Se há algo que vem se tornando um consenso mundial em termos de gestão de áreas protegidas é a constatação de que não se faz uma boa gestão de costas para a sociedade, ditando regras não discutidas e tomando decisões sobre o que é público sem a participação do público. Uma das principais inovações trazidas ao Brasil pela promulgação do SNUC (julho de 2000) foi o estabelecimento da gestão participativa como um princípio. Desde a criação de unidades de conservação até a sua plena implementação, passando pela elaboração do plano de manejo, é necessário envolver a sociedade e, claro, buscar o seu apoio.
Sendo a participação um princípio, o SNUC estabelece que para a criação de uma Unidade de Conservação deve-se promover consultas públicas e que nelas a proposta de criação seja apresentada com clareza, em linguagem acessível a todos. A lei não entra em maiores detalhes sobre como fazer isto, razão pela qual muito se vem discutindo nos últimos anos dentro do ICMBio sobre como devem ser estas consultas. A principal conclusão saída destas discussões, de forma bem resumida, foi a de que a “consulta pública” exigida pelo SNUC não poderia se dar apenas em um ou alguns poucos eventos, em que se enchesse um salão de gente, se explicasse a proposta, se ouvisse as opiniões de quem quisesse falar… e pronto! Volta-se para Brasília, elabora-se uma minuta de decreto e encaminha-se para criação. Depois de algumas experiências em que ficou claro que isso não era suficiente para se propiciar a participação da sociedade, a conclusão era a de que a consulta pública teria de ser “um processo”, composto de inúmeras reuniões de discussão e esclarecimento, com todos os públicos interessados que se viesse a identificar ou que se apresentassem, para que se pudesse construir uma proposta a ser levada à “consulta pública oficial”, esta sim composta de um ou alguns eventos e após os quais ainda poderiam caber outras etapas do processo, decorrentes de eventuais demandas apresentadas pela sociedade.
Faço essa introdução para explicar o que se procurou fazer na condução do processo de criação do Parque Nacional da Serra do Gandarela, enquanto ele tramitou no ICMBio. Isso não foi feito “para cumprir tabela”, mas por convicção de que esta seria a maneira adequada de se criar uma Unidade de Conservação. O que levaria a que ela começasse de forma diferente de tantas outras, nas quais a falta desta participação acabou por levar a anos, às vezes décadas de conflitos, de ódio à UC e a seus gestores, de incêndios e outras formas de sabotagem. Sem falar na falta de identificação entre as comunidades locais e muitas de nossas UCs. Quando o ICMBio recebeu, diretamente da sociedade civil da região, a demanda pela criação de uma UC (ou um mosaico de UCs) na Serra do Gandarela, identificou-se uma oportunidade de construção participativa de uma proposta que pudesse ter o apoio da sociedade. À medida que o processo avançou, percebemos que estávamos vivendo uma experiência-piloto de um processo de consulta pública, que poderia se tornar exemplar, onde por meio do diálogo se poderia chegar à elaboração de uma proposta bem aceita, a partir de uma demanda que, de início, foi julgada por muitos como um delírio, já que contrariava interesses da mineração.
O processo de consulta pública
“Forças políticas se mobilizaram para evitar o parque, inclusive espalhando versões absurdas entre moradores de povoados da região: ‘se o parque fosse criado, leões e onças seriam soltos na região’.” |
Foram dezenas de reuniões, com comunidades locais, com autoridades municipais e estaduais, com comunidades acadêmicas, de universidades a escolas de ensino fundamental. Sem falar nos grupos de trabalho oficiais, criados pelo governo do estado para buscar soluções de consenso, em negociações que envolveram também o setor de mineração e a sociedade que demandou a Unidade de Conservação. O apoio à proposta foi crescendo. Mas a oposição também esteve forte em alguns momentos e locais. Forças políticas se mobilizaram para evitar o parque, inclusive espalhando versões absurdas entre moradores de povoados da região: “se o parque fosse criado, leões e onças seriam soltos na região”. Foi um trabalho duro, executado por um grupo de servidores do ICMBio e por voluntários do Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela (MPSG). Ao longo destas reuniões foi-se conseguindo esclarecer o que significava e o que não significava um parque nacional. Lideranças extremamente esclarecidas contribuíram para exigir do ICMBio explicações convincentes. Foi ficando claro, por exemplo, que de fato algumas coisas não seriam mais permitidas se o parque fosse criado. Que haveria uma série de ganhos na conservação da biodiversidade e sobretudo das águas. Mas que poderiam ocorrer perdas para alguns. Quem seriam estes? Quais seriam estas perdas? Não é fácil transmitir alguma credibilidade a moradores de pequenos povoados onde todos já viram muitas vezes pessoas de fora chegarem, falarem bonito, às vezes prometerem coisas boas… e nada daquilo acontecer. A confiança se conquista com muita dificuldade e se perde com muita facilidade.
A proposta inicial do Parque Nacional Serra do Gandarela ficou pronta e foi publicada em outubro de 2010. As consultas públicas oficiais ocorreram um ano e meio depois (maio de 2012). Foram 18 meses de esforços de negociação e de esclarecimento. Continuava sendo uma proposta encarada por muitos como inviável, por contrariar interesses poderosos. Cerca de um mês antes das consultas públicas chegou ao ICMBio uma nova demanda, fruto de uma das reuniões realizadas no povoado de André do Mato Dentro (Santa Bárbara): a associação de moradores e produtores rurais local solicitava que uma parte da área proposta para ser parque nacional se tornasse uma reserva de desenvolvimento sustentável (RDS), categoria que permitiria que estes produtores continuassem uma das principais atividades rurais da região, a apicultura. Permitiria a retomada de uma atividade que sabiam ter bom potencial na região, o manejo da candeia. E outras atividades tradicionais no local, que a criação do parque impediria. Não havia mais como esta demanda ser incorporada à proposta a ser apresentada nas consultas públicas oficiais, que já estavam marcadas e com a proposta divulgada na internet e outros meios de comunicação. Mas a existência desta demanda foi mencionada nas seis consultas públicas oficiais realizadas.
Negociações com a comunidade
“Foi durante as consultas públicas oficiais, em intervalos ou ao final do evento, que acabamos por ter as primeiras conversas produtivas com dois dos líderes daquelas comunidades.” |
Um grupo de agricultores familiares compareceu a todas as seis consultas públicas oficiais para se manifestar contra o parque. Em todas elas algumas lideranças do grupo se manifestaram e se disseram assustados com a perspectiva da criação do parque. As reuniões anteriores realizadas nas comunidades onde aquelas pessoas moravam tinham sido tensas e improdutivas, pela decisão de alguns de sequer permitir a apresentação da proposta. Foi durante as consultas públicas oficiais, em intervalos ou ao final do evento, que acabamos por ter as primeiras conversas produtivas com dois dos líderes daquelas comunidades. Eles queriam saber melhor o que era “a tal da RDS”. Receberam as primeiras explicações e aceitaram combinar um encontro posterior para aprofundar o assunto e para também poderem nos explicar melhor a sua situação. Deste encontro resultou a marcação de um trabalho de campo conjunto entre nós, técnicos do ICMBio e estes dois moradores, diretores da associação local. Fomos a campo por alguns dias e deste trabalho resultou um desenho preliminar do que poderiam ser os limites de uma RDS que contemplasse as necessidades das comunidades de Conceição do Rio Acima, Galego, Jardim, Vigário da Vara e São Gonçalo do Rio Acima sem comprometer os objetivos do parque. Mais duas reuniões públicas aconteceram em Conceição do Rio Acima e o resultado foi que a maioria dos presentes aprovou a demanda pela RDS, junto à qual o temido parque passou a ser aceito por boa parte da comunidade. Juntamos esta proposta à demandada por André do Mato Dentro e acabamos fechando uma proposta final que continha um Parque Nacional e uma RDS, o primeiro com cerca de 26 mil hectares e a segunda com cerca de 9 mil hectares.
Todo este trabalho, que está resumido aqui, foi detalhadamente inserido no processo administrativo que documenta todos estes e outros passos. Ao longo de todo este tempo, o Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela cresceu, se formalizou, se fortaleceu. E percebeu a importância de incorporar a Reserva de Desenvolvimento Sustentável à sua bandeira pela criação do Parque. Pessoas as mais diversas foram se incorporando ao movimento, o que levou à enorme agregação de competências que permitiu a elaboração de documentos primorosos, que demonstram, inclusive com o aval de economistas, geólogos, turismólogos e profissionais os mais variados, a viabilidade econômica da criação deste mosaico de duas Unidades de Conservação.
Desfecho sem sentido
Estabeleceu-se uma importante parceria entre o ICMBio e a sociedade, fruto da convergência de propósitos. O processo administrativo, que por lei é público, esteve sempre franqueado a quem o quisesse consultar. Entretanto, por haver um acordo judicial obrigando o ICMBio a encaminhar a proposta do parque ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) até o final de 2012, os 14 volumes, com cerca de 200 páginas cada, foram encaminhados ao MMA sem que a proposta da RDS estivesse adequadamente instruída, detalhada e embasada de forma conclusiva.
Nos primeiros dias de 2013 o processo foi despachado para o MMA. A partir daí, a situação mudou. Os técnicos do ICMBio que conheciam detalhadamente o processo, entre os quais este que o descreve agora, foram deixando de ser chamados para participar dos momentos de decisões importantes. As negociações passaram a acontecer sem a participação de todos os interessados. O resultado se concretizou no dia 13 de outubro de 2014: decretou-se a criação de um Parque Nacional da Serra do Gandarela que não atende aos objetivos a ele atribuídos pela sociedade. A mineração está garantida. A água, as paisagens e a biodiversidade não. E a solicitação da RDS não foi respeitada. Desde o início sabíamos que a possibilidade de “conciliação” entre conservação e mineração era muito limitada no Quadrilátero Ferrífero (QF). Pela simples razão de que esta região já foi explorada praticamente “até o osso”. Conciliações entre coisas incompatíveis só podem se dar por uma divisão do espaço. Preserva-se uma parte do espaço sem mineração, já que a intervenção produzida por esta atividade é radical. Onde esta intervenção já foi praticamente generalizada, como no QF, deve-se simplesmente preservar o que sobrou. Pode-se permitir pequenos projetos de mineração, para que a atividade não desapareça abruptamente, mas que se faça uma transição para o momento inevitável do esgotamento do recurso. Este momento está muito próximo no Quadrilátero Ferrífero e querer prolongar essa atividade por mais 20 ou 30 anos à custa do comprometimento do Aquífero Cauê é uma total insensatez. Mais ainda quando passamos o ano a assistir o que acontece a uma metrópole que não trata com o devido cuidado os seus mananciais de água. Na Serra do Gandarela a conta é simples: ou se abre mão de ferro, ou se abre mão de água e paisagens. Será que São Paulo é Belo Horizonte amanhã?
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