Por que os parlamentares criam uma frente parlamentar para atacar um assunto que está nas mãos deles mesmos resolver? Acaso não foram eleitos para propor, estudar e aprovar leis? Por que não votam leis que permitam financiar as desapropriações e atender com justiça e humanidade os reassentamentos que a lei determina?
A criação formal, sustentada por 42% dos membros da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional do Brasil, de uma “Frente Parlamentar em Defesa das Populações Atingidas por Áreas Protegidas” deixou a sociedade perplexa. O desconcerto cresce quando se lê a justificativa e os objetivos da iniciativa que, dentre outras peculiaridades, demonstram que esses responsáveis pelo futuro da nação na realidade estão simplesmente propondo usar as áreas protegidas e as terras indígenas desenvolvendo nelas atividades econômicas ilegais e incompatíveis ou, melhor, eliminando-as. A única virtude da iniciativa é a sua originalidade que faz dela um caso único na história da humanidade. Com efeito, jamais se tinha visto que representantes eleitos de uma nação decidam de forma tão massiva e óbvia dedicar seus esforços a prejudicar seu próprio patrimônio natural.
A simples leitura do material preparado pelos promotores da Frente, especialmente para quem não está a par da situação das terras indígenas e das áreas protegidas, não parece tão ruim assim. A Frente declara se centrar na defesa dos direitos das supostas vítimas do estabelecimento dessas áreas de uso restrito e propõe ações que a priori são lícitas. Mas, começando pelas afirmações falsas e erros dos autores, a má fé da proposta resulta evidente. Afirma-se, por exemplo, que “o Brasil é o país com maior número de áreas protegidas do mundo” ou que esse “importante mecanismo de proteção foi transformado em meras efemeridades ambientais, foco de conflitos sociais”. Também se afirma que há “uso de violência e abuso de poder como instrumentos de desocupação das áreas” e que a demora nos processos de indemnização constitui “ato repugnante que deteriora todo o sistema democrático de direito” e que os atingidos pelas áreas protegidas e terras indígenas são colocados “em situação de vulnerabilidade econômica e social”. Para resumir, as terras indígenas e quilombolas e as áreas protegidas seriam a causa de uma gravíssima situação de injustiça, que coloca em perigo a paz social. E tudo isso seria consequência de obedecer à legislação, a começar pela própria Constituição.
Confundir para atacar
“As terras que somam ao redor de 110 milhões de hectares outorgadas, ou em processo de outorga a indígenas e quilombolas não são áreas protegidas pela própria definição e, claro, tampouco por lei. Elas são um direito constitucional dos povos indígenas e quilombolas e são geridas pela FUNAI”
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Primeiro os promotores da Frente fazem um esforço para confundir denominando as terras indígenas e quilombolas como “áreas protegidas”. A única equivalência universalmente aceita para área protegida é o que no Brasil denomina-se Unidade de Conservação. As terras que somam ao redor de 110 milhões de hectares outorgadas, ou em processo de outorga a indígenas e quilombolas não são áreas protegidas pela própria definição e, claro, tampouco por lei. Elas são um direito constitucional dos povos indígenas e quilombolas e são geridas pela FUNAI, organismo adscrito ao Ministério da Justiça. De outra parte, as áreas protegidas ou unidades de conservação se estabelecem para proteger amostras da natureza, manter os seus serviços ambientais e fomentar o turismo. Elas somam ao redor de 90 milhões de hectares, incluindo as que são federais (74 milhões de hectares), estaduais, municipais e privadas. As federais são administradas pelo ICMBio que está subordinado ao Ministério do Meio Ambiente. Não é, pois, admissível acreditar que os deputados federais não saibam isso que todo cidadão conhece ou deveria conhecer desde a escola.
Esse “erro” está na base da afirmação falsa de que o Brasil é o país que tem o maior número de áreas protegidas no mundo. O fato é que embora o Brasil tenha um número elevado de áreas protegidas — o que longe de ser mérito é problema para a gestão — não é o país que proporcionalmente mais protege. Apenas na América Latina há uns dez países que em percentual do seu território protegem muito mais terra que o Brasil. Mais adiante o documento da Frente convenientemente esquece o fato de que a maior parte das unidades de conservação, em especial as estaduais, é de uso sustentável, com população no seu interior e com direito ao uso dos recursos inclusive atividades agropecuárias, em alguns casos sem limites como na categoria de Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Não existem “atingidos” nessas categorias. Por isso é fácil deduzir que o verdadeiro objetivo da Frente se centra nas terras indígenas e quilombolas.
Todas as outras afirmações feitas na justificativa são igualmente mentiras ou meias verdades. Já outros autores questionaram a veracidade de uso da violência e abuso de poder para retirar ocupantes ilegais das unidades de conservação e no caso de terras indígenas. Se a força policial foi usada nestas últimas é de conhecimento público que isso foi a reação do estado de direito mediante decisões judiciais às atitudes de desobediência e violência dos que deviam sair. Não existem, pois, “atitudes repugnantes que deterioram o sistema democrático de direito”.
Descaso
“A raiz da crise atual está na leniência das autoridades que não deram nem dão prioridade ao pagamento da desapropriação ou indenização devida e que deixam ocupar e invadir as terras que deveriam defender”
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Mas, quem são as vítimas, ou seja, os atingidos que os deputados querem defender? As vítimas são os proprietários legais ou os agricultores informais instalados antes do estabelecimento da reserva indígena ou da unidade de conservação e os cidadãos que as invadiram depois, com ou sem conhecimento de estar atuando à margem da lei. O problema é sério em algumas terras indígenas e é bastante menos grave nas unidades de conservação. Em ambos os casos a raiz da crise atual está na leniência das autoridades que não deram nem dão prioridade ao pagamento da desapropriação ou indenização devida e que deixam ocupar e invadir as terras que deveriam defender e, às vezes, inclusive aquelas que já foram desapropriadas e pagas.
Resolver esses problemas é muito fácil precisamente para os mais de duzentos deputados signatários do manifesto da Frente. Eles precisam apenas preparar e votar uma lei que outorgue a FUNAI e ao ICMBio os recursos para pagar as indenizações de lei aos proprietários e agricultores e para possibilitar uma reinstalação digna e justa dos demais “atingidos”. Não se trata de somas de dinheiro exorbitantes e estão perfeitamente dentro das possibilidades orçamentárias do governo federal. Quando acusam o governo de ter sido displicente com as áreas protegidas eles esquecem outra vez que a falta de melhor trabalho da FUNAI e do ICMBio é consequência dos exíguos orçamentos que recebem. Isso também os deputados em questão poderiam resolver, se quisessem. Igualmente curioso é o fato de que alguns dos objetivos emitidos na justificativa nem precisam de uma “frente parlamentar” desde que “promover o aprimoramento da legislação federal sobre os procedimentos para reassentamento involuntário dessas populações e das questões fundiárias” é função dos legisladores. Ou seja, deles mesmos.
Objetivos recônditos
“Eles não se importam com os agricultores “atingidos”. Cobiçam as terras dos indígenas e a das áreas protegidas para expandir a agroindústria de exportação, a mineração, a exploração florestal e, por certo, para facilitar ainda mais a construção de infraestruturas de energia e de transporte”
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Por que, então, em vez de resolver o problema, que é parte das suas responsabilidades parlamentares, esses deputados criaram esta Frente? A única reposta possível é que na verdade eles não se importam com os agricultores “atingidos”. Cobiçam as terras dos indígenas e a das áreas protegidas para expandir a agroindústria de exportação, a mineração, a exploração florestal e, por certo, para facilitar ainda mais a construção de infraestruturas de energia e de transporte. Cabe pensar que esta iniciativa é um passo a mais na estratégia de desenvolvimento desenfreado que dominou o país na última década. Essa mesma estratégia já mudou o Código Florestal e impede a aplicação do novo. Permitiu a eliminação de mais de cinco milhões de hectares protegidos nos últimos anos e abriu várias áreas protegidas para lagos artificiais de hidroelétricas. Já tentou permitir a mineração nessas áreas e reduziu a um mínimo o estabelecimento de novas unidades de conservação e reservas indígenas.
O caso também oferece lições aos defensores do meio ambiente e dos direitos indígenas. Por exemplo, os primeiros inflacionaram sem necessidade a área teoricamente protegida com categorias que a maior parte dos outros países não considera unidades de conservação, pois sua finalidade principal não é proteger a natureza. Tal é o caso das reservas extrativistas, das florestas nacionais e de outras. Pior ainda é a ridícula assunção que as reservas de biosfera, uma elucubração de burocratas internacionais, são áreas protegidas. Como já foi alertado inúmeras vezes incluir essas categorias como áreas protegidas apenas serve para dar argumentos aos que não querem que se proteja nada. É tempo de recomeçar a chamar pão de pão e vinho por vinho. A ideia de que as terras indígenas são áreas protegidas, que foi bem aproveitada pelos ruralistas e pelos promotores da Frente, não foi deles. Foi de alguns filósofos da área socioambiental.
Sabe-se que muitos deputados assinaram o documento sem estar cientes do que se tratava. Fazer isso sempre é um risco. Neste caso, o risco é prejudicar o povo que representam e a o seu próprio país. Mas nunca é tarde para retificar erros e, até se pode aproveitar da Frente já criada, usando seus objetivos e preparando os textos legais antes mencionados que resolverão o problema enunciado, e fazendo a pressão partidária necessária para que sejam aprovados. Os agricultores afetados terão seus direitos assegurados e ganharão o respeito e as condições que merecem, se tiverem o direito de ser reassentados; os indígenas terão a tranquilidade e os meios para usar mais e melhor as suas terras; a natureza que ampara a geração de energia e que protege e nutre a atividade agropecuária se beneficiará da regularização fundiária e de mais recursos para seu manejo efetivo. E o Brasil manterá sua reputação de nação que faz esforço verdadeiro para alcançar o tão ansiado desenvolvimento sustentável.
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