Perth, a capital de Western Austrália é uma cidade moderna, espaçosa e rica. Seus um milhão e meio de habitantes têm acesso a largas vias expressas, metrôs de superfície eficientes, saúde socializada e variados centros comerciais que a tornam uma das metrópoles de nível de vida mais elevado do mundo. Também contribuem para dar um ar mais civilizado à cidade uma rede cicloviária de cerca de mil quilômetros de extensão e uma vasta malha de parques e florestas que fazem de Perth uma cidade marcada pelo verde.
No centro da cidade pode se tomar um ônibus que, em rápida viagem urbana, nos leva até o bairro de Kalamunda, onde fica o Terminal Norte da trilha Bibbulmun. Ali, o colunista que vos escreve e a fotógrafa Ana Leonor começamos nossa caminhada. A primavera então vigente nos seduziu a essa aventura. Nessa época, o sudoeste australiano é uma explosão de flores. São mais de 5.500 espécies vegetais diferentes, que decoram o caminho com tanta graça e cor que nos é difícil acreditar não haver ali mão de jardineiro experimentado. Mas não há. O arranjo floral é obra do suor da mãe natureza, ninguém mais que ela.
A trilha principia despretensiosa, costeando alambrados, atravessando ruas, disputando espaço com brinquedos infantis em parquinhos municipais, grilando terras de abastado campo de golfe. Logo apruma-se, ganha uma crista, provê visão desabrida do vale abaixo e mergulha em floresta frondosa, serpeando paralela a rios e cachoeiras que demandam a represa de Mundaring, maior reservatório de água potável da região.
Os sinais urbanos, tão evidentes a princípio, começam a rarear. Não tarda para que o ruído dos automóveis seja calado pelo canto melodioso das cucaburras, pelo salto onipresente dos cangurus e pelo andar com trejeitos de proprietário dos emus. A trilha percorre bons 25 quilômetros em região peri-urbana. Os funcionários do IBAMA local, a Conservation and Land Management (CALM), bem sabem disso. A proximidade com a metrópole é um dos grandes desafios de manejo dessa região que é o único hotspot do continente australiano. Traz riscos maiores de incêndios, aumenta a incidência de espécies exóticas e cria pressão imobiliária difícil de conter. Para quem caminha pelo mero prazer da cabritada, contudo, em exíguos 30 minutos de chão, Perth e o mundo citadino começam a se esfumaçar em um passado com o qual não há mais necessidade de travar contato.
Inebriado pelas flores, o excursionista prevenido de mantimentos e pernas só vai reemergir para as ruas e automóveis quando quiser. Poderá ele escorregar-se pela Bibbulmun por dois, cinco, dez dias, duas semanas, um, dois, três meses ou o tempo que julgar conveniente para completar seus 964 quilômetros de extensão.
Veículo vivo de educação ambiental e alavanca política para a causa da conservação, a Bibbulmun também é usada para a reinserção profissional de condenados. Em Western Austrália, penas de curta duração têm sido convertidas pelos juízes em trabalhos de manutenção na trilha. O labor dos delinqüentes, somado ao esforço de excursionistas que ajudam voluntariamente na mesma tarefa, produziram um caminho sobermamente bem sinalizado, limpo e com drenagem sempre funcionando. Mais do isso, a cada 15 quilômetros em média existe um abrigo de madeira (foto), com camas, churrasqueira, e banheiro. Este último, além de ser uma amenidade, protege o ecossistema da poluição derivada dos dejetos humanos. Como se vê, se trilhas fossem classificadas como hotéis, a Bibbulmun teria 5 estrelas e bem brilhantes.
A Bibbulmun Track é fruto dos sonhos de Geoff Shafer e Jesse Brampton. Este último, veterano caminhante australiano que já completara duas vezes a totalidade da Appalachian Trail, nos Estados Unidos, não descansou enquanto não conseguiu estabelecer uma trilha equivalente no quintal de sua casa. Shafer e Brampton passaram meses estudando e costurando caminhos para fixar uma linha contínua pelos 650 quilômetros de matas que separam Perth e Walpole, área inserida em um dos hotspots de maior endemismo do mundo, servindo de lar para mamíferos, anfíbios e pássaros que não existem em nenhuma outra parte, além de diversos tipos de vegetação endêmica, entre os quais a fabulosa floresta dos centenários karri, cuja altura pode chegar aos 90 metros. Em um primeiro momento preocuparam-se menos em estabelecer o melhor traçado. Sua prioridade era tirar a idéia do papel. Depois, sempre seria possível repensar a rota inicial, incorporando trechos mais cênicos, trocando estradinhas de terra por trilhas selvagens, acrescentando um desvio até uma vista panorâmica ou ao frescor de uma cachoeira.
Em meados da década de 1970, o Governo finalmente comprou a idéia que Shafer primeiro concebera em fins da década anterior. Crescentemente vergada sob a responsabilidade de administrar o tesouro ecológico do hotspot sudoeste-australiano, cujas flores têm um endemismo de 80%, a CALM viu no projeto duas grandes vantagens. A primeira seria a de criar uma coluna cervical ligando as diversas Unidades de Conservação do ecossistema: se a Bibbulmun fosse bem manejada, logrando-se manter pelo menos 100 metros de mata em ambas as suas margens, poderia vir a constituir-se em um corredor ecológico. A segunda e mais importante é fruto de aritmética democrática, simples como 2+2. Quanto mais gente caminhar pela Bibbulmun e a considerar um patrimônio de Western Australia, mais gente vai se bater pela preservação das terras cortadas pela trilha. Com apoio firme do Governo, a Bibbulmun saiu do papel. Foi inaugurada em 1979.
Passados 26 anos, a conta fechou. Como Brampton previra, hoje pouco menos de 10% do traçado original da trilha continuam os mesmos levantados sob a coordenação de Shafer na década de 70. Tão logo a trilha foi inaugurada, surgiram trilheiros dos quatro cantos do sudoeste do estado, sugerindo alternativas melhores, ou mais bonitas. A partir de 1988, toda a trilha foi repensada e sua rota retraçada, incorporando mais áreas naturais e trocando estradinhas de terra por trilhas estreitas. Além disso, novos 300 quilômetros foram acrescentados, entre eles um cênico trecho litorâneo de 180 quilômetros, ligando Walpole a Albany.
A CALM também fez os seus redirecionamentos no trajeto, incorporando áreas que gostaria de ver transformadas em Parques Nacionais e buscando fazer a trilha tocar em pequenas cidades do interior esvazidas economicamente. O novo trajeto foi entregue ao público em 1998. Ao seu longo, hoje proliferam pousadas, lojas de equipamentos de montanha e serviços de transporte para levar os trilheiros às diversas cabeceiras da trilha (a cada 20 km em média, a Bibbulmun tem um ramal que a liga a uma estrada, permitindo aos excursionistas percorrê-la em etapas de diferentes durações e distâncias).
Segundo a associação de amigos da trilha, em seu quarto de século de existência a Bibbulmun gerou e sustenta cinco centenas dessas pequenas empresas. A associação, por sinal, é uma ong de proporções grandiosas. Tem sede própria e conta com 1600 membros, dos quais cerca de 500 dão um duro danado. São trabalhadores voluntários que, em seu tempo livre, empunham enxada e machado para ajudar na manutenção dos 964 quilômetros da picada.
De fato a Bibbulmun não é só boa para o meio ambiente. Ela é também um motor econômico. Somente nos trechos de Mundaring, junto ao Terminal Norte, transitam cerca de 200 mil excursionistas todos os anos. Em 2000, 35 mil caminhantes foram além de Mundaring e percorreram cabo e rabo da Bibbulmun, 12% deles turistas, gerando aproximadamente 2 milhões de dólares em divisas.
É interessante notar que a aposta da CALM na pressão popular se configurou verdadeira. O exemplo de Mac Baragry é revelador. Em seus 65 anos de vida, o aposentado de Perth só andou em um pequeno trecho da mega trilha. Coisa de curtos 4 quilômetros. Mas, ao ser perguntado se a aplicação de seus impostos na megatrilha vale a pena, não titubea: “a Bibbulmun é um patrimônio da Austrália”. Não está só em sua convicção. Já há propostas firmes para que sejam criados 5 novos Parques Nacionais em florestas rasgadas pela Bibbulmun. A própria área percorrida pelo colunista, junto ao Terminal Norte da Trilha, em Kalamunda, não resistiu à pressão dos usuários. Antiga Área de Conservação, hoje é Parque Nacional.
A Bibbulmun deu tão certo que já produziu dois rebentos. Em 2001, o Governo de Western Australia inaugurou a Cape-to–Cape track, uma trilha de 135 quilômetros que corre junto à costa da Southwest Penninsula, protegendo o pouco que sobra da vegetação de dunas costeiras do avanço das casas de veranistas e da ampliação do cultivo de uvas das vinícolas locais. Ao ligar os fragmentos do Leewin-Naturaliste National Park, a Cape-to-Cape garantiu a proteção contínua da costa entre os Cabos Naturalista e Leewin. A fauna e a flora do hotspot agradecem. O outro filhote da Bibbulmun é a trilha Munda Bibbi, na verdade uma ciclovia em meio a áreas naturais que, assim como a Bibbulmun, liga Perth a Albany. Além de percorrer Parques e Florestas Nacionais, a Munda Bibbi busca seguir margens de rios e lagos. Ao dar-lhes uso, ajuda assim a proteger as matas ciliares.
No Brasil uma trilha nos moldes da Bibbulmun também poderia ser usada para proteger a Mata Atlântica, nosso hotspot mais ameaçado. Um técnico visionário do Parque Estadual de Campos do Jordão uma vez chegou a propor que se fizesse coisa semelhante na serra da Mantiqueira. Seu projeto era bonito e bem pensado. O que propunha era similar à Bibbulmun. Tinha tudo para dar certo, mas, como é de praxe no Brasil, deve estar acumulando poeira em uma estante pouca visitada por olhos leitores. Já, no Rio de Janeiro, com o envolvimento ativo de ongs ambientalistas, centros excursionistas e dos escoteiros, 61 km de uma trilha Transcarioca chegaram a ser recuperados e sinalizados. Eram o estágio inicial para uma trilha de 250 quilômetros que atravessaria o município de ponta a ponta, ligando em corredor ecológico a Reserva de Guaratiba, o Parque Estadual da Pedra Branca e o Parque Nacional da Floresta da Tijuca, para terminar no Pão de Açúcar, onde a cidade foi fundada em 1565. Tomada como projeto megalomaníaco, a Transcarioca foi abandonada. Seus trechos sinalizados já começam a dar mostras de falta de manutenção; placas e infraestrutura vandalizadas, drenagem obstruída, vegetação não podada, dando margem a abertura de variantes e atalhos. Com o nível de atenção que tem recebido, em breve sairá do campo dos desafios de manejo para entrar no rico rol das lendas históricas da Floresta da Tijuca.
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