenvolvimento econômico sustentável fundado nas atividades agrícolas e pecuárias que resultem na melhoria da qualidade de vida da população” não prevê a participação de setores governamentais que lidam com questões ambientais, indígenas ou trabalhistas.

“O uso de termos como “moderna”, “tecnificada”, “de última geração” acaba denotando que as outras formas de fazer agricultura são “antiquadas”, “rudimentares” e “atrasadas”. Tal percepção é uma ofensa à própria essência da atividade agrícola e do aprendizado que cada uma possui e transmite”.

Tais ausências tornam impossível promover e coordenar políticas públicas visando o desenvolvimento econômico sustentável sem incluir, no Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba, representantes do Ministério do Meio Ambiente (com seus Institutos e Agências), além do Ministério da Justiça e do Ministério do Trabalho. O MATOPIBA, região territorial que incorpora todo o Cerrado dentro dos limites do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, é uma das maiores fronteiras do Brasil, não apenas agropecuária e existem diversos atributos regionais que justificam a participação do setor ambiental e outros setores, como a existência de aquíferos, crises no abastecimento de água, projetos de irrigação, a gestão de bacias hidrográficas, a ocorrência de diversas espécies ameaçadas, a presença de unidades de conservação, terras indígenas e territórios quilombolas. A não participação dessas instituições fragiliza a legitimidade do Plano de Desenvolvimento do Matopiba por não englobar a totalidade de aspectos ambientais e sociais existentes na região. Além disso, outros grupos sociais que vivem na região também devem ser beneficiários da melhoria de qualidade de vida advinda com a melhoria circunstancial da qualidade de vida da região. Se a Agricultura é o futuro do Cerrado, como alguns pregam, esse futuro deve vir para todos os brasileiros que vivem no Cerrado, bem como o reconhecimento de suas perspectivas de vida, de suas aspirações e da sua forma de produzir.

Alguns documentos que discutem estratégias de ocupação desse território já foram elaborados e precisam de olhar crítico sobre as perspectivas levantadas, especialmente sobre as suas consequências para o futuro do bioma Cerrado.

Figura 1. Extensão do Matopiba (salmão) nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Fonte: EMBRAPA.

A região geográfica denominada MATOPIBA compreende 31 microrregiões geográficas do IBGE, localizadas nos limites do Bioma Cerrado, dentro dos estados do Maranhão (MA), Tocantins (TO), Piauí (PI) e Bahia (BA). Embora inicialmente esse acrônimo tenha sido usado para se referir à região do Jalapão, onde os limites desses quatro estados estão próximos, o MATOPIBA hoje se refere a toda a extensão do bioma Cerrado dentro desses quatro estados, somando uma área de 73 milhões de hectares ou  730.000Km2, uma área maior que a França continental (que possui 643.800 km²). Essa região é entendida por alguns setores como área de expansão da agricultura industrial. A agricultura vem se intensificando fortemente nessa região, com produtividade importante de soja, milho e algodão e não resta dúvidas de que deve haver um plano governamental para o seu ordenamento, especialmente para executar a infraestrutura necessária, garantir acesso a recursos naturais por todos os usuários do território, promover a segurança e a justiça fundiária e garantir a manutenção da biodiversidade. O mais importante é notar que o desenvolvimento da região deve ser um projeto de Estado, onde diferentes setores da sociedade colaborem para uma distribuição justa de recursos e oportunidades.

O modelo de ocupação agrícola para a região nos documentos produzidos é o adotado no Oeste da Bahia, notadamente na região de Barreiras e Luís Eduardo Magalhães, entendido como o paradigma de sucesso da agricultura do Matopiba. No entanto, esse modelo de ocupação representou uma conversão acelerada da paisagem natural, sem um planejamento sobre a conservação e o acesso ao recurso mais essencial no Chapadão do Oeste da Bahia, que é a água. Esse processo foi o responsável por colocar diversos municípios do oeste da Bahia como os que mais desmataram em todo o bioma.  Apesar da presença do aquífero Urucuia, o acesso ao aquífero não é igual em toda a região. Além disso, a infiltração de águas das chuvas na região foi afetada, gerando conflitos no acesso à água. Existe conflito continuado no município de Correntina – BA, incluindo invasões a fazendas visando danificar as bombas de pivôs centrais. Mesmo entre produtores na região existe a constante preocupação quanto à disponibilidade de água e conflitos vêm surgindo entre diferentes setores. Um dos sintomas preocupantes na região são o secamento das lagoas localizadas nas cabeceiras dos rios, sugerindo o rebaixamento de aquíferos. Desta forma, a replicação do modelo de ocupação territorial observada no oeste da Bahia na escala do Matopiba pode significar o incremento nos conflitos de acesso à água, especialmente em anos de baixa pluviosidade.

Figura 2. Evolução da agricultura na microrregião de Barreiras, Bahia entre 1985 e 2010, mostrando a expansão da agricultura sobre o cerrado (em vermelho) e o forte incremento no número de pivôs (em roxo). Fonte: EMBRAPA.

A despeito dos conflitos gerados pelo acesso à água e seus impactos na produção agrícola e na preservação das unidades de conservação, existem setores que buscam incrementar a extensão de agricultura irrigada no Matopiba em mais de seis milhões de hectares. Os dois grandes modelos para incremento da irrigação na região são a irrigação por canais, como é o caso observado na região de Formoso do Araguaia (TO), que contribuiu para o secamento do rio Formoso e elevada mortandade de jacarés e tartarugas, e a irrigação por pivôs, corriqueiros no oeste da Bahia. Se um pivô central com cerca de 150 ha consome por ano, aproximadamente a mesma quantidade de água que quatro mil famílias, é fácil entender que o principal produto de exportação do Brasil não são grãos, mas água doce. Os grãos e as carnes exportadas são baratas no mercado de exportação porque não incluímos no preço dessas commodities o custo da água, do solo e da biodiversidade gastos na sua produção. Só no cerrado do Estado da Bahia existem mais de 1300 pivôs e esse número tende a ser incrementado. A gestão da água é um tema extremamente complexo, tornando fundamental a  inclusão do Ministério do Meio Ambiente no Comitê Gestor do Matopiba. O atual modelo de outorgas de água no Brasil, praticamente cartorial, deveria ser substituído por modelos adotados em países europeus, onde a outorga é discutida em consulta públicas.

Outro ponto importante a ser destacado é que, a despeito da existência de grandes propriedades ricas no Oeste da Bahia, não há necessariamente melhoria da qualidade de vida da população. Tomando como exemplo a nota do IDEB (índice do desenvolvimento da educação básica), o oeste da Bahia apresenta notas muito abaixo da média nacional. Na verdade, toda a Região do Matopiba possui desempenho pífio e a inclusão do Ministério da Educação no Comitê Gestor é uma decisão acertada, mas muito precisa ainda ser feito em prol da educação na região.

“Menos de 1% das propriedades rurais do Matopiba são ricas (renda bruta acima de 200 salários mínimos) e geram quase 60% de toda a riqueza da região. As propriedades muito pobres (0 a 2 salários mínimos) são 80% dos estabelecimentos rurais do Matopiba, mas produzem apenas 5% da riqueza. Esses pequenos produtores não conseguirão se manter na terra diante do avanço do modelo do agronegócio industrial.”

A ocupação territorial agrícola planejada para o Matopiba replica um modelo baseado na concentração de terra em grandes propriedades, com monoculturas anuais dependentes de muitos insumos (irrigação, fertilizantes, venenos agrícolas), com pouca mão-de-obra. Apenas fomenta a concentração de renda já conhecida para a região, com pouca capilaridade na transferência da riqueza gerada e na transformação efetiva da realidade das populações locais e tendo pouco efeito sobre o êxodo rural. Menos de 1% das propriedades rurais do Matopiba são ricas (renda bruta acima de 200 salários mínimos) e geram quase 60% de toda a riqueza da região. As propriedades muito pobres (0 a 2 salários mínimos) são 80% dos estabelecimentos rurais do Matopiba, mas produzem apenas 5% da riqueza. Esses pequenos produtores não conseguirão se manter na terra diante do avanço do modelo do agronegócio industrial. Mais ainda, é preocupante apostar num modelo que flerta com o esgotamento da água, mesmo em regiões associadas a grandes rios, como é o caso da bacia do Araguaia.

A ausência de representantes dos órgãos ambientais ainda possui forte consequência sobre o planejamento da conservação a longo prazo na região. Os estudos produzidos até o momento pelo setor dito produtivo sobre a participação de áreas protegidas no Matopiba agregam, sob a égide de “Áreas Legalmente Atribuídas” as unidades de conservação, os territórios indígenas, os territórios quilombolas e os assentamentos rurais, que somariam 21,4% do Matopiba e alimentam o discurso de que existem áreas protegidas demais, que a conservação atrapalha o desenvolvimento e de que não há necessidade de criar mais áreas protegidas no Matopiba. Esse discurso é simplista e falacioso.

Inicialmente, é preciso separar as unidades de conservação de proteção integral (UCPI) das unidades de conservação de uso sustentável (UCUS). As UCUS são muito mais numerosas e permitem, via de regra, a produção agrícola em seu interior. A grande maioria das UCs na região são Áreas de Proteção Ambiental (APAs), que estão ocupadas por propriedades rurais produtivas. Existe sim necessidade de ampliar a proteção de áreas sensíveis na forma de unidades de conservação de proteção integral, visando criar garantias de opções futuras de uso da biodiversidade para as gerações vindouras, além da manutenção de serviços ecossistêmicos essenciais. Existem diversas áreas identificadas como extremamente relevantes para a biodiversidade do Cerrado no limite do Matopiba.

Vista do Parque Nacional do Araguaia, em Tocantins. Foto: Rodrigo José Fernandes/Wikimedia.

É mister perceber que dentro de um programa de desenvolvimento agropecuário os assentamentos rurais não sejam quantificados como possibilidade real de incremento produtivo. Um programa que visa ampliar a representatividade da classe média rural, que visa promover o desenvolvimento da população, precisa ter ações especiais voltadas para os assentamentos rurais e inclusão dessas áreas na geração de emprego e renda no campo. O mesmo deve ser verdade para os territórios quilombolas, cuja lógica produtiva é bem semelhante aos assentamentos rurais, onde há extrema necessidade de transferência de tecnologia produtiva, associada à valorização de meios locais de produção e de seus produtos.

Territórios indígenas não são unidades de conservação e visam garantir aos grupos indígenas a reprodução de seus modos de vida. Cada Território Indígena possui características próprias relacionadas à cultura e à história de cada um desses povos. Também devem ser pensadas estratégias para garantir a segurança fundiária desses grupos, a valorização de sua cultura e a sua gradativa inserção social e econômica.

A região do Matopiba abriga os maiores e mais significativos remanescentes de Cerrado do País. A proteção desses remanescentes na forma de unidades de conservação não é empecilho ao desenvolvimento econômico e social dessa ou de qualquer outra região. Muito pelo contrário, a presença de unidades de conservação em regiões especiais incrementa e diversifica a economia, cria novas oportunidades de emprego e renda, ajuda a fixar a população no campo, contribui com a melhoria dos serviços públicos prestados e atua na estima das pessoas, criando a percepção de que pertencem a um local especial, único e valioso.

Pensar em apenas uma solução para o desenvolvimento de uma região como o Matopiba revela um entendimento limitado da complexidade da sociedade brasileira, das opções de desenvolvimento e da importância da biodiversidade. Muitos modelos são possíveis, incluindo a valorização da agricultura familiar, da recuperação de áreas degradadas, da agroecologia, de uma gestão mais atuante sobre os recursos hídricos, com maior diversificação da produção agrícola, mais ferramentas para a transferência de recursos e maior valorização da biodiversidade, com a ampliação da malha de áreas protegidas. Muitos proprietários conscientes também podem ajudar a valorizar socialmente e economicamente as áreas protegidas através da criação de reservas particulares. Como todos devem saber, a palavra desenvolvimento é também sinônimo de respeito.

 

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Comentários 1

  1. Carlos diz:

    Ótimo artigo, porém, parcial. De certa forma todo alimento tirado dessa região irá matar a fome de algum ser humano…mesmo que indiretamente!!!!