Ano passado, visitei o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, e foram intensos 20 dias e aquele encontro com a Caatinga me marcou profundamente. Ver de perto a beleza e a resiliência do bioma – e de seu povo – foi como encontrar uma história viva de resistência e sabedoria. Ali, onde a arte rupestre se mistura com a ciência e o saber popular, compreendi que o Semiárido é muito mais do que a imagem de seca que o imaginário insiste em reproduzir: é um território fértil em cultura, inovação e vida.
Neste ano, retornei ao bioma, agora durante a Caatinga Climate Week, um encontro que reuniu influenciadores, jornalistas, ambientalistas e financiadores para percorrer mais de 400 quilômetros pelo Semiárido pernambucano, em uma imersão que passou por comunidades quilombolas, indígenas e rurais. O evento foi encerrado no Parque Nacional do Catimbau, um dos lugares mais impressionantes do Brasil, e um símbolo do que significa viver em harmonia com a natureza mesmo em condições extremas.
A Caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro, ocupando cerca de 10 a 11% do território nacional e se estendendo por dez estados. Rica em biodiversidade, abriga centenas de espécies endêmicas, adaptadas a longos períodos de seca. Mesmo assim, é também um dos biomas mais ameaçados: o desmatamento já alcança quase 46% de sua vegetação original, segundo dados recentes do MapBiomas, e o avanço do agronegócio, aliado a projetos mal planejados de energia renovável, tem colocado em risco não apenas o ecossistema, mas também as comunidades que o protegem.
Essas comunidades, indígenas, quilombolas e agricultoras familiares, são, na prática, as verdadeiras guardiãs do bioma. Segundo o Censo Demográfico de 2022, o Brasil possui 1,3 milhão de pessoas quilombolas, distribuídas em 8.441 localidades, sendo que mais de 68% vivem no Nordeste. No entanto, apenas 15% dessas localidades estão dentro de territórios oficialmente titulados. O restante vive sob constante ameaça de expulsão, grilagem ou impacto ambiental provocado por grandes empreendimentos.
Durante a Caatinga Climate Week, conhecemos a Escola dos Ventos, organização liderada por famílias agricultoras que resistem aos impactos da instalação de usinas eólicas em Pernambuco. O grupo visitou o polo de Caetés, contudo são mais de 300 famílias impactadas no estado.


O que deveria ser “energia limpa” se transformou em barulho ensurdecedor, rachaduras nas casas, questões graves de saúde mental, problemas de pele, perda de produção e animais, expulsão de famílias do campo e violações de direitos. Diante desse cenário, a Escola nasce como espaço de denúncia, formação crítica e fortalecimento comunitário.
A ausência de titulação é mais do que uma injustiça social, é também uma ameaça ambiental. São os quilombolas e povos indígenas que mantêm vivas práticas de conservação, manejo de sementes crioulas, proteção das nascentes e uso sustentável da terra. Quando seus territórios são ameaçados, o bioma inteiro perde. A demarcação de terras, portanto, é uma política de preservação ambiental com rosto humano, que protege o solo, a água, a biodiversidade e o futuro climático do país.
No Parque Nacional do Catimbau, onde se encerrou a Caatinga Climate Week, essa relação entre cultura e natureza é evidente. Entre cânions, pinturas rupestres e espécies típicas do Semiárido, é possível compreender o potencial do turismo de base comunitária e do turismo de fauna e flora como caminhos para um desenvolvimento sustentável. Parques como o Catimbau, a Serra da Capivara, a Chapada Diamantina e tantos outros são espaços de aprendizado sobre como coexistir com o meio ambiente e não dominá-lo.
O turismo ecológico na Caatinga ainda é subestimado, mas carrega uma força única: é uma oportunidade de geração de renda para comunidades locais, de valorização da cultura e de incentivo à conservação. O visitante que chega não encontra apenas paisagem, mas uma narrativa viva sobre adaptação, ancestralidade e resistência.

Estar novamente no Semiárido foi como revisitar uma lição que aprendi na Serra da Capivara: a Caatinga é escola viva. Seu povo transforma escassez em abundância, e o que parece árido é, na verdade, fértil em sabedoria. Entre as vozes que ecoaram durante a semana, lembro especialmente das mulheres quilombolas de Garanhuns, que cultivam hortas agroecológicas e transformam o cuidado com a terra em instrumento de autonomia e dignidade.
A Caatinga Climate Week reforçou que o futuro da conservação no Brasil passa pelo reconhecimento e fortalecimento dos territórios tradicionais. Sem demarcação, não há justiça climática. Sem justiça climática, não há futuro possível.
O mundo busca soluções para a crise do clima e elas já existem, aqui, no coração do Semiárido, praticadas há gerações por quem aprendeu a viver com o tempo e não contra ele.
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